Anseio
Que sou eu, neste ergástulo das vidas
Danadamente, a soluçar de dor?!
– Trinta triliões de células vencidas,
Nutrindo uma efeméride inferior.Branda, entanto, a afagar tantas feridas,
A áurea mão taumitúrgica do Amor
Traça, nas minhas formas carcomidas,
A estrutura de um mundo superior!Alta noite, esse mundo incoerente
Essa elementaríssima semente
Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal…Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto,
E, ai! como eu sinto no esqueleto exausto
Não poder dar-lhe vida material!
Passagens de Augusto dos Anjos
144 resultadosSofredora
Cobre-lhe a fria palidez do rosto
O sendal da tristeza que a desola;
Chora – o orvalho do pranto lhe perola
As faces maceradas de desgosto.Quando o rosário de seu pranto rola,
Das brancas rosas do seu triste rosto
Que rolam murchas como um sol já posto
Um perfume de lágrimas se evola.Tenta às vezes, porém, nervosa e louca
Esquecer por momento a mágoa intensa
Arrancando um sorriso à flor da boca.Mas volta logo um negro desconforto,
Bela na Dor, sublime na Descrença.
Como Jesus a soluçar no Horto!
Noivado
Os namorados ternos suspiravam,
Quando há de ser o venturoso dia?!
Quando há de ser!? O noivo então dizia
E a noiva e ambos d’amores s’embriagavam.E a mesma frase o noivo repetia;
Fora no campo pássaros trinavam,
Quando há de ser!? E os pássaros falavam;
Há de chegar, a brisa respondia.Vinha rompendo a aurora majestosa,
Dos rouxinóis ao sonoroso harpejo
E a luz do sol vibrava esplendorosa.Chegara enfim o dia desejado,
Ambos unidos soluçara um beijo,
Era o supremo beijo de noivado!
Guerra
Guerra é esforço, é inquietude, é ânsia, é transporte…
E a dramatização sangrenta e dura
Vir Deus num simples grão de argila errante,
Da avidez com que o Espírito procuraÉ a Subconsciência que se transfigura
Em volição conflagradora… E a coorte
Das raças todas, que se entrega à morte
Para a felicidade da Criatura!É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo
De subir, na ordem cósmica, descendo
A irracionalidade primitiva…É a Natureza que, no seu arcano,
Precisa de encharcar-se em sangue humano
Para mostrar aos homens que está viva!
Vandalismo
Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos …E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
Caput Immortale
Na dinâmica aziaga das descidas,
Aglomeradamente e em turbilhão
Solucem dentro do Universo ancião,
Todas as urbes siderais vencidas!Morra o éter. Cesse a luz. Parem as vidas,
Sobre a pancosmológica exaustão
Reste apenas o acervo árido e vão
Das muscularidades consumidas!Ainda assim, a animar o cosmos ermo,
Morto o comércio físico nefando,
Oh! Nauta aflito do Subliminal,Como a última expressão da Dor sem termo,
Tua cabeça há de ficar vibrando
Na negatividade universal!
O Sarcófago
Senhor da alta hermenêutica do Fado
Perlustro o atrium da Morte… É frio o ambiente
E a chuva corta inexoravelmente
O dorso de um sarcófago molhado!Ah! Ninguém ouve o soluçante brado
De dor profunda, acérrima e latente.
Que o sarcófago, ereto e imóvel sente
Em sua própria sombra sepultado!Dói-lhe (quem sabe?!) essa grandeza horrível
Que em toda a sua máscara se expande,
À humana comoção impondo-a, inteira…Dói-lhe, em suma, perante o Incognoscível
Essa fatalidade de ser grande
Para guardar unicamente poeira!
Versos A Um Cão
Que força pode, adstricta a ambriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.Cão! – Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais. . .E irá assim, pelos séculos, adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos seus pais!
Vencido
No auge de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo, desde o mais prístino mito,
Por exemplo: o do boi Ápis do Egito
Ao velho Niebelungen da Alemanha.Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
A vontade do vômito plebeu…E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.
A Noite
A nebulosidade ameaçadora
Tolda o éter, mancha a gleba, agride os rios
E urde amplas teias de carvões sombrios
No ar que álacre e radiante, há instantes, fora.A água transubstancia-se. A onda estoura
Na negridão do oceano e entre os navios
Troa bárbara zoada de ais bravios,
Extraordinariamente atordoadora.A custódia do anímico registro
A planetária escuridão se anexa…
Somente, iguais a espiões que acordam cedo,Ficam brilhando com fulgor sinistro
Dentro da treva omnímoda e complexa
Os olhos fundos dos que estão com medo!
Adeus, Adeus, Adeus!
Pareceu-me inda ouvir o nome dela
No badalar monótono dos sinos.
Hermeto LimaAdeus, adeus, adeus! E, suspirando,
Saí deixando morta a minha amada,
Vinha o luar iluminando a estrada
E eu vinha pela estrada soluçando.Perto, um ribeiro claro murmurando
Muito baixinho como quem chorava,
Parecia o ribeiro estar chorando
As lágrimas que eu triste gotejava.Súbito ecoou do sino o som profundo!
Adeus! – eu disse. Para mim no mundo
Tudo acabou-se, apenas restam mágoas.Mas no mistério astral da noute bela
Pareceu-me inda ouvir o nome dela
No marulhar monótono das águas!
Tempos Idos
Não enterres, coveiro, o meu Passado,
Tem pena dessas cinzas que ficaram;
Eu vivo dessas crenças que passaram,
e quero sempre tê-las ao meu lado!Não, não quero o meu sonho sepultado
No cemitério da Desilusão,
Que não se enterra assim sem compaixão
Os escombros benditos de um Passado!Ai! Não me arranques d’alma este conforto!
– Quero abraçar o meu passado morto,
– Dizer adeus aos sonhos meus perdidos!Deixa ao menos que eu suba à Eternidade
Velado pelo círio da Saudade,
Ao dobre funeral dos tempos idos!
A Obsessão Do Sangue
Acordou, vendo sangue… – Horrível! O osso
Frontal em fogo… Ia talvez morrer,
Disse. olhou-se no espelho. Era tão moço,
Ah! certamente não podia ser!Levantou-se. E eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão …E amou, com um berro bárbaro de gozo,
o monocromatismo monstruoso
Daquela universal vermelhidão!
No Campo
Tarde. Um arroio canta pela umbrosa
Estrada; as águas límpidas alvejam
Com cristais. Aragem suspirosa
Agita os roseirais que ali vicejam.No alto, entretanto, os astros rumorejam
Um presságio de noute luminosa
E ei-la que assoma – a Louca tenebrosa,
Branca, emergindo às trevas que a negrejam.Chora a corrente múrmura, e, à dolente
Unção da noute, as flores também choram
Num chuveiro de pétalas, nitente,Pendem e caem – os roseirais descoram
E elas bóiam no pranto da corrente
Que as rosas, ao luar, chorando enfloram.
A Meu Pai Morto
Madrugada de Treze de janeiro.
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia,
E disse à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o”! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu…Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!
Ecos D’alma
Oh! madrugada de ilusões, santíssima,
Sombra perdida lá do meu Passado,
Vinde entornar a clâmide puríssima
Da luz que fulge no ideal sagrado!Longe das tristes noutes tumulares
Quem me dera viver entre quimeras,
Por entre o resplandor das Primaveras
Oh! madrugada azul dos meus sonhares;Mas quando vibrar a última balada
Da tarde e se calar a passarada
Na bruma sepulcral que o céu embaça,Quem me dera morrer então risonho,
Fitando a nebulosa do meu Sonho
E a Via-Láctea da Ilusão que passa!
Ceticismo
Desci um dia ao tenebroso abismo,
Onde a dúvida ergueu altar profano;
Cansado de lutar no mundo insano,
Fraco que sou, volvi ao ceticismo.Da Igreja – a Grande Mãe – o exorcismo
Terrível me feriu, e então sereno,
De joelhos aos pés do Nazareno
Baixo rezei, em fundo misticismo:– Oh! Deus, eu creio em ti, mas me perdoa!
Se esta dúvida cruel qual me magoa
Me torna ínfimo, desgraçado réu.Ah, entre o medo que o meu Ser aterra,
Não sei se viva p’ra morrer na terra,
Não sei se morra p’ra viver no Céu!
Canto De Onipotência
Cloto, Átropos, Tifon, Laquesis, Siva…
E acima deles, como um astro, a arder,
Na hiperculminação definitiva
O meu supremo e extraordinário Ser!Em minha sobre-humana retentiva
Brilhavam, como a luz do amanhecer,
A perfeição virtual tornada viva
E o embrião do que podia acontecer!Por antecipação divinatória,
Eu, projetado muito além da História,
Sentia dos fenômenos o fim.. .A coisa em si movia-se aos meus brados
E os acontecimentos subjugados
Olhavam como escravos para mim!
Ave Dolorosa
Ave perdida para sempre – crença
Perdida – segue a trilha que te traça
O Destino, ave negra da Desgraça,
Gêmea da Mágoa e núncia da Descrença!Dos sonhos meus na Catedral imensa
Que nunca pouses. Lá, na névoa baça
Onde o teu vulto lúrido esvoaça,
Seja-te a vida uma agonia intensa!Vives de crenças mortas e te nutres,
Empenhada na sanha dos abutres,
Num desespero rábido, assassino…E hás de tombar um dia em mágoas lentas,
Negrejadas das asas lutulentas
Que te emprestar o corvo do Destino!
A Esmola De Dulce
Ao Alfredo A.
E todo o dia eu vou como um perdido
De dor, por entre a dolorosa estrada,
Pedir a Dulce, a minha bem amada,
A esmola dum carinho apetecido.E ela fita-me, o olhar enlanguescido,
E eu balbucio trêmula balada:
– Senhora, dai-me u’a esmola – e estertorada
A minha voz soluça num gemido.Morre-me a voz, e eu gemo o último harpejo,
Estendo à Dulce a mão, a fé perdida,
E dos lábios de Dulce cai um beijo.Depois, como este beijo me consola!
Bendita seja a Dulce! A minha vida
Estava unicamente nessa esmola.