Bem que me agasalho. Galhos sem folhas lá fora parecem ter frio.
Passagens de Anibal Beça
128 resultadosCantares Bacantes (I)
O mar lava a concha cava
e cava concha lava o mar
como a língua limpa lava
tua concha antes de amar.Delírio da estrela d’alva
mistério da preamar
vinda e volta abrindo a aldrava
da concha do paladar.Oh minhas parcas de mel!
Eu me afogo em mar vinho
à espera de algum batel.Sou cantador de cordel:
estórias sabor marinho
bacantes da moscatel.
Presença
Só saberei de ti pelos teus olhos,
que falam mais que a tua fala pouca.
Doce memória (irei buscar-te sempre)
encilhada a essa égua dos minutos,onde os ponteiros trotam meus desejos,
avivando a paisagem na lembrança
vinda de ti, e em mim reconstruída.
Essa presença, em passos e pegadas,passeia no meu corpo, agora estrada,
caminho teu; submisso, eis meu segredo.
Que abrigar teus pés, possa, novamente,o meu sereno peito fatigado.
Este que anseia teu corpo presente
olho no olho na véspera do gozo.
Grito de agonia: periquito na jaqueira preso na resina.
Fugiu-me da mão no vento com folhas secas a carta esperada.
Uma Palavra
Meu canto busca sempre uma palavra
que seja companheira na canção
da minha voz que canta e se declara:
viver a vida inteira de emoção.Uma palavra só não se prepara
puxando outra palavra sem razão
na vida que se encanta e se dispara
no claro tiro cego de paixão.Viver a arte que procura ver
os lábios desbotados da linguagem
deixando a claridade me envolverno sopro que me leva na paisagem
amaciando a pena ao escrever
teu nome, meu amor, minha viagem
Ars De Eros
Enquanto vias vi fôrmas e formas
mas sabia que vinhas ver os versos
depois de veres várias folhas mortas
desse outono jardim nosso em regressos.Não adianta rosnar pantera morna
o tempo rasga sempre um vento espesso
embora não queiramos ser da horta
estrume de um adubo tão perverso,E não me venha viúva simbolista
reclamar dos poemas tão transgressos
pois te mostro a visão livre e anarquista.Se é para ver que venha então diverso
o modo de te amar mais tribalista
que morro nesse clímax dos possessos.
Soneto Para Eugênia
O tempo que te alonga todo dia
é duração que colhes na paisagem,
tão distante e tão perto em ventania,
sitiando limites na viagem.Desse mar que se afasta em maresia
o vago em teu olhar se faz aragem
nas vagas que se vão em vaga via
vigia de teus pés no vão das margens.E o fio da teia vai fugindo fosco,
irreparável névoa pressentida
nos livros que não leste, nesses poucosmomentos que sobravam da medida.
Angústia de ponteiros, sol deposto,
no tédio das desoras foge a vida.Vida que bem mereces por inteiro,
e é pouca a que te dou de companheiro.
Toda Palavra
Toda palavra voa nebulosa
até chegar latente ao nosso chão.
Pousa sem pressa ou prece em mansa prosa
caída chuva breve de verão.Toda palavra se abre generosa
para abrigar segredos num porão
lá onde sobram sombras sinuosas
levantando a poeira no perdão.Toda palavra veste-se vistosa
para fazer afagos na paixão
uma pantera em paz, porém tinhosa.Toda palavra enfim é explosão
que o mundo só é mundo por osmose
pois há um outro ser no coração
Toada Para Solo De Ocarina
Fio tênue do céu em claridade
tece esse manto gris meu agasalho
colhido pelos muros da cidade:
mucosa verde musgo que se espalhacomo tapete denso em chão de jade
Meus pés de crivo cravam esse atalho
riscando seu grafite no mar que arde
o fogo-de-santelmo em céu talhadoNesse caminho caio em minha sina
caio no mar que lava essa lavoura
num barco ébrio que sempre desafinaE colho o sal da noite a lua moura
crescente luz de foice me assassina
e me morro no haxixe com Rimbaud
Brilha mais ereto o penhasco sob o sol: ah o verão fértil.
Menino no banheiro sola um sonho só de gozo entre a mão e o chuveiro.
Teus olhos formam das ázimas lágrimas rios que retornam ao mar
Czardas Para Serrotes Com Arcos De Violino E Berimbau De Lata
Esta anábase é de hora aberta desnudada
tão desmedida como foi a minha vida
de nada me arrependo apenas me perdôo
por que meu vôo nem sequer se iniciouE dessas nuvens que me espaçam esgarçadas
trapos e cordas dissonantes dessa lira
são acidentes de percurso em que recorro
como um Zenão o parafuso desse vôoAssim nessa colméia em ziper me percorro
como um zangão no zigue-zague nos hexágonos
ando à procura de uma abelha desvairadaque me acompanhe na aventura pelos pântanos
exorcizando a desrazão desses escorços
essa não-ave desgarrada do meu nada
Vento de verão vem com bafo de mormaço – garoa ameniza.
Na noite de inverno o frio não é só no corpo: as tábuas estalam.
Soneto Da Sentida Solidão
A falta é complemento da saudade,
servida em larga ausência nos ponteiros,
bandeja dos segundos que se evade,
em pasto das desoras, sorrateira.Estar é seduzir sem muito alarde,
no avaro aqui agora companheiro,
o porto da atenção que se me guarde
o ser presente da sanha viageira.Partir é sentimento de voltar,
liberta, eu sei, no vento e seu afoite,
navega a sina em rasa preamar;ela, essa ausente, é dona e meu açoite,
no seu impulso presto em navegar,
vai se enfunando em névoa pela noite.
Soneto Ao Falso Fingidor
Há poeta que se ampara na velhice
como um cego que se apóia na bengala
tateando tristes trilhas da sandice
na claudicante fala que se entala.Empalado nos versos da mesmice
seus poemas-burocratas cospem lágrimas
num chororô nostálgico em pieguice
à procura de glória em ante-salas.Colhe, assim, as benesses oficiais,
prebendas, sinecuras, doutorados,
honoríficas causas e que tais.Em vala rasa cala desolado
despindo-se do linho das vestais
para juntar-se ao sono de olvidados.
Ah, a sensualidade… palmeiras se abraçando cúmplices do vento.
Silêncio de outono. Nem o grito do carteiro… cochicho de folhas.