Desde que Te Conheço
invade-me uma grande calma quando penso em ti. sinto-me bem, disposto para as mais difíceis tarefas, para os mais complicados e demorados trabalhos. já não é na turbulência das noites (vividas na pressa) que encontro a vontade de escrever. as noites cansaram-me, ia acabando comigo de vez na desordem e na ânsia de viver. claro que continuo a sair à noite e a amar esse espaço fantástico que é a cidade. esta cidade que amo, mas tu estás nela também. a cidade mudou desde o instante em que nela entraste. já não percorro a noite numa angústia que se esquece e anula na bebedeira, ao nascer do dia. desde que te conheço tenho levado uma vida bastante regrada. deixei de beber. deixei de andar por aí a ver se alguém me pega ou se eu pego em alguém. acabou. tenho-te e sinto uma felicidade estranha a dominar-me. trabalho calmamente, com vagar, e avanço sem ser aos tropeções. leio e releio o que escrevo. tudo se torna, de texto em texto, mais preciso, mais próximo do que penso. escrevo somente (como de resto sempre fiz) o que me dá gozo e ao mesmo tempo me perturba. por isso odeio tanto reler-me.
Passagens sobre Ânsia
167 resultadosUm Sentido Para a Vida
Valeu-me a pena viver? Fui feliz, fui feliz no meu canto, longe da papelada ignóbil. Muitas vezes desejei, confesso-o, a agitação dos traficantes e os seus automóveis, dos políticos e a sua balbúrdia – mas logo me refugiava no meu buraco a sonhar. Agora vou morrer – e eles vão morrer.
A diferença é que eles levam um caixão mais rico, mas eu talvez me aproxime mais de Deus. O que invejei – o que invejo profundamente são os que podem ainda trabalhar por muitos anos; são os que começam agora uma longa obra e têm diante de si muito tempo para a concluir. Invejo os que se deitam cismando nos seus livros e se levantam pensando com obstinação nos seus livros. Não é o gozo que eu invejo (não dou um passo para o gozo) – é o pedreiro que passa por aqui logo de manhã com o pico às costas, assobiando baixinho, e já absorto no trabalho da pedra.
Se vale a pena viver a vida esplêndida – esta fantasmagoria de cores, de grotesco, esta mescla de estrelas e de sonho? … Só a luz! só a luz vale a vida! A luz interior ou a luz exterior.
Em Busca da Beleza
Soam vãos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa
Desse teu sonho, que perturba a vista.Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria idéia em nós dessa beleza
Um infinito de nós mesmos dista.Nem à nossa alma definir podemos
A Perfeição em cuja estrada a vida,
Achando-a intérmina, a chorar perdemos.O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia da Coisa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.
Barrow-on-Furness
I
Sou vil, sou reles, como toda a gente
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.Justificar-me? Sou quem todos são…
Modificar-me? Para meu igual?…
— Acaba já com isso, ó coração!II
Deuses, forças, almas de ciência ou fé,
Eh! Tanta explicação que nada explica!
Estou sentado no cais, numa barrica,
E não compreendo mais do que de pé.Por que o havia de compreender?
Pois sim, mas também por que o não havia?
Água do rio, correndo suja e fria,
Eu passo como tu, sem mais valer…Ó universo, novelo emaranhado,
Que paciência de dedos de quem pensa
Em outras cousa te põe separado?
Orientar Filosoficamente a Vida
A ânsia de uma orientação filosófica da vida nasce da obscuridade em que cada um se encontra, do desamparo que sente quando, em carência de amor, fica o vazio, do esquecimento de si quando, devorado pelo afadigamento, súbito acorda assustado e pergunta: que sou eu, que estou descurando, que deverei fazer?
O auto-esquecimento é fomentado pelo mundo da técnica. Pautado pelo cronómetro, dividido em trabalhos absorventes ou esgotantes que cada vez menos satisfazem o homem enquanto homem, leva-o ao extremo de se sentir peça imóvel e insubstituivel de um maquinismo de tal modo que, liberto da engrenagem, nada é e não sabe o que há-de fazer de si. E, mal começa a tomar consciência, logo esse colosso o arrasta novamente para a voragem do trabalho inane e da inane distracção das horas de ócio.
Porém, o pendor para o auto-esquecimento é inerente à condição humana. O homem precisa de se arrancar a si próprio para não se perder no mundo e em hábitos, em irreflectidas trivialidades e rotinas fixas.
Filosofar é decidirmo-nos a despertar em nós a origem, é reencontrarmo-nos e agir, ajudando-nos a nós próprios com todas as forças.
Na verdade a existência é o que palpavelmente está em primeiro lugar: as tarefas materiais que nos submetem às exigências do dia-a-dia.
Palavras
As palavras do amor expiram como os versos,
Com que adoço a amargura e embalo o pensamento:
Vagos clarões, vapor de perfumes dispersos,
Vidas que não têm vida, existências que invento;Esplendor cedo morto, ânsia breve, universos
De pó, que o sopro espalha ao torvelim do vento,
Raios de sol, no oceano entre as águas imersos
-As palavras da fé vivem num só momento…Mas as palavras más, as do ódio e do despeito,
O “não!” que desengana, o “nunca!” que alucina,
E as do aleive, em baldões, e as da mofa, em risadas,Abrasam-nos o ouvido e entram-nos pelo peito:
Ficam no coração, numa inércia assassina,
Imóveis e imortais, como pedras geladas.
Amor Místico
Quando a minha alma nasceu
Para onde olhou primeiro,
E viu tudo um nevoeiro,
Foi lá cima para o céu…
Que a alma nunca lhe passa
De ideia a fonte da graça!Em toda a ânsia de luz,
Em toda a ânsia de gozo,
Sempre aquele olhar ansioso
Nesse ideal de Jesus…
Nesse bem que não se exprime…
Êxtase de amor sublime!Olhava da solidão,
Onde se sentia presa,
Com a natural tristeza
Dos ferros de uma prisão…
À espera sempre da hora
Que lhe raiasse a aurora!Bem a chamavam de cá
Sempre os cuidados do dia;
Ela, que nunca os ouvia,
Olhava, mas para lá…
Donde ela mesmo viera,
Donde todo o bem se espera!Um dia (nem eu sei qual,
Que em suma foi isso há tanto!)
Vê com uns olhos de espanto
Romper-se a névoa geral;
E como um sol recortado
Nesse mar enevoado…E dentro desse clarão,
Como em círculo de prata,
Que imagem se lhe retrata,
Fosse verdade ou visão?
Aberração
Na velhice automática e na infância,
(Hoje, ontem, amanhã e em qualquer era)
Minha hibridez é a súmula sincera
Das defectividades da Substância.Criando na alma a estesia abstrusa da ânsia,
Como Belerofonte com a Quimera
Mato o ideal; cresto o sonho; achato a esfera
E acho odor de cadáver na fragrância!Chamo-me Aberração. Minha alma é um misto
De anomalias lúgubres. Existo
Como o cancro, a exigir que os sãos enfermem…Teço a infâmia; urdo o crime; engendro o iodo
E nas mudanças do Universo todo
Deixo inscrita a memória do meu gérmen!
Estatuto e Eternidade
Não me entendes, caríssimo Sebastião: dizes que misturo tudo. Dizes que é incomparável a liberdade de que hoje dispomos para imaginar, escolher, criar, viver. Pelo menos na nossa civilização, dizes. E eu rio-me do que tu dizes, e tu zangas-te com o meu riso, cuidando, como tanto se cuida naquilo a que chamas a nossa civilização, que me rio de ti. Querido Sebastião, rio-me porque aquilo a que chamas a nossa civilização ainda nem sequer começou. Importa-me a liberdade, sim, mas vejo que a usamos ainda e apenas como uma outra espécie de grilhão. Vestimos a liberdade como outrora vestíamos a submissão; ela não é mais do que um traje de baile, com um carnet em que apontamos os nomes daqueles com quem dançaremos para brilhar diante dos outros. Democratizou-se o anseio de estatuto, mas não conseguimos ainda sair dele. É isso que vejo, Sebastião.
Som e sentido, continente e conteúdo dilacerando-se, hoje como sempre, até que nada reste sob a superfície hiperbólica da realidade. Dizes que aquilo a que eu chamo estatuto pode também chamar-se ânsia de eternidade. Mas eu vejo tão pouca eternidade nos sonhos das pessoas, Sebastião. A eternidade que somos conduzidos a aspirar é a da juventude –
Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos – a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo.
Chove ? Nenhuma Chuva Cai…
Chove? Nenhuma chuva cai…
Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia ?Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu…E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento…E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro… E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim…Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas…No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convésNo meu cansaço perdido entre os gelos,
Esqueço-Me Das Horas Transviadas
Esqueço-me das horas transviadas
o Outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros…
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas…Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco… Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas…No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convésNo meu cansaço perdido entre os gelos
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância…
Taça De Coral
Lícias, pastor – enquanto o sol recebe,
Mugindo, o manso armento e ao largo espraia.
Em sede abrasa, qual de amor por Febe,
– Sede também, sede maior, desmaia.Mas aplacar-lhe vem piedosa Naia
A sede d’água: entre vinhedo e sebe
Corre uma linfa, e ele no seu de faia
De ao pé do Alfeu tarro escultado bebe.Bebe, e a golpe e mais golpe: – “Quer ventura
(Suspira e diz) que eu mate uma ânsia louca,
E outra fique a penar, zagala ingrata!Outra que mais me aflige e me tortura,
E não em vaso assim, mas de uma boca
Na taça de coral é que se mata”,
Paira No Ambíguo Destinar-Se
Paira no ambíguo destinar-se
Entre longínquos precipícios,
A ânsia de dar-se preste a dar-se
Na sombra vaga entre suplícios,Roda dolente do parar-se
Para, velados sacrifícios,
Não ter terraços sobre errar-se
Nem ilusões com interstícios,Tudo velado, e o ócio a ter-se
De leque em leque, a aragem fina
Com consciência de perder-se…Tamanha a flama e pequenina
Pensar na mágoa japonesa
Que ilude as sirtes da Certeza.
Por cultura entendo a mais intensa vida interior, a de mais batalha, a de mais inquietação, a de mais ânsia.
Passagem das Horas
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite… Acordo de repente
Yat-iô–ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô … Ghi-…
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)…
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar…
Tempestades em torno ao Guardaful…
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada…
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo…Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei…
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos…
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu,
O Valor da Ingenuidade
O maior perigo que corre o ingénuo: o de querer ser esperto. Tão ingénuo que cuida, coitado, de que alguma vez no mundo o conhecimento valeu mais do que a ingenuidade de cada um. A ingenuidade é o legítimo segredo de cada qual, é a sua verdadeira idade, é o seu próprio sentimento livre, é a alma do nosso corpo, é a própria luz de toda a nossa resistência moral.
Mas os ingénuos são os primeiros que ignoram a força criadora da ingenuidade, e na ânsia de crescer compram vantagens imediatas ao preço da sua própria ingenuidade.
Raríssimos foram e são os ingénuos que se comprometeram um dia para consigo próprios a não competir neste mundo senão consigo mesmos. A grande maioria dos ingénuos desanima logo de entrada e prefere tricher no jogo de honra, do mérito e do valor. São eles as próprias vítimas de si mesmos, os suicidas dos seus legítimos poetas, os grotescos espanatalhos da sua própria esperteza saloia.
Bem haja o povo que encontrou para o seu idioma esta denunciante expressão da pessoa que é vítima de si mesma: a esperteza saloia. A esperteza saloia representa bem a lição que sofre aquele que não confiou afinal em si mesmo,
Sentimentos Carnais
Sentimentos carnais, esses que agitam
Todo o teu ser e o tornam convulsivo…
Sentimentos indômitos que gritam
Na febre intensa de um desejo altivo.Ânsias mortais, angústias que palpitam,
Vãs dilacerações de um sonho esquivo,
Perdido, errante, pelos céus, que fitam
Do alto, nas almas, o tormento vivo.Vãs dilacerações de um Sonho estranho,
Errante, como ovelhas de um rebanho,
Na noite de hóstias de astros constelada…Errante, errante, ao turbilhão dos ventos,
Sentimentos carnais, vãos sentimentos
De chama pelos tempos apagada…
Vivemos Para os Momentos Futuros, e Não o Presente
A ânsia de matar tempo, de liquidar o espaço de dias entre um acontecimento e o que lhe sucede, transmite, tanto em casos de amor como em outros, fins importantes, um estado de alma que se preocupa exclusivamente em atingir esse alvo previamente estabelecido. Não se pensa em mais nada. Semelhante à situação criada quando se sabe de antemão que se vai encontrar determinada pessoa que nos interessa muito. Fica-se incapaz de articular palavra, de estreitar vínculo com quem quer que seja que se nos atravesse no caminho. Está-se a viver em outrem, num estado fora da relação humana do dia a dia. Nem sequer ouvimos os sons, arrepiamos a pele ao tomar conhecimento consciente de notícias que já sabíamos de antemão pertencerem ao domínio público. Esta é também a ânsia do suicida que nada mais faz entre a decisão de cometer o homicídio e a prática do acto extremo.
Caminho Monótono
E por que hei de negar?…Ah! o encanto da estrada
abrindo em cada curva um leque de paisagem,
e o mistério da casa escondida e encantada
que mora sob a sombra amiga da folhagemE por que hei de negar? Se isso é a vida passada;
se o fastio espantou o encanto da miragem
Hoje – o olhar distraído, e a alma já cansada
repetem todo dia e sempre a mesma viagemE por que hei de negar? Ah! Aquelas ânsias loucas
dos beijos que cantavam sempre em nossas bocas
e das mãos, não sabendo nunca onde pousar…Hoje… por mais que venhas, sempre estou sozinho…
E por que hei de negar? Se teu corpo é um caminho
onde de olhos fechados posso caminhar?…