Impossível
Nós podemos viver alegremente,
Sem que venham com fórmulas legais,
Unir as nossas mãos, eternamente,
As mãos sacerdotais.Eu posso ver os ombros teus desnudos,
Palpá-los, contemplar-lhes a brancura,
E até beijar teus olhos tão ramudos,
Cor de azeitona escura.Eu posso, se quiser, cheio de manha,
Sondar, quando vestida, pra dar fé,
A tua camisinha de bretanha,
Ornada de crochet.Posso sentir-te em fogo, escandescida,
De faces cor-de-rosa e vermelhão,
Junto a mim, com langor, entredormida,
Nas noites de verão.Eu posso, com valor que nada teme,
Contigo preparar lautos festins,
E ajudar-te a fazer o leite-creme,
E os mélicos pudins.Eu tudo posso dar-te, tudo, tudo,
Dar-te a vida, o calor, dar-te cognac,
Hinos de amor, vestidos de veludo,
E botas de duraqueE até posso com ar de rei, que o sou!
Dar-te cautelas brancas, minha rola,
Da grande loteria que passou,
Da boa, da espanhola,Já vês, pois, que podemos viver juntos,
Nos mesmos aposentos confortáveis,
Comer dos mesmos bolos e presuntos,
Passagens sobre Cabeça
583 resultadosMuitas pessoas são bastante educadas para não falar com a boca cheia, porém não se preocupam em fazê-lo com a cabeça oca.
Todo o enigma da vida está fechado na cabeça de uma formiga.
Pense por si Próprio
Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não são seus. Se o criador o tivesse querido juntar muito a mim não teríamos talvez dois corpos distintos ou duas cabeças também distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição, venha a pensar o mesmo que eu; mas, nessa altura. já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem.
Queixa das almas jovens censuradas
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corolaDão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idadeDão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocênciaDão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatroPenteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sósDão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medoTemos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombroDão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macacoDão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procuraDão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adianteDão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destinoDão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida,
Acho que damos pouca atenção àquilo que efectivamente decide tudo na nossa vida, ao órgão que levamos dentro da cabeça: o cérebro. Tudo quanto estamos por aqui a dizer é um produto dos poderes ou das capacidades do cérebro: a linguagem, o vocabulário mais ou menos extenso, mais ou menos rico, mais ou menos expressivo, as crenças, os amores, os ódios, Deus e o diabo, tudo está dentro da nossa cabeça. Fora da nossa cabeça não há nada.
Saber Zangar-se
O que me parece é que as pessoas, em geral, como que deixaram de saber zangar-se. Deixaram de saber zangar-se com aquilo que consideram errado – e, pior ainda, deixaram de saber dizê-lo na cara umas das outras. A não ser, naturalmente, que haja uma agenda.
Ainda nos zangamos muito, é verdade. Mas zangamo-nos mal. Com a maior das facilidades nos zangamos contra inimigos abstractos, como «o Governo», «o capitalismo selvagem» ou mesmo apenas «a crise». Com a maior das facilidades nos zangamos com aqueles que entendemos como nossos subordinados, no trabalho e na vida em geral (afinal, os nossos «superiores» acabam de pôr-nos a pata em cima. alguém vai ter de pagar a conta). Com aqueles que estão, de alguma forma, em ascendente sobre nós, já não nos zangamos: amuamos, que é a forma mais cobarde de nos zangarmos. Aos nossos iguais simplesmente não dizemos nada: engolimos e tornamos a engolir, convencendo-nos de que do outro lado está, afinal, um pobre diabo, tão pobre que nem sequer merece uma zanga – e, quando enfim nos zangamos, é para dar-lhe um tiro na cabeça, como todos os dias nos mostram os jornais.
A impressão com que eu fico é que tudo isto vem dessa mania das social skills e do team building e dos demais chavões moderninhos que os gurus dos livros de Economia nos enfiaram pela garganta abaixo,
Assim começam todos os amores: assim vai até ao altar a menina que se casa; acompanham-a até lá quiméricas legiões de espíritos lúcidos, cujas asas se enlaçam, para a embalarem num coxim ideal de aspirações e santos desejos. E, depois, é muito triste vê-la, passados dois meses, a fazer um rol de roupa suja, a acertar a gravata do marido, que vai ver o cambio, ou, oh essência do materialismo! a pregar um botão nas calças conjugais! Esta é a ordem do mundo, leitores! Cinjamos os rins de silício, cubramo-nos de saco, e baixemos a cabeça ao mundo conveniente, qual ele é, porque o método é uma necessidade prima, até no romance.
O mundo só seria perfeito se todo dia fizesse sol, todo mar fizesse onda e se toda fumaça fizesse sua cabeça, tragando a vida, soprando a morte.
Coração de pomba e cabeça de porco.
Mais Nada se Move em Cima do Papel
mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpoos dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterradoencosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior desta ânfora alucinadadesço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagemo mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusãoassim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração
Durante a leitura a nossa cabeça é apenas o campo de batalha de pensamentos alheios.
A verdade é que, no meu corpo, ele só iria encontrar calafrios e, na minha cabeça, nada além de preocupação.
A Não-Violência e a Cobardia não Têm nada a Ver uma com a outra
A não-violência e a cobardia não têm nada a ver uma com a outra. Acredito que um homem armado dos pés à cabeça seja um cobarde no seu coração. A posse de armas pressupõe um factor de medo, para não dizer de cobardia. Mas a verdadeira não-violência é impossível sem a posse de uma autêntica ausência de medo. (…) A não-violência nunca deveria ser utilizada como escudo da cobardia. É uma arma destinada aos valentes.
(…) A prova de fogo da não-violência está em não deixar para trás nenhum tipo de rancor durante um conflito não-violento e, no final, em fazer com que os inimigos se convertam em amigos.
O Socorro
Ele foi cavando, foi cavando, cavando, pois sua profissão – coveiro – era cavar. Mas, de repente, na distracção do ofício que amava, percebeu que cavara de mais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enlouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardas. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia mais um som humano, embora o cemitério estivesse cheio dos pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: «O que é que há?»
O coveiro então gritou, desesperado: «Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!». «Mas coitado!» – condoeu-se o bêbado. – «Tem toda razão de estar com frio.
Alguém tirou a terra toda de cima de você, meu pobre mortinho!». E, pegando na pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente.
A Perfeição
O que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. Apesar da verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós se torna vaga pois é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.
É preciso ouvir a cabeça, mas deixar falar o coração.
É dificílimo ser certinho. Qualquer palerma consegue ser um doidivanas que faz tudo o que lhe vem à cabeça. Qualquer trinca-tortas pode ser «imprevisível». Desde quando é que houve o mínimo custo em ser «irresponsável». Ser desorganizado não tem graça nem mérito. É estar inacabado.
Um coração duro não é proteção infalível contra uma cabeça mole.
É próprio de homens de cabeças medianas investir contra tudo aquilo que não lhes cabe na cabeça.