Passagens de Augusto dos Anjos

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Budismo Moderno

Tome, Dr., esta tesoura, e… corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Versos Íntimos

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Sómente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Idealização Da Humanidade Futura

Rugia nos meus centros cerebrais
A multidão dos séculos futuros
– Homens que a herança de ímpetos impuros
Tornara étnicamente irracionais! –

Não sei que livro, em letras garrafais,
Meus olhos liam! No húmus dos monturos,
Realizavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animais!

Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão…

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!

O Condenado

Folga a justiça e geme a natureza – Bocage

Alma feita somente de granito,
Condenada a sofrer cruel tortura
Pela rua sombria d’amargura
– Ei-lo que passa – réprobo maldito.

Olhar ao chão cravado e sempre fito,
Parece contemplar a sepultura
Das suas ilusões que a desventura
Desfez em pó no hórrido delito.

E, à cruz da expiação subindo mudo,
A vida a lhe fugir já sente prestes
Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo.

O mundo é um sepulcro de tristeza,
Ali, por entre matas de ciprestes,
Folga a justiça e geme a natureza.

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo! O amor na humanidade é uma mentira. É. E é por isto que na minha lira De amores fúteis poucas vezes falo.

O Martírio Do Artista

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a idéa! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!…
É como o paralítico que, à mingua
Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!

Supreme Convulsion

O equilíbrio do humano pensamento
Sofre também a súbita ruptura,
Que produz muita vez, na noite escura,
A convulsão meteórica do vento.

E a alma o obnóxio quietismo sonolento
Rasga; e, opondo-se à Inércia, é a essência pura,
É a síntese, é o transunto, é a abreviatura
Do todo o ubiqüitário Movimento!

Sonho, – libertação do homem cativo –
Ruptura do equilíbrio subjetivo,
Ah! foi teu beijo convulsionador

Que produziu este contraste fundo
Entre a abundância do que eu sou, no Mundo,
E o nada do meu homem interior!

Minha Finalidade

Turbilhão teleológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!

Predeterminação imprescriptível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!

Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
– A águia dos latifúndios florentinos!

Sistematizo, soluçando, o Inferno…
E trago em mim, num sincronismo eterno
A fórmula de todos os destinos!

Ergue, Criança, A Fronte Condorina

Ergue, criança, a fronte condorina
Que é tua fronte, oh!, genial criança,
É como a estrela-d’alva da esperança,
Do talento sagrado que a ilumina!

Ergue-a, pois, e que, à auréola purpurina
Do Sol da Ciência, o rútilo tesouro
Do Estudo – o Grande Mestre – que te ensina,
Chova sobre ela suas gemas d’ouro!

E hoje que colhes um laurel bendito,
Aceita a saudação que num contrito
Fervor, eleva, qual penhor sincero

Um peito amigo a outro peito amigo,
A um gênio que desponta e que eu bendigo,
A um coração de irmão que tanto quero!

Vencedor

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E á rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração – estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pode domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois de um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem…
E não pude domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

A Minha Estrela

A meu irmão Aprígio A.

E eu disse – Vai-te, estrela do Passado!
Esconde-te no Azul da Imensidade,
Lá onde nunca chegue esta saudade,
– A sombra deste afeto estiolado.

Disse, e a estrela foi p’ra o Céu subindo,
Minh’alma que de longe a acompanhava,
Viu o adeus que do Céu ela enviava,
E quando ela no Azul foi-se sumindo

Surgia a Aurora – a mágica princesa!
E eu vi o Sol do Céu iluminando
A Catedral da Grande Natureza.

Mas a noute chegou, triste, com ela
Negras sombras também foram chegando,
E nunca mais eu vi a minha estrela!

Revelação

II

Treva e fulguração; sânie e perfume;
Massa palpável e éter; desconforto
E ataraxia feto vivo e aborto. ..
– Tudo a unidade do meu ser resume!

Sou eu que, ateando da alma o occíduo lume,
Apreendo, em cisma abismadora absorto,
A potencialidade do que é morto
E a eficácia prolífica do estrume!

Ah! Sou eu que, transpondo a escarpa
Dos limites orgânicos estreitos,
Dentro nos quais recalco em vão minha ânsia,

Sinto bater na putrescível crusta
Do tegumento que me cobre os peitos
Toda a imortalidade da Substância!

A Esperança

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro – avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da morte a me bradar: descansa!

Nimbos

Nimbos de bronze que empanais escuros
O santuário azul da Natureza,
Quando vos vejo, negros palinuros
Da tempestade negra e da tristeza,

Abismados na bruma enegrecida,
Julgo ver nos reflexos de minh’alma
As mesmas nuvens deslizando em calma,
Os nimbos das procelas desta vida;

Mas quando o céu é límpido, sem bruma
Que a transparência tolde, sem nenhuma
Nuvem sequer, então, num mar de esp’rança,

Que o céu reflete, a vida é qual risonho
Batel, e a alma é a Flâmula do sonho,
Que o guia e o leva ao porto da bonança.

O Corrupião

Escaveirado corrupião idiota,
Olha a atmosfera livre, o amplo éter belo,
E a alga criptógama e a úsnea e o cogumelo,
Que do fundo do chão todo o ano brota!

Mas a ânsia de alto voar, de à antiga rota
Voar, não tens mais! E pois, preto e amarelo,
Pões-te a assobiar, bruto, sem cerebelo
A gargalhada da última derrota!

A gaiola aboliu tua vontade.
Tu nunca mais verás a liberdade! …
Ah! Tu somente ainda és igual a mim.

Continua a comer teu milho alpiste.
Foi este mundo que me fez tão triste,
Foi a gaiola que te pôs assim!

As Montanhas

II

Agora, oh! deslumbrada alma perscruta
O puerpério geológico interior,
De onde rebenta, em contrações de dor,
Toda a sublevação da crusta hirsuta!

No curso inquieto da terráquea luta
Quantos desejos férvidos de amor
Não dormem, recalcados, sob o horror
Dessas agregações de pedra bruta?!

Como nesses relevos orográfícos,
Inacessíveis aos humanos tráficos
Onde sóis, em semente, amam jazer,

Quem sabe, alma, se o que ainda não existe
Não vive em gérmen no agregado triste
Da síntese sombria do meu Ser?!

Para onde fores, Pai, para onde fores, Irei também, trilhando as mesmas ruas… Tu, para amenizar as dores tuas, Eu, para amenizar as minhas dores!.

O Deus-Verme

Factor universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – é o seu nome obscuro de batismo.

Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação fúnerea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.

Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão…

Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

O Meu Nirvana

No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!

Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéa Soberana!

Destruída a sensação que oriunda fora
Do tacto – ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéas –

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéas!

Contrastes

A antítese do novo e do obsoleto,
O Amor e a Paz, o ódio e a Carnificina,
O que o homem ama e o que o homem abomina,
Tudo convém para o homem ser completo!

O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,
Uma feição humana e outra divina
São como a eximenina e a endimenina
Que servem ambas para o mesmo feto!

Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!
Por justaposição destes contrastes,
junta-se um hemisfério a outro hemisfério,

As alegrias juntam-se as tristezas,
E o carpinteiro que fabrica as mesas
Faz também os caixões do cemitério!…