Passagens sobre Alma

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O Meu Impossível

Minh’alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!

Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito.É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!…

Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!…Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto…

Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!…

O Primeiro Filho

(Carta ao amigo Bernardo Pindela)

Entre tanta miséria e tantas coisas vis
Deste vil grão de areia,
Ainda tenho o condão de me sentir feliz
Com a ventura alheia.

À minha noite triste, à noite tormentosa,
Onde busco a verdade,
Chegou com asas d’oiro a canção cor-de-rosa
Da tua felicidade.

És pai, viste nascer um fragmento d’aurora
Da tua alma, de ti…
Oh, momento divino em que o sorriso chora,
E em que o pranto sorri!

Que ventura radiante! oh que ventura infinda!
Olímpicos amores
Ter frutos em Abril com o vergel ainda
Carregado de flores!

Deslumbramento!… ver num berço o teu futuro
Sorrindo ao teu presente!…
Ter a mulher e a mãe: juntar o beijo puro
Com o beijo inocente!…

Eu que vou, javali de flanco ensanguentado,
Pelos rudes caminhos
Ajoelho quando escuto à beira dum valado
Os murmúrios dos ninhos!

Em tudo que alvorece há um sorriso d’esperança,
Candura imaculada!…
E quer seja na flor, quer seja na criança
Sente-se a madrugada.

Quando,

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Soneto I – Leandro E Hero

O facho do Helesponto apaga o dia,
Sem que aos olhos de Hero o sono traga,
Que dentro de sua alma não se apaga
O fogo com que o facho se acendia.

Aflita o seu Leandro ao mar pedia,
Que abrandado por ela, a prece afaga,
E traz-lhe o morto amante numa vaga,
(Talvez vaga de amor, inda que fria).

Ao vê-lo pasma, e clama num transporte —
“Leandro!… és morto?!… Que destino infando
Te conduz aos meus braços desta sorte?!!

Morreste!… mas… (e às ondas se arrojando
Assim termina já sorvendo a morte)
Hei de, mártir de amor, morrer te amando.”

Triste Padeço

Aves que o ar discorrei,
No vôo as asas batendo,
E por vossas penas conta
Às minhas meu sentimento.

Compadecidas ouvi
De minha dor os excessos,
Mas em dizer que é saudade,
Digo o que posso dizer-vos.
Triste padeço, e ausente
Os golpes dos meus receios
Nas batalhas da distância,
Nos desafios do tempo.

Nas violências, do que choro,
Dos alívios desespero,
Que não adormece a queixa,
Quando a desperta o desvelo.

Esmoreceu a esperança
Nas dilações do desejo
Prognosticando a ruína
Frenético o pensamento.

Se meu mal são sintomas,
Mortais ausências, e zelos,
Era o remédio esquecer-me,
Se em mim houvera esquecimento.

Mas se faz no meu cuidado
Operações o veneno,
Viva de senti-lo quem,
Não morre de padecê-lo.

Já que morro, ingrata sorte,
Às mãos da tua porfia,
Deixa-me inquirir um dia
A causa da minha morte:

Se amor com impulso forte
Me rendeu, como me aparta
Do bem, que na alma retrata
Minha doce saudade,

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Soneto XVIII

Quem quiser que seus ais o vento leve,
Quem quiser levantar nas águas torre,
Quem semear nas praias onde morre
E onde jamais ser o trigo teve.

Morra por vós, que na constância breve
Sois como folha, que c’o vento corre
Só constante em meu mal, porque me forre
De cuidar que sereis ‘té nisto leve.

Suspiros de minha alma a quem vos dei,
Dei-vos suspiros meus ao leve vento?
Que foi de vós ó lágrimas cansadas?

Assaz pago fiquei com meu tormento,
Já que outro bem por vós não alcancei,
O bem me fica de vos ter choradas.

Sou Lúcido

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar…).

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
‘As normas reais ou sentimentais da vida –
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

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Se Comparo Poder ou Ouro ou Fama

Se comparo poder ou ouro ou fama,
Venturas que em si têm occulto o damno,
Com aquele outro affecto soberano,
Que amor se diz e é luz de pura chama,

Vejo que são bem como arteira dama,
Que sob honesto riso esconde o engano,
E o que as segue, como homem leviano
Que por um vão prazer deixa quem ama.

Nasce do orgulho aquele esteril goso
E a glória d’ele é cousa fraudulenta,
Como quem na vaidade tem a palma:

Tem na paixão seu brilho mais formoso
E das paixões tambem some-o a tormenta…
Mas a glória do amor… essa vem d’alma!

Soneto Das Alturas

As minhas esquivanças vão no vento
alto do céu, para um lugar sombrio
onde me punge o descontentamento
que no mar não deságua, nem no rio.

Às mudanças me fio, sempre atento
ao que muda e perece, e ardente e frio,
e novamente ardente é no momento
em que luz o desejo, poldro em cio.

Meu corpo nada quer, mas a minh’alma
em fogos de amplidão deseja tudo
o que ultrapassa o humano entendimento.

E embora nada atinja, não se acalma
e, sendo alma, transpõe meu corpo mudo,
e aos céus pede o inefável e não o vento.

O encanto da mulher é mais subtil e penetrante, do que a luz, e, por qualquer dos sentidos, que todos são pontes para o pecado, leva a desordem à alma.

Aspiração

Sinto que há na minha alma um vácuo imenso e fundo,
E desta meia morte o frio olhar do mundo
Não vê o que há de triste e de real em mim;
Muita vez, ó poeta, a dor é casta assim;
Refolha-se, não diz no rosto o que ela é,
E nem que o revelasse, o vulgo não põe fé
Nas tristes comoções da verde mocidade,
E responde sorrindo à cruel realidade.

Não assim tu, ó alma, ó coração amigo;
Nu, como a consciência, abro-me aqui contigo;
Tu que corres, como eu, na vereda fatal
Em busca do mesmo alvo e do mesmo ideal.
Deixemos que ela ria, a turba ignara e vã;
Nossas almas a sós, como irmã junto a irmã,
Em santa comunhão, sem cárcere, sem véus.
Conversarão no espaço e mais perto de Deus.

Deus quando abre ao poeta as portas desta vida
Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;
Tarja de luto a folha em que lhe deixa escritas
A suprema saudade e as dores infinitas.
Alma errante e perdida em um fatal desterro,

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No Egito

Sob os ardentes sóis do fulvo Egito
De areia estuosa, de candente argila,
Dos sonhos da alma o turbilhão desfila,
Abre as asas no páramo infinito.

O Egito é sempre o amigo, o velho rito
Onde um mistério singular se asila
E onde, talvez mais calma, mais tranqüila
A alma descansa do sofrer prescrito.

Sobre as ruínas d’ouro do passado,
No céu cavo, remoto, ermo e sagrado,
Torva morte espectral pairou ufana…

E no aspecto de tudo em torno, em tudo,
Árido, pétreo, silencioso, mudo,
Parece morta a própria dor humana!

Já Velho e Doente

«Seja a terra da Terceira
A minha coberta de alma»,
Disse eu na idade fagueira,
Em que tudo é força e calma.

Mas hoje, já velho e doente,
Em que as almas não se cobrem,
Hoje sim, peço seriamente
Que os sinos por mim lá dobrem.

Até já me aconselharam
Um quarto lá no Hospital,
Tanto caipora me acharam,
Escaveirado, mal, mal…

Ali visitas teria
Por obra de misericórdia,
Embora comida fria,
Alguma vez, que mixórdia!

Mas sempre era doce ao peito
Ir acabar os meus dias
Na Praia, de qualquer jeito,
Perto da casa das tias.

Tive o exemplo resignado
Que me deu a prima Alzira
Num lençolinho lavado
Com rendas limpas na vira.

Ali matámos saudades,
Ela alegre e penteadinha,
Mal pensando eu que as idades
Não perdoam. Hoje é a minha.

Também cheguei a pensar
No Asilo, talvez com um biombo.
Sou biqueiro. Mas jantar?
Todos ali, lombo a lombo.

Como outrora o Tintaleis,
Três-Quinze, Manuel de Deus
Eram duas vezes seis,

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Alegria e Tranquilidade

A alegria pode sofrer interrupções no caso de pessoas ainda insuficientemente avançadas, enquanto, no caso do sábio, o bem estar é um tecido contínuo que nenhuma ocorrência, nenhum acidente pode romper; em todo o tempo, em todo o lugar o sábio goza de tranquilidade! Porquê? Porque o sábio não depende de factores externos, não está à espera dos favores da fortuna ou dos outros homens. A sua felicidade está dentro dele; fazê-la vir de fora seria expulsá-la da alma, que é onde, de facto, a felicidade nasce! Pode uma vez por outra surgir qualquer ocorrência que lembre ao sábio a sua condição de mortal, mas ocorrências deste tipo são de somenos importância e não o atingem mais do que à flor da pele. O sábio, insisto, pode ser tocado ao de leve por um ou outro contratempo, mas para ele o sumo bem permanece inalterável. Volto a dizer que lhe podem ocorrer contratempos provindos do exterior, tal como um homem de físico robusto não está livre de um furúnculo ou de uma ferida superficial; em profundidade, porém, não há mal que o atinja.
A diferença existente, insisto ainda outra vez, entre o homem que atingiu a plenitude da sabedoria e aquele que ainda lá não chegou é a mesma que se verifica entre um homem são e um convalescente de doença grave e prolongada.

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