Passagens de Alberto da Costa e Silva

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Soneto a Vermeer

De luto, a minha avĂł costura Ă  mĂĄquina,
e gira um cata-vento em plena sala.
Vejo seu rosto, sombra que a janela
corrompe contra um pĂĄtio amarelado

de sol e de mosaicos. Sobre a mesa,
a tesoura, um esquadro, alguns retalhos
e a imĂłvel solidĂŁo. A minha avĂł,
com os seus olhos azuis, o tempo acalma.

A minha avĂł Ă© jovem, mansa e apenas
a limpidez de tudo. Sonho vĂȘ-la
no seu vestido negro, a gola branca
contra o corpo de cĂŁo, negro, da mĂĄquina:

a roda, de perfil, parece imĂłvel
e a vida nĂŁo se exila na beleza.

A Despedida da Morte

Falo de mim porque bem sei que a vida
lava o meu rosto com o suor dos outros,
que também sou, pois sou tudo o que posto

ao meu redor se cala, e Ă© pedra, ou, ĂĄgua,
cicia apenas — O teu tempo Ă© a trava
que te impede de ter a calma clara

do chĂŁo de lajes que o sol recobre,
este esperar por tudo que nĂŁo corre,
nem pĂĄra e nem se apressa, e Ă© sĂł estado,

e nem sequer murmura: — O que te trazem
Ă© o riso e o lamento, o ser amado
e o roçar cada dia a tua morte,

que não repÔe em ti o, sem passado,
ficar no teu escuro, pois herdaste
e legas um sussurro, um som de passos,

uma sombra, um olhar sobre a paisagem,
memĂłria, cĂĄlcio, hĂșmus, eis que o mundo
nada rejeita, sendo pobre e triste
no esplendor que nos dĂĄ. A madrugada.

Soneto a Vera

Estavas sempre aqui, nesta paisagem.
E nela permaneces, neste assombro
do tempo que sĂł Ă© o que jĂĄ fomos,
um céu parado sobre o mar do instante.

Vives subitamente em despedida,
calma de sonhos, simples visitante
daquilo que te cerca e do que fica
imĂłvel no que Ă© breve, pouco e humano.

As regatas ao sol vĂȘm da penumbra
onde abria as janelas. E de entĂŁo,
vou ao campo de trevo, Ă  tua espera.

O que passa persiste no que tenho:
a roupa no estendal, o muro, os pombos,
tudo Ă© eterno quando nĂłs o vemos.

Uma AusĂȘncia de Mim

Uma ausĂȘncia de mim por mim se afirma.
E, partindo de mim, na sombra sobre
o chĂŁo que nĂŁo foi meu, na relva simples
o outro ser que sonhei se deita e cisma.

Sonhei-o ou me sonhei? Sonhou-me o outro
— e o mundo a circundar-me, o ar, as flores,
os bichos sob o sol, a chuva e tudo —
ou foi o sonho dos demais que sonho?

A epiderme da vida me vestiu,
ou breve imaginar de um Ăłcio inĂștil
ergueu da sombra a minha carne, ou sou

um casulo de tempo, o centro e o sopro
da cisma do outro ser que de mim fala
e que, sonhando o mundo, em mim se acaba.

Respiro e Vejo

Respiro e vejo. A noite e cada sol
vĂŁo rompendo de mim a todo o instante,
tarde e manhĂŁ que sĂŁo tecido tempo,
chuva e colheita. O céu, repouso e vento.

Vergel de aves. Vou entre viveiros,
a caçar com o olhar, passarinhagem
dos pequeninos sĂłis e das estrelas
que emigram neste céu de goiabeiras.

mas sigo a jardinagem, podo o tempo,
o desgosto do espaço, a sombra e o fogo,
as floraçÔes da luz e da cegueira.

E, no dia, suspensa cachoeira,
neste jogo sagrado, vivo e vejo
o que veio em meus olhos desenhado.