Se alguém mata um homem, é um assassino. Se mata milhões de homens, é um conquistador. Se mata todos, é um Deus.
Passagens sobre Assassinos
72 resultadosDragões e Duendes
Nada a fazer: virasse-se um homem para onde se virasse, todos os filmes e todos os livros e todas as peças de teatro e tudo o mais que se houvesse inventado para contar histórias e obrigar-nos a perdermo-nos e a reencontrarmo-nos e a perdermo-nos e a reencontrarmo-nos nelas pareciam agora girar em torno de dragões e águias colossais, de fadas e de elfos, de duendes e de vampiros, de mutantes com duas cabeças e de extraterrestres assassinos que nos pousavam no quintal para fazer amizade e, à traição, subjugar o Homo sapiens. Algures ao longo do caminho, pegáramos no velho rapaz-conhece-rapariga, envergonháramo-nos dele e prometêramos a nós próprios jamais voltar a deixar-nos fascinar pela pungência desse encontro, pela força desse inesperado cruzamento entre dois seres que se surpreendem mutuamente e, de repente, tivessem de viver juntos para sempre ou de imediato matar-se um ao outro. E, portanto, ali andava eu, todas as noites, aborrecendo-me de morte com as aventuras de um hobbit, bocejando com a saga dos goblins azuis e adormecendo ao compasso de um feiticeiro órfão que, de varinha em riste, salvava a cena por mais um dia, embora no dia seguinte os hobbits e os goblins e os dragões e os duendes e a puta que os pariu voltassem,
Nos tempos antigos, quando um homem justo era assassinado traiçoeiramente, os familiares da vítima tinham o direito de se vingar, matando o assassino. Na maioria dos casos, a missão de abater o inimigo cabia a um filho jovem ou a um irmão mais novo da vítima, ainda inexperientes no manejo da espada. No entanto, conseguiam vencer o inimigo, mais velho e mais experiente. Isto é possível porque o Céu não ajuda os ingratos e os traidores.
Se eles tivessem [linguagem humana), seriamos capazes de os matar e comer? Deveríamos cometer estes fratricídios? Que bárbaro abateria e assaria uma ovelha, se essa ovelha invocasse, num pedido afectuoso, que não fosse assassino e canibal ao mesmo tempo?
A um Corpo Perfeito
Nenhum corpo mais lacteo e sem defeito
Mais roseo, esculptural e femenino,
Pode igualar-se ao seu, branco e divino
Immovel, nù, sobre o comprido leito! –Nada te eguala! O ferro do assassino
Podia, hoje, matal-a, que o meu peito
Seria o esquife embalsamado e fino
D’aquelle corpo sem rival, perfeito.Por isso é muito altiva e apetecida; –
E o goso sensual de a vêr vencida
Ha de ser forte, extranho e singular…Como o das cousas dignas de castigo;
– Ou d’um amante sacerdote antigo,
Derrubando uma deusa d’um altar.
A Fama Não Conhece Virtudes
As pessoas fazem exigências aos nomes que se tornam conhecidos de forma singular, não há diferença entre uma criança prodígio, um compositor, um poeta, um assassino. Há um que quer ter o seu retrato, o outro o seu autógrafo, um terceiro pede dinheiro, todos os colegas mais novos mandam os seus trabalhos com muitas lisonjas e pedem uma apreciação, e tanto faz não dar resposta como expressar a sua opinião, de repente aquele que venerava fica furioso, torna-se cruel e quer vingança. As revistas querem publicar o retrato do homem, os jornais contam a sua vida, as suas origens, falam do seu aspecto. Colegas de escola fazem-se conhecidos, e parentes distantes queriam já há anos dizer que o primo havia de ser famoso.
Soneto Com Estrambote Enviesado
Alfaiate de mim costuro a roupa
que cabe ao figurino que me coube.Só meu verso protege essa amargura
desfiada de dia ao sol veloz,
para à noite tecer nova textura,
novelo de silêncio ao rés da voz.Enxoval construído nessa usura
solitária de andaimes, num retrós
de linha vertical, que se pendura
na pênsil teia atada, fio em fozdesse rio agulha que me costura
ao rendilhado de águas tropicais,
que sabe de saudades no meu cais.Viageiro de uma sanha que me traz
sempre de volta ao tear do meu destino
na seda depressiva me assassino.
Esse é nosso mundo, o que é demais nunca é o bastante, a primeira vez sempre é a última chance de ninguém ver onde chegamos, os assassinos estão livres, nós não estamos…
Mata-se um homem, é-se um assassino. Matam-se milhões de homens, é-se um conquistador. Mata-se a todos, é-se um Deus.
Se matamos uma pessoa somos assassinos. Se matamos milhões de homens, celebram-nos como heróis.
Tudo quanto Sonhei se Foi Perdido
O que sonhei e antes de vivido
Era perfeito e lúcido e divino,
Tudo quanto sonhei se foi perdido
Nas ondas caprichosas do destino.Que os fados em mim mesmo depuseram
Razões de ser e de não ser, contrárias,
Nas emoções que, dentro em mim, cresceram
Tumultuosas, carinhosas, várias.Naqueles seres que fui dentro de um ser,
Que viveram de mais para eu viver
A minha vida luminosa e calma,Se desdobraram gestos de menino
E rudes arremedos de assassino.
Foram almas de mais numa só alma.
A Gloriola do Jornal
O jornal estende sobre o mundo as suas duas folhas, salpicadas de preto, como aquelas duas asas com que os iconografistas do século XV representavam a Luxúria ou a Gula: e o Mundo todo se arremessa para o jornal, se quer agachar sob as duas asas que o levem à gloriola, lhe espalhem o nome pelo ar sonoro. E é por essa gloriola que os homens se perdem, e as mulheres se aviltam, e os Políticos desmancham a ordem do Estado, e os Artistas rebolam na extravagância estética, e os Sábios alardeiam teorias mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os géneros, surge a horda ululante dos charlatães… (Como me vim tornando altiloquente e roncante!…) Mas e a verdade, meu Bento! Vê quantos preferem ser injuriados a serem ignorados! (Homenzinhos de letras, poetisas, dentistas, etc.). O próprio mal apetece sofregamente as sete linhas que o maldizem. Para aparecerem no jornal, há assassinos que assassinam. Até o velho instinto da conservação cede ao novo instinto da notoriedade – e existe tal maganão, que ante um funeral convertido em apoteose pela abundância das coroas, dos coches e dos prantos oratórios, lambe os beiços, pensativo, e deseja ser o morto.
Um Único Poema
Quando olho para esse livro («Poesia Toda»), vejo que não fabriquei ou instruí ou afeiçoei objectos — estas palavras não supõem o mesmo modo de fazer—, vejo que escrevi apenas um poema, um poema em poemas; durante a vida inteira brandi em todas as direcções o mesmo aparelho, a mesma arma furiosa. Fui um inocente, porque só se consegue isso com inocência. E se a inocência é uma condição insubstituível de escândalo, uma transparente e mobilizadora familiaridade com a terra, constitui também um revés: pois há uma altura em que se sabe: as coisas ludibriaram-nos, ludibriámo-nos nas coisas; a inocência deveria ter-nos oferecido uma vida estupenda, um tumulto: o ar em torno proporcionado como pura levitação; ver, tocar; os mais simples actos e factos próximos como instantâneo e completo conhecimento. Era assim, foi assim, mas a dor, as vozes demoníacas, o abismo junto à dança, a noite que se vai insinuando a toda a altura e largura da luz, tudo Isso invade a inocência — e então já não sabemos nada, por exemplo: será inocente a nossa inocência? A inocência é um estado clandestino na ditadura do mundo; tem se der astuta, tem de recorrer a todas as torpezas para lutar e escapar,
Haverá um tempo em que os seres humanos se contentarão com uma alimentação vegetariana e julgarão a matança de um animal inocente da mesma forma como hoje se julga o assassino de um homem.
Ah, a Moral!
Ah, a palavra «moral»! Sempre que aparece, penso nos crimes que foram cometidos em seu nome. As confusões que este termo engendrou abarcam quase toda a história das perseguições movidas pelo homem ao seu semelhante. Para além do facto de não existir apenas uma moral, mas muitas, é evidente que em todos os países, seja qual for a moral dominante, há uma moral para o tempo de paz e uma moral para a guerra. Em tempo de guerra tudo é permitido, tudo é perdoado. Ou seja, tudo o que de abominável e infame o lado vencedor praticou. Os vencidos, que servem sempre de bode expiatório, «não têm moral».
Pensar-se-á que, se realmente glorificássemos a vida e não a morte, se déssemos valor à criação e não à destruição, se acreditássemos na fecundidade e não na impotência, a tarefa suprema em que nos empenharíamos seria a da eliminação da guerra. Pensar-se-á que, fartos de carnificina, os homens se voltariam contra os assassinos, ou seja, os homens que planeiam a guerra, os homens que decidem das modalidades da arte da guerra, os homens que dirigem a indústria de material de guerra, material que hoje se tornou indescrivelmente diabólico. Digo «assassinos», porque em última análise esses homens não são outra coisa.
Toada Para Solo De Ocarina
Fio tênue do céu em claridade
tece esse manto gris meu agasalho
colhido pelos muros da cidade:
mucosa verde musgo que se espalhacomo tapete denso em chão de jade
Meus pés de crivo cravam esse atalho
riscando seu grafite no mar que arde
o fogo-de-santelmo em céu talhadoNesse caminho caio em minha sina
caio no mar que lava essa lavoura
num barco ébrio que sempre desafinaE colho o sal da noite a lua moura
crescente luz de foice me assassina
e me morro no haxixe com Rimbaud
A Escola Portuguesa
Eis as crianças vermelhas
Na sua hedionda prisão:
Doirado enxame de abelhas!
O mestre-escola é o zangão.Em duros bancos de pinho
Senta-se a turba sonora
Dos corpos feitos de arminho,
Das almas feitas d’aurora.Soletram versos e prosas
Horríveis; contudo, ao lê-las
Daquelas bocas de rosas
Saem murmúrios de estrela.Contemplam de quando em quando,
E com inveja, Senhor!
As andorinhas passando
Do azul no livre esplendor.Oh, que existência doirada
Lá cima, no azul, na glória,
Sem cartilhas, sem tabuada,
Sem mestre e sem palmatória!E como os dias são longos
Nestas prisões sepulcrais!
Abrem a boca os ditongos,
E as cifras tristes dão ais!Desgraçadas toutinegras,
Que insuportáveis martírios!
João Félix co’as unhas negras,
Mostrando as vogais aos lírios!Como querem que despontem
Os frutos na escola aldeã,
Se o nome do mestre é — Ontem
E o do discíp’lo — Amanhã!Como é que há-de na campina
Surgir o trigal maduro,
Se é o Passado quem ensina
O b a ba ao Futuro!
Quem mata um homem é chamado de assassino, quem mata milhares, é chamado de herói.
A Morte – O Sol Do Terrível
(com tema de Renato Carneiro Campos)
Mas eu enfrentarei o Sol divino,
o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque a teia do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.Não serei orgulhoso nem covarde,
que o sangue se rebela ao toque e ao Sino.
Verei feita em topázio a luz da Tarde,
pedra do Sono e cetro do Assassino.Ela virá, Mulher, afiando as asas,
com os dentes de cristal, feitos de brasas,
e há de sagrar-me a vista o Gavião.Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chama e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.
O homem mais tenebroso tem seus momentos iluminados: tal assassino toca flauta; tal feitor é talvez um bom filho. Existem poucos a quem não se possa ensinar alguma coisa. O erro é tentar encontrar neles virtudes que não têm, neglicenciando as que possui.