Realidade
Em ti o meu olhar fez-se alvorada,
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho,
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho.Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada,
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho.Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci…Tens sido vida fora o meu desejo,
E agora, que te falo, que te vejo,
NĂŁo sei se te encontrei, se te perdi…
Passagens sobre Alvorada
39 resultadosUm Soneto
A vez primeira que eu te vi, em meio
Das harmonias de uma valsa, elado
O lábio trêmulo, esplêndido, rosado,
Num riso, um riso de alvoradas cheio.Cheio de febres, em febril anseio
O meu olhar fervente, desvairado
Como um condor de flamas emplumado
Vingou-se a espádua e devorou-te o seio.Depois, delĂrio atroz, loucura imensa!
A alma, o bem, a consciência, a crença
Lancei no incĂŞndio dos olhares teus…Hoje estou pronto Ă lĂvida jornada
Da descrença sem luz, da dor do nada…
Já disse ontem à noite, adeus, a Deus!
A Amiga Deixada
Antiga
cantiga
da amiga
deixada.Musgo da piscina,
de uma água tão fina,
sobre a qual se inclina
a lua exilada.Antiga
cantiga
da amiga
chamada.Chegara tĂŁo perto!
Mas tinha, decerto,
seu rosto encoberto…
Cantava — mais nada.Antiga
cantiga
da amiga
chegada.PĂ©rola caĂda
na praia da vida:
primeiro, perdida
e depois — quebrada.Antiga
cantiga
da amiga
calada.Partiu como vinha,
leve, alta, sozinha,
— giro de andorinha
na mĂŁo da alvorada.Antiga
cantiga
da amiga
deixada.
Campesinas III
As papoulas da saĂşde
Trouxeram-te um ar mais novo,
Ă“ bela filha do povo,
Rosa aberta de virtude.Do campo viçoso e rude
Regressas, como um renovo,
E eu ao ver-te, os olhos movo
De um modo que nunca pude.Bravo ao campo e bravo a seara
Que deram-te a pele clara
SĂŁo rubores de alvorada.Que esses teus beijos agora
Tenham sabores de amora
E de romĂŁ estalada.
FonĂłgrafo
Vai declamando um cĂ´mico defunto.
Uma platéia ri, perdidamente,
Do bom jarreta… E há um odor no ambiente.
A cripta e a pĂł, – do anacrĂ´nico assunto.Muda o registo, eis uma barcarola:
LĂrios, lĂrios, águas do rio, a lua…
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua
Sobre um paul, – extática corola.Muda outra vez: gorjeios, estribilhos
Dum clarim de oiro – o cheiro de junquilhos,
VĂvido e agro! – tocando a alvorada…Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
Quebrou-se agora orvalhada e velada.
Primavera. ManhĂŁ. Que eflĂşvio de violetas!
Natal
1
A voz clamava no Deserto.
E outra Voz mais suave,
LĂrio a abrir, esvoaçar incerto,
TĂmido e alvente, de ave
Que larga o ninho, melodia
Nascente, docemente,
Uma outra Voz se erguia…A voz clamava no Deserto…
Anunciando
A outra Voz que vinha:
Balbuciar de fonte pequenina,
Dando
Ă€ luz da Terra o seu primeiro beijo…
Inefável anúncio, dealbando
Entre as estrelas moribundas.2
Das entranhas profundas
Do Mundo, eco do Verbo, a profecia,
– Ă€ distância de SĂ©culos, – dizia,
Pressentia
Fragor de sismos, o dum mundo ruindo,
Redimindo
Os cárceres do mundo…A voz dura e ardente
Clamava no Deserto…Natal de Primavera,
A nova Luz nascera.
Voz do céu, Luz radiante,
Mais humana e mais doce
E irmĂŁ dos Poetas
Que a voz trovejante
Dos profetas
Solitários.3
A divina alvorada
Trazia
LĂrios no regaço
E rosas.
Natal. Primeiro passo
Da secular Jornada,
Era um canto de Amor
A anunciar Calvários,
IlusĂŁo
Vens todas as madrugadas
prender-te nos meus sonhos,
—estátua de Bizâncio
esculpida em neve!
e poisas a tua mâo
mavia e leve
nas minhas pálpebras magoadas…Vens toda nua, recortada em graça
rebrilhante, iluminada!
Vejo-te cegar
como uma alvorada
de sol!…
E o meu corpo freme,
e a minha alma canta,
como um enamorado rouxinol!Sobre a nudez moça do teu corpo,
dois cisnes erectos
quedam-se cismando em brancas estesias
e na seda roxa
do meu leito,
em rúbidos clarões,
nascem, maceradas,
as orquĂdeas vermelhas
das minhas sensações!…És linda assim; toda nua,
no minuto doce
em que me trazes
a clara oferta do teu corpo
e reclamas firmemente
a minha posse!…Quero prender-me Ă mentira loira
do teu grácil recorte…
E os teus beijos perfumados,
nenĂşfares desfolhados
pela rajada dominante e forte
das minhas crispações,
tombam sobre eu meus nervos
partidos… estilhaçados!……………………….
Acordo. E os teus braços,
muito ao longe,
desfiam ainda
a cabeleira fulva
do sol
por sobre os oiros adormecidos
da minha alcova…Visão bendita!
Afrodite I
Móvel, festivo, trépido, arrolando,
Ă€ clara voz, talvez da turba iriada
De sereias de cauda prateada,
Que vĂŁo com o vento os carmes concertando,O mar, – turquesa enorme, iluminada,
Era, ao clamor das águas, murmurando,
Como um bosque pagĂŁo de deuses, quando
Rompeu no Oriente o pálio da alvorada.As estrelas clarearam repentinas,
E logo as vagas sĂŁo no verde plano
Tocadas de ouro e irradiações divinas;O oceano estremece, abrem-se as brumas,
E ela aparece nua, Ă flor de oceano,
Coroada de um cĂrculo de espumas.
E se um dia hei de ser pĂł, cinza e nada, que seja minha noite uma alvorada, que eu saiba me perder para me encontrar…
Recordam-se VocĂŞs do Bom Tempo d’Outrora
(Dedicatória de introdução a «A Musa em Férias»)
Recordam-se vocĂŞs do bom tempo d’outrora,
Dum tempo que passou e que nĂŁo volta mais,
Quando Ăamos a rir pela existĂŞncia fora
Alegres como em Junho os bandos dos pardais?
C’roava-nos a fronte um diadema d’aurora,
E o nosso coração vestido de esplendor
Era um divino Abril radiante, onde as abelhas
Vinham sugar o mel na balsâmina em flor.
Que doiradas canções nossas bocas vermelhas
NĂŁo lançaram entĂŁo perdidas pelo ar!…
Mil quimeras de glĂłria e mil sonhos dispersos,
Canções feitas sem versos,
E que nĂłs nunca mais havemos de cantar!
Nunca mais! nunca mais! Os sonhos e as esp’ranças
São áureos colibris das regiões da alvorada,
Que buscam para ninho os peitos das crianças.
E quando a neve cai já sobre a nossa estrada,
E quando o Inverno chega Ă nossa alma,entĂŁo
Os pobres colibris, coitados, sentem frio,
E deixam-nos a nós o coração vazio,
Para fazer o ninho em outro coração.
Meus amigos, a vida Ă© um Sol que chega ao cĂşmulo
Quando cantam em nós essas canções celestes;
Quando o homem passar a reconhecer apenas a Imagem Verdadeira e nĂŁo crer em nenhum deus exterior, surgirá a verdadeira alvorada da alma. AtĂ© entĂŁo, repetirá fracassos, recorrendo a espĂritos, homens e imagens.
Rosas Vermelhas
Que estranha fantasia!
Comprei rosas encarnadas
Ă s molhadas
dum vermelho estridente,
tĂŁo rubras como a febre que eu trazia…
– E vim deitá-las contente
na minha cama vazia!Toda a noite me piquei
nos seus agudos espinhos!
E toda a noite as beijei
em desalinhos…A janela toda aberta
meu quarto encheu de luar…
– Na roupa branca de linho,
as rosas,
sĂŁo corações a sangrar…Morrem as rosas desfolhadas…
Matei-as!
Apertadas
Ă s mĂŁos-cheias!Alvorada!
Alvorada!
Veio despertar-me!
Vem acordar-me!Eu vou morrer…
E nĂŁo consigo desprender
dos meus desejos,
as rosas encarnadas,
que morrem esfarrapadas,
na fĂşria dos meus beijos!
Celeste
Vi-te crescer! tu eras a criança
Mais linda, mais gentil, mais delicada:
Tinhas no rosto as cores da alvorada
E o sol disperso pela loira trança.Asas tinhas tambĂ©m, as da esperança…
E de tal sorte eras sutil e alada
Que parecias ave arrebatada
Na luz do Espaço onde a razão descansa!Depois, então, fizeste-te menina,
VisĂŁo de amor, purĂssima, divina,
Perante a qual ainda hoje me ajoelho.Cresceste mais! És bela e moça agora…
Mas eu, que acompanhei toda essa aurora,
Sinto bem quanto estou ficando velho.
Sempre E Sempre
De longe ou perto, juntas, separadas,
Olhando sempre os mesmos horizontes,
Presas, unidas nossas duas fontes
Gêmeas, ardentes, novas, inspiradas;Vendo cair as lágrimas prateadas,
Sentindo o coro harmĂ´nico das fontes,
Sempre fitando a cĂşspide dos montes
E o rosicler das frescas alvoradas;Sempre embebendo os lĂmpidos olhares
Na claridĂŁo dos humildes luares,
No loiro sol das crenças se embebendo,Vão nossas almas brancas e floridas
Pelo futuro azul das nossas vidas,
Sempre se amando, sempre se querendo.
O Teu Aniversário
Pediste-me sorrindo, Ăł minha flor gentil,
Uns versos Ă s tuas vinte alvoradas de Abril.
Vinte anos já!… nĂŁo creio, estás equivocada…
Enganas-te. Eu irei perguntar Ă alvorada
Quantas vezes pousou em ĂŞxtase, ao de leve,
A sua boca de rosa em tua fronte de neve.
Vinte anos! Podes crer, pomba que eu idolatro,
Que se o corpo fez vinte, a alma, nĂŁo: fez quatro.
A tua alma nasceu inefável, divina,
Para ser sempre grande e sempre pequenina.
É como a estrela d’alva; enche o seu esplendor
O Mundo, e ela nĂŁo enche o cálix duma flor!…
Amar!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar sĂł por amar: Aqui… alĂ©m…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Amar! Amar! E nĂŁo amar ninguĂ©m!Recordar? Esquecer? Indiferente!…
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!E se um dia hei de ser pĂł, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…
A Minha Filha
(Vendo-a dormir)
Que alma intacta e delicada!
Que argila pura e mimosa!
É a estrela d’alvorada
Dentro dum botĂŁo de rosa!E, enquanto dormes tranquila,
Vejo o divino esplendor
Da alma a sair da argila,
Da estrela a sair da flor!Anjos, no azul inocente,
Sobre o teu hálito leve
Desdobram candidamente,
Em pálio, as asas de neve…E eu, urze má das encostas,
Eu sinto o dever sagrado
De te beijar— de mãos postas!
De te abençoar — ajoelhado!
Ó pátria desperta
NĂŁo curves a fronte
Que enxuga-te os prantos o Sol do Equador.
NĂŁo miras na fĂmbria do vasto horizonte
A luz da alvorada de um dia melhor.
Almas Indecisas
Almas ansiosas, trĂŞmulas, inquietas,
Fugitivas abelhas delicadas
Das colméias de luz das alvoradas,
Almas de melancólicos poetas.Que dor fatal e que emoções secretas
vos tornam sempre assim desconsoladas,
Na pungĂŞncia de todas as espadas,
Na dolĂŞncia de todos os ascetas?!Nessa esfera em que andais, sempre indecisa,
Que tormento cruel vos nirvaniza,
Que agonias titânicas são estas?!Por que não vindes, Almas imprevistas,
Para a missĂŁo das lĂmpidas Conquistas
E das augustas, imortais Promessas?!