Passagens de Artur de Azevedo

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Arrufos

Não há no mundo quem amantes visse
Que se quisessem como nos queremos;
Mas hoje uma questiúncula tivemos
Por um caprichosinho, uma tolice.

– Acabemos com isto! ela me disse,
E eu respondi-lhe assim: – Pois acabemos!
– E fiz o que se faz em tais extremos:
Peguei no meu chapéu com fanfarrice,

E, dando um gesto de desdém profundo,
Saí cantarolando. Está bem visto
Que a forma ali contradizia o fundo.

Ela escreveu. Voltei. Nem Jesus Cristo,
Nem minha Mãe, voltando agora ao mundo,
Foram capazes de acabar com isto!

Musa Infeliz

Todo o cuidado nestas rimas ponho;
Musa, peço-te, pois, que me remetas
Versos que tenham rútilas facetas,
E não revelem trovador bisonho.

Meia noite bateu. Sai risonho…
Brilhava – oh, musa, não me comprometas! –
O mais belo de todos os planetas
N’um céu que parecia um céu de sonho.

O mais belo de todos os prazeres
Gozei, à doce luz dos olhos pretos
Da mais bela de todas as mulheres!

Pobres quartetos! míseros tercetos!…
Musa, musa infeliz, dar-me não queres.
O mais belo de todos os sonetos!…

Miserável

A Carvalho Junior.

O noivo, como noivo, é repugnante:
Materialão, estúpido, chorudo,
Arrotando, a propósito de tudo,
O ser comendador e negociante.

Tem a viuvinha, a noiva interessante,
Todo o arsenal de um poeta guedelhudo:
Alabastro, marfim, coral, veludo,
Azeviche, safira e tutti quanti.

Da misteriosa alcova a porta geme,
O noivo dorme n’um lençol envolto…
Entra a viuvinha, a noiva… Oh, céu, contem-me!

Ela deita-se… espera… Qual! Revolto,
O leito estala… Ela suspira… freme…,
E o miserável dorme a sono solto!…

Por Decoro

Quando me esperas, palpitando amores,
E os grossos lábios úmidos me estendes,
E do teu corpo cálido desprendes
Desconhecido olor de estranhas flores;

Quando, toda suspiros e fervores,
Nesta prisão de músculos te prendes,
E aos meus beijos de sátiro te rendes,
Furtando as rosas as púrpureas cores;

Os olhos teus, inexpressivamente,
Entrefechados, lânguidos, tranquilos,
Olham, meu doce amor, de tal maneira,

Que, se olhassem assim, publicamente,
Deveria, perdoa-me, cobri-los
Uma discreta folha de parreira.

Desengano

A pensionista pálida que gosta
(Fundada pretensão!) que a digam bela,
E do colégio, à tarde, na janela,
Para dar-me um sorriso se recosta;

Que me escreve nas férias, de Bemposta,
Aonde vai visitar a parentela,
Pedindo-me que não me esqueça dela
E dando-me uns beijinhos…, pela posta;

Essa ninfa gentil dos olhos pretos,
Essa beleza de anjo… oh, sorte varia;
Vergonha eterna para os meus bisnetos!

Com um pançudo burguês, uma alimária
Que não a sabe amar, nem faz sonetos,
Vai casar-se amanhã na Candelária.

De Martins Pena Foi Bem Triste A Sorte

De Martins Pena foi bem triste a sorte:
Moço, bem moço, quando o seu talento
Desabrochava n’um deslumbramento,
Caiu, ferido pela mão da morte!

Era, entretanto, um lutador, um forte,
E, como não merece o esquecimento,
Que a nossa festa, ao menos um momento,
O seu risonho espírito conforte.

Quem o amou e o leu em vão procura
O seu nome na placa de uma esquina
Ou sobre a pedra de uma sepultura!

Porém, voltando à brasileira cena,
Há de brilhar a estrela peregrina
Que se chamou Luiz Carlos Martins Pena!

Sorte

Depois que se casara aquela criatura,
Que a negra traição das pérfidas requinta,
Eu nunca mais a vi, pois, de ouropéis faminta,
De um bem fingido amor quebrara a ardente jura.

Alta noite, porém, vi-a pela ventura,
Numa avenida estreita e lobrega da quinta…
Painel é que se cuida e sem color se pinta,
De alvo femíneo vulto ou madrugada escura.

Maldito quem sentindo o pungitivo açoite
Do desprezo e na sombra a sombra de um afeto
A pular uma grade, um muro não se afoite.

– Prometes ser discreto? – Ó meu amor! prometo…
Se não fosses tão curta, ó bem ditosa noite!
Se fosses mais comprido, ó pálido soneto!

Eterna Dor

Já te esqueceram todos neste mundo…
Só eu, meu doce amor, só eu me lembro,
Daquela escura noite de setembro
Em que da cova te deixei no fundo.

Desde esse dia um látego iracundo
Açoitando-me está, membro por membro.
Por isso que de ti não me deslembro,
Nem com outra te meço ou te confundo.

Quando, entre os brancos mausoléus, perdido,
Vou chorar minha acerba desventura,
Eu tenho a sensação de haver morrido!

E até, meu doce amor, se me afigura,
Ao beijar o teu túmulo esquecido,
Que beijo a minha própria sepultura!

Velha Anedota

Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;

Lá um dia deixou de andar à malta,
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, diante de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

– Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso? –

Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: – Juízo. –