Uma alma que se sabe amada, mas que por sua vez não ama, denuncia o seu fundo: – vem á superfície o que nela há de mais baixo.
Passagens sobre Baixo
261 resultadosRaspai a superfície de um pessimista e ides encontrar com frequência, lá por baixo, um defensor dos previlégios.
O Inseguro
A eterna canção: Que fiz durante o ano, que deixei de fazer, por que perdi tanto tempo cuidando de aproveitá-lo? Ah, se eu tivesse sido menos apressado! Se parasse meia hora por dia para não fazer absolutamente nada — quer dizer, para sentir que não estava fazendo coisas de programa, sem cor nem sabor. Aí, a fantasia galopava, e eu me reencontraria como gostava de ser; como seria, se eu me deixasse…
Não culpo os outros. Os outros fazem comigo o que eu consinto que eles façam, dispersando-me. Aquilo que eu lhes peço para fazerem: não me deixarem ser eu-um. Nem foi preciso rogar-lhes de boca. Adivinharam. Claro que eu queria é sair com eles por aí, fugindo de mim como se foge de um chato. Mas não foi essa a dissipação maior. No trabalho é que me perdi completamente de mim, tornando-me meu próprio computador. Sem deixar faixa livre para nenhum ato gratuito. Na programação implacável, só omiti um dado: a vida.Que sentimento tive da vida, este ano? Que escavação tentei em suas jazidas? A que profundidade cheguei? Substituí a noção de profundidade pela de altura. Não quis saber de minerações. Cravei os olhos no espaço,
Mãe
I
Dantes, quando a deixava,
As férias já no fim,
Ela vinha à janela
Despedir-se de mim.Depois, quando na estrada,
Olhava para trás,
Deitava-me ainda a benção
Para que eu fosse em paz.Dali não se movia,
À vidraça encostada,
Até que eu me perdia
Já na curva da estrada.Hoje, se olho, calo-me
E baixo os olhos meus!
Já não vem à janela
Para dizer-me adeus!II
Chove, e a chuva é fria.
Noite! Nos montes distantes
O Inverno principia.
Um Inverno como dantes.Ao redor do lume aceso
Todos ficamos a olhar…
Todos não, não somos todos,
Porque há vazio um lugar.Esse lugar era o dela,
Que ninguém mais preencheu.
Mesmo com vida, na terra,
Era uma estrela no céu.
Vós Só Convosco mesma Andai de Amores
Porque quereis, Senhora, que ofereça
A vida a tanto mal como padeço?
Se vos nasce do pouco que eu mereço,
Bem por nascer está quem vos mereça.Entendei que por muito que vos peça,
Poderei merecer quanto vos peço;
Pois não consente Amor que em baixo preço
Tão alto pensamento se conheça.Assim que a paga igual de minhas dores
Com nada se restaura, mas deveis-ma
Por ser capaz de tantos desfavores.E se o valor de vossos amadores
Houver de ser igual convosco mesma,
Vós só convosco mesma andai de amores.
Da cinta para baixo nenhuma mulher envelhece. É justamente da cinta para baixo que mais envelhece o homem.
O Necessário não é Propriamente um Bem
Toda a vida, em meu entender, é uma mentira: já que és tão engenhoso, critica-a e recondu-la ao caminho da verdade. Ela considera como necessárias coisas que em grande parte não passam de supérfluas; e mesmo as que não são supérfluas não contribuem em nada para nos dar bem estar e felicidade. Pelo facto de ser necessária, uma coisa não é, desde logo, um bem; ou então degradamos o conceito de «bem», dando este nome ao pão, à polenta e a tudo o mais imprescindível à vida. Tudo o que é bem, é, por isso mesmo, necessário, mas o que é necessário não é forçosamente um bem: há muita coisa necessária e, simultaneamente, de baixo nível.
Ninguém é tão ignorante da dignidade do bem que degrade o conceito ao nível dos objectos de uso diário. Pois bem, não seria melhor que te aplicasses antes a mostrar todo o tempo que se perde na busca de superfluidades, a apontar como tanta gente desperdiça a vida na busca do que não passa de meios auxiliares? Observa os indivíduos, considera a sociedade: todos vivem em função do amanhã! Não sabes que mal há nisto? O maior possível. Essa gente não vive, espera viver,
Rua de Camões
A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãeAo fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banhoSoa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectivaNele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objectoE havia a Dona Laura
senhora distinta
e sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louçaO caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelheciaNa rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressãoA minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezesNão olhes para os rapazes
que é feio.
Nona Sinfonia
É por dentro de um homem que se ouve
o tom mais alto que tiver a vida
a glória de cantar que tudo move
a força de viver enraivecida.Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.Para o alto se voltam as volutas
hieráticas sagradas impolutas
dos sons que surgem rangem e se somem.Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.
Em Ti como nos Outros Creio
Não a Ti, Cristo, odeio ou te não quero.
Em ti como nos outros creio deuses mais velhos.
Só te tenho por não mais nem menos
Do que eles, mas mais novo apenas.Odeio-os sim, e a esses com calma aborreço,
Que te querem acima dos outros teus iguais deuses.
Quero-te onde tu stás, nem mais alto
Nem mais baixo que eles, tu apenas.Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia
Como tu, um a mais no Panteão e no culto,
Nada mais, nem mais alto nem mais puro
Porque para tudo havia deuses, menos tu.Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a vida
É múltipla e todos os dias são diferentes dos outros,
E só sendo múltiplos como eles
‘Staremos com a verdade e sós.
A natureza a todos os homens fez iguais; a fortuna é que fez os altos, os baixos, e os baixíssimos.
Se queres voar, tens que desistir da porcaria que te puxa para baixo.
O fim é baixo, como todos os fins quantitativos, pessoais ou não, e é atingível e verificável.
Descartes já o tinha percebido com uma admirável clareza: a liberdade da indiferença é o grau mais baixo da liberdade.
Considerai e medi bem os degraus, uns tão altos, outros tão baixos, por onde, tropeçando, ajoelhando e caindo, ou se perde a pretensão, ou se chega finalmente a tomar posse do lugar pretendido, e vereis quanto mais custa o alcançar que o merecer.
Noite De Chuva
Chuva…Que gotas grossas!…Vem ouvir:
Uma …duas…mais outra que desceu…
É Viviana, é Melusina, a rir,
São rosas brancas dum rosal do Céu…Os lilases deixaram-se dormir…
Nem um frémito…a terra emudeceu…
Amor! Vem ver estrelas a cair:
Uma…duas…mais outra que desceu…Fala baixo, juntinho ao meu ouvido,
Que essa fala de amor seja um gemido,
Um murmúrio, um soluço, um ai desfeito…Ah! deixa à noite o seu encanto triste!
E a mim…o teu amor que mal existe,
Chuva a cair na noite do meu peito!
Mimos para Elisa
elisa. elisa tem ancas gordas e beiços carnudos.
elisa gosta de telefonar ao noivo. sentada no so
fá, com o joãozinho à beira, marca o número e diz:
elisa sim meu bem. entretanto o joãozinho mete o
s dedos por baixo da saia de elisa, mete as mãos,
mete os braços. elisa diz: sim meu bem. enquanto
elisa se recosta, joãozinho mete a cabeça debai
xo das saias de elisa, e faz que sim, faz vivamen
te que sim, enquanto elisa diz: sim meu bem. sim.
estes telefonemas com o noivo são tão longos! se
pararam-se há pouco tempo. o noivo suplica: não
chores elisa. não suspires. a separação não será
eterna. elisa acalma-se. joãozinho sai cá para fo
ra. elisa chega-se muito a ele. joãozinho está ag
ora de pé. o noivo fala fala fala. pergunta: elisa
já comeste os bombons todos que te mandei minha
gulosa? elisa não responde. está com a boca cheia
. mesmo na conchinha do ouvido, muito suavemente,
o noivo chama-lhe gulosa. e outros mimos. outros.
Tenho tentado aprender a ser humilde. A engolir os nãos que a vida me enfia pela goela a baixo. A lamber o chão dos palácios. A me sentir desprezado-como-um-cão, e tudo bem, acordar, escovar os dentes, tomar um café e continuar.
As nossas piores debilidades e golpes baixos são cometidos, em geral, por causa das pessoas que mais desprezamos.
Quem tem a consciência de que é alto e o afirma a si próprio e aos outros com orgulho, efectivamente não o é, porque nem sabe o que é ser alto; que noção poderá ter de altura o que só olha para baixo?