A um Crucifixo
Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de tua palavra (Ăł Verbo!) o som fremente?
Morreste… ah! dorme em paz! nĂŁo volvas, que descrente
Arrojaras de novo Ă campa os membros lassos…Agora, como entĂŁo, na mesma terra erma,
A mesma humanidade Ă© sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo cĂ©u, frio como um sudário…E agora, como entĂŁo, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —
Passagens de Antero de Quental
98 resultadosDespondency
Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade…
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram…Deixá-la ir, a vela, que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do Sul levantaram…Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
Ă€ morte queda, Ă morte silenciosa…Deixá-la ir, a nota desprendida
D’um canto extremo… e a Ăşltima esperança…
E a vida… e o amor… Deixá-la ir, a vida!
Consulta
Chamei em volta do meu frio leito
As memĂłrias melhores de outra idade,
Formas vagas, que Ă s noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito…E disse-lhes: No mundo imenso e estreito
Valia a pena, acaso, em ansiedade
Ter nascido? Dizei-mo com verdade,
Pobres memĂłrias que eu ao seio estreito.Mas elas perturbaram-se – coitadas!
E empalideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena…E cada uma delas, lentamente,
Com um sorriso mĂłrbido, pungente,
Me respondeu: – NĂŁo, nĂŁo valia a pena!
Desesperança
Vai-te na aza negra da desgraça,
Pensamento de amor, sombra d’uma hora,
Que abracei com delĂrio, vai-te, embora,
Como nuvem que o vento impele… e passa.Que arrojemos de nĂłs quem mais se abraça,
Com mais ancia, á nossa alma! e quem devora
D’essa alma o sangue, com que vigora,
Como amigo comungue á mesma taça!Que seja sonho apenas a esperança,
Enquanto a dor eternamente assiste.
E só engano nunca a desventura!Se era silêncio sofrer fora vingança!..
Envolve-te em ti mesma, Ăł alma triste,
Talvez sem esperança haja ventura!
Tese e AntĂtese
I
Já não sei o que vale a nova idéia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, Ă luz da barricada,
Como bacchante apĂłs lĂşbrica ceia…Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
Respira fumo e fogo embriagada:
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de Medeia!Um século irritado e truculento
Chama Ă epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz…Mas a idea Ă© n’um mundo inalterável,
N’um cristalino cĂ©u, que vive estável…
Tu, pensamento, nĂŁo Ă©s fogo, Ă©s luz!II
N’um cĂ©u intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectáculo divino.Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante:
Enche o ar da terra o seu pulmĂŁo possante…
Cá da terra blasfema ou ergue um hino…A idĂ©ia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar sĂŁo chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!Combatei pois na terra árida e bruta,
Ă€ Virgem SantĂssima
Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia
N’um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizĂvel ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza…NĂŁo era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade…
Era outra luz, era outra suavidade,
Que atĂ© nem sei se as há na natureza…Um mĂstico sofrer… uma ventura
Feita sĂł do perdĂŁo, sĂł da ternura
E da paz da nossa hora derradeira…Ă“ visĂŁo, visĂŁo triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa…
E deixa-me sonhar a vida inteira!
Pequenina
Eu bem sei que te chamam pequenina
E ténue como o véu solto na dança,
Que Ă©s no juĂzo apenas a criança,
Pouco mais, nos vestidos, que a menina…Que Ă©s o regato de água mansa e fina,
A folhinha do til que se balança,
O peito que em correndo logo cansa,
A fronte que ao sofrer logo se inclina…Mas, filha, lá nos montes onde andei,
Tanto me enchi de angĂşstia e de receio
Ouvindo do infinito os fundos ecos,Que não quero imperar nem já ser rei
SenĂŁo tendo meus reinos em teu seio
E súbditos, criança, em teus bonecos!
Disputa em FamĂlia
I
Sai das nuvens, levanta a fronte e escuta
O que dizem teus filhos rebelados,
Velho Jeová de longa barba hirsuta,
Solitário em teus Céus acastelados:« — Cessou o império enfim da força bruta!
NĂŁo sofreremos mais, emancipados,
O tirano, de mĂŁo tenaz e astuta,
Que mil anos nos trouxe arrebanhados!Enquanto tu dormias impassĂvel,
Topámos no caminho a liberdade
Que nos sorriu com gesto indefinĂvel…Já provámos os frutos da verdade…
Ă“ Deus grande, Ăł Deus forte, Ăł Deus terrĂvel.
NĂŁo passas d’uma vĂŁ banalidade! — »II
Mas o velho tirano solitário,
De coração austero e endurecido,
Que um dia, de enjoado ou distraido,
Deixou matar seu filho no Calvário,Sorriu com rir estranho, ouvindo o vário
Tumultuoso coro e alarido
Do povo insipiente, que, atrevido,
Erguia a voz em grita ao seu sacrário:« — Vanitas vanitatum! (disse). É certo
Que o homem vão medita mil mudanças,
Sem achar mais do que erro e desacerto.Muito antes de nascerem vossos pais
D’um barro vil,
Redenção
I
Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando Ă s vezes, n’um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento…Verbo crepuscular e Ăntimo alento
Das cousas mudas; psalmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?Um espĂrito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.E eu compreendo a vossa lĂngua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha…
Almas irmĂŁs da minha, almas cativas!II
Não choreis, ventos, árvores e mares,
Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares…Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D’esse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares…Almas no limbo ainda da existĂŞncia,
Acordareis um dia na ConsciĂŞncia,
E pairando, já puro pensamento,Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vĂŁo…
E acabará por fim vosso tormento.
Os Vencidos
Tres cavaleiros seguem lentamente
Por uma estrada erma e pedregosa.
Geme o vento na selva rumorosa,
Cae a noite do céo, pesadamente.Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas,
TĂŞm os corceis poentos e abatidos,
Em desalinho trazem os vestidos,
Das feridas lhe cae o sangue, em gotas.A derrota, traiçoeira e pavorosa,
As fontes lhes curvou, com mĂŁo potente.
No horisonte escuro do poente
Destaca-se uma mancha sanguinosa.E o primeiro dos três, erguendo os braços,
Diz n’um soluço: «Amei e fui amado!
Levou-me uma visĂŁo, arrebatado,
Como em carro de luz, pelos espaços!Com largo vôo, penetrei na esphera
Onde vivem as almas que se adoram,
Livre, contente e bom, como os que moram
Entre os astros, na eterna primavera.Porque irrompe no azul do puro amor
O sopro do desejo pestilente?
Ai do que um dia recebeu de frente
O seu halito rude e queimador!A flor rubra e olorosa da paixĂŁo
Abre languida ao raio matutino,
Mas seu profundo calix purpurino
Só reçuma veneno e podridão.
Metempsicose
Ausentes filhas do prazer: dizei-me!
Vossos sonhos quais sĂŁo, depois da orgia?
Acaso nunca a imagem fugidia
Do que fostes, em vĂłs se agita e freme?N’outra vida e outra esfera, aonde geme
Outro vento, e se acende um outro dia,
Que corpo tinheis? que matéria fria
Vossa alma incendiou, com fogo estreme?VĂłs fostes nas florestas bravas feras,
Arrastando, leĂ´as ou pantheras,
De dentadas de amor um corpo exangue…Mordei pois esta carne palpitante,
Feras feitas de gaze flutuante…
Lobas! leĂ´as! sim, bebei meu sangue!
O Que Diz A Morte
Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem;
E os que cheios de mágoa e tédio encaram
As prĂłprias obras vĂŁs, de que escarnecem…Em mim, os Sofrimentos que nĂŁo saram,
PaixĂŁo, DĂşvida e Mal, se desvanecem.
As torrentes da Dor, que nunca param,
Como num mar, em mim desaparecem. –Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso intérprete sagrado
Das cousas invisĂveis, muda e fria,É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.
Amaritudo
SĂł por ti, astro ainda e sempre oculto,
Sombra do Amor e sonho da Verdade,
Divago eu pelo mundo e em ansiedade
Meu próprio coração em mim sepulto.De templo em templo, em vão, levo o meu culto,
Levo as flores d’uma Ăntima piedade.
Vejo os votos da minha mocidade
Receberem somente escárnio e insulto.Ă€ beira do caminho me assentei…
Escutarei passar o agreste vento,
Exclamando: assim passe quando amei! —Oh minh’alma, que creste na virtude!
O que será velhice e desalento,
Se isto se chama aurora e juventude?
Tormanto do Ideal
Conheci a Beleza que nĂŁo morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vĂŞ tudo, a maior nau ou torre,Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cĂ´r, bem como a nuvem que erra
Ao pĂ´r do sol e sobre o mar discorre.Pedindo Ă fĂłrma, em vĂŁo, a idea pura,
Tropéço, em sombras, na materia dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.Recebi o baptismo dos poetas,
E assentado entre as fĂłrmas incompletas
Para sempre fiquei palido e triste.
Mors – Amor
Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terrĂveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
NĂŁo sei que horror nas crinas agitadas?Um cavaleiro de expressĂŁo potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: “Eu sou a morte!”
Responde o cavaleiro: “Eu sou o Amor!”
Elogio da Morte
I
Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acordo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me pára o coração robusto.Não que de larvas me povôe a mente
Esse vácuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razĂŁo por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo…Nem fantasmas nocturnos visionários,
Nem desfilar de espectros mortuários,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte…Nada! o fundo dum poço, hĂşmido e morno,
Um muro de silĂŞncio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcrais da Morte.II
Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento.
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a fantasia.Atravesso, no escuro, a névoa fria
D’um mundo estranho, que povĂ´a o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
SĂł das visões da noite se confia.Que mĂsticos desejos me enlouquecem?
Do Nirvana os abismos aparecem,
A meus olhos, na muda imensidade!N’esta viagem pelo ermo espaço,
Indiferença em PolĂtica
Um dos piores sintomas de desorganização social, que num povo livre se pode manifestar, Ă© a indiferença da parte dos governados para o que diz respeito aos homens e Ă s cousas do governo, porque, num povo livre, esses homens e essas cousas sĂŁo os sĂmbolos da actividade, das energias, da vida social, sĂŁo os depositários da vontade e da soberania nacional.
Que um povo de escravos folgue indiferente ou durma o sono solto enquanto em cima se forjam as algemas servis, enquanto sobre o seu mesmo peito, como em bigorna insensĂvel se bate a espada que lho há-de trespassar, Ă© triste, mas compreende-se porque esse sono Ă© o da abjecção e da ignomĂnia.
Mas quando Ă© livre esse povo, quando a paz lhe Ă© ainda convalescença para as feridas ganhadas em defesa dessa liberdade, quando começa a ter consciĂŞncia de si e da sua soberania… que entĂŁo, como tomado de vertigem, desvie os olhos do norte que tanto lhe custara a avistar e deixe correr indiferente a sabor do vento e da onda o navio que tanto risco lhe dera a lançar do porto; para esse povo Ă© como de morte este sintoma, porque Ă© o olvido da ideia que há pouco ainda lhe custara tanto suor tinto com tanto sangue,
Psalmo
Esperemos em Deus! Ele há tomado
Em suas mĂŁos a massa inerte e fria
Da matĂ©ria impotente e, n’um sĂł dia,
Luz, movimento, acção, tudo lhe há dado.Ele, ao mais pobre de alma, há tributado
Desvelo e amor: ele conduz Ă via
Segura quem lhe foge e se extravia,
Quem pela noite andava desgarrado.E a mim, que aspiro a ele, a mim, que o amo,
Que anseio por mais vida e maior brilho.
Ha-de negar-me o termo d’este anseio?Buscou quem o nĂŁo quiz; e a mim, que o chamo,
Ha-de fugir-me, como a ingrato filho?
Ă“ Deus, meu pai e abrigo! espero!… eu creio!
Aspiração
Meus dias vĂŁo correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece…
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gosos.Minh’alma, Ăł Deus! a outros cĂ©us aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira…PorĂ©m do presentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!
Alarga os Teus Horizontes
Por que é que combateis? Dir-se-á, ao ver-vos,
Que o Universo acaba aonde chegam
Os muros da cidade, e nem há vida
Além da órbita onde as vossas giram,
E além do Fórum já não há mais mundo!Tal é o vosso ardor! tão cegos tendes
Os olhos de mirar a prĂłpria sombra,
Que dir-se-á, vendo a força, as energias
Da vossa vida toda, acumuladasSobre um só ponto, e a ânsia, o ardente vórtice,
Com que girais em torno de vĂłs mesmos,
Que limitais a terra Ă vossa sombra…
Ou que a sombra vos torna a terra toda!
Dir-se-á que o oceano imenso e fundo e eterno,
Que Deus há dado aos homens, por que banhem
O corpo todo, e nadem Ă vontade,
E vaguem a sabor, com todo o rumo,
Com todo o norte e vento, vĂŁo e percam-se
De vista, no horizonte sem limites…
Dir-se-á que o mar da vida Ă© gota d’água
Escassa, que nas mĂŁos vos há caĂdo,
De avara nuvem que fugiu, largando-a…
Tamanho Ă© o Ăłdio com que a uns e a outros
A disputais,