Evitar o Sofrimento
Privamo-nos para mantermos a nossa integridade, poupamos a nossa saúde, a nossa capacidade de gozar a vida, as nossas emoções, guardamo-nos para alguma coisa sem sequer sabermos o que essa coisa é. E este hábito de reprimirmos constantemente as nossas pulsões naturais é o que faz de nós seres tão refinados. Porque é que não nos embriagamos? Porque a vergonha e os transtornos das dores de cabeça fazem nascer um desprazer mais importante que o prazer da embriaguez. Porque é que não nos apaixonamos todos os meses de novo? Porque, por altura de cada separação, uma parte dos nossos corações fica desfeita. Assim, esforçamo-nos mais por evitar o sofrimento do que na busca do prazer.
Passagens sobre Cabeça
583 resultadosFugir ao Desconhecido
Existe, frequentemente, em suma, uma espécie de humildade receosa, que, quando nos aflige, nos torna para sempre impróprios para as disciplinas do conhecimento. Porque, no momento em que o homem que a transporta descobre uma coisa que o choca, dá meia volta seja como for, e diz consigo: «Enganaste-te! Onde é que tinhas a cabeça? Isso não pode ser verdade!». De forma que em vez de examinar mais de perto e de ouvir com mais atenção, desata a fugir completamente aterrado, evita encontrar aquilo que o choca e procura esquecê-lo o mais depressa possível. Porque eis o que diz a sua lei: «Não quero dizer nada que contradiga a opinião corrente. Serei eu feito para descobrir novas verdades? Já há demasiadas antigas».
Desabafar o Sofrimento
Nunca compreendi como é possível que alguém que escreva consiga objectivar os seus sofrimentos enquanto vive sob o seu peso; assim eu, por exemplo, no meio da minha infelicidade, provavelmente ainda com a minha cabeça a queimar de infelicidade, sento-me e escrevo a alguém: sou infeliz. Sim, eu até posso ir além disto e com todos os floreados que o meu talento possa inventar, que não parecem ter nada a ver com a minha infelicidade, toco uma orquestração simples, ou em contraponto, ou uma orquestração completa de variações sobre o meu tema. E não é uma mentira, e não mitiga a minha dor: é simplesmente um extra misericordioso de força num momento em que o sofrimento me consumiu até ao fundo do meu ser e gastou completamente todas as minhas forças.
Um doido é aquele que acredita em tudo que lhe vem à cabeça.
Dava a Vida para te Apertar Contra o Meu Peito
Nunca te vira tão linda e sedutora ao mesmo tempo como ontem à noite. Dava a vida para te apertar contra o meu peito. Diz-me, era o amor que eu te inspiro que te fazia assim tão bela? Seria a paixão que me abrasa que te tornava tão atraente a meus olhos? Bem viste: não podia deixar de olhar para ti, nem de beijar a candeiazinha de oiro. Quanto tu saíste tive vontade de me prosternar a teus pés e de te adorar como a uma divindade. Ah! Se tu me quisesses metade do que eu te quero! Deste volta à minha pobre cabeça; repara no mal que me fizeste querendo-me como me queres. Às oito, esperar-te-ei numa ansiedade.
O Irracional no Amor
Se é ridículo beijar uma mulher feia, também é ridículo dar um beijo a uma beleza. A presunção de que amando de uma certa maneira se tem o direito de rir do vizinho que tem outra maneira de amar, não vale mais do que a arrogância de certo meio social. Tal soberba não põe ninguém ao abrigo do cómico universal, porque todos os homens se encontram na impossibilidade de explicar a praxe a que se submetem, a qual pretende ter um alcance universal, pretende significar que os amantes querem pertencer um ao outro por toda a eternidade, e, o que mais divertido é, pretende também convencê-los de que hão-de cumprir fielmente o juramento.
Que um homem rico, muito bem sentado na sua poltrona, acene com a cabeça, ou volte a cara para a direita e para a esquerda, ou bata fortemente com um pé no chão, e que, uma vez perguntado pela razão de tais actos, me responda: «não sei; apeteceu-me de repente; foi um movimento involuntário», compreendo isso muito bem. Mas se ele me respondesse o que costumam responder os amantes, quando lhes pedem que expliquem os seus gestos e as suas atitudes, se me dissesse que em tais actos consistia a sua maior felicidade,
O Livro da Vida
Absorto, o Sábio antigo, estranho a tudo, lia…
— Lia o «Livro da Vida» — herança inesperada,
Que ao nascer encontrou, quando os olhos abria
Ao primeiro clarão da primeira alvorada.Perto dele caminha, em ruidoso tumulto,
Todo o humano tropel num clamor ululando,
Sem que de sobre o Livro erga o seu magro vulto,
Lentamente, e uma a uma, as suas folhas voltando.Passa o Estio, a cantar; acumulam-se Invernos;
E ele sempre, — inclinada a dorida cabeça,—
A ler e a meditar postulados eternos,
Sem um fanal que o seu espírito esclareça!Cada página abrange um estádio da Vida,
Cujo eterno segredo e alcance transcendente
Ele tenta arrancar da folha percorrida,
Como de mina obscura a pedra refulgente.Mas o tempo caminha; os anos vão correndo;
Passam as gerações; tudo é pó, tudo é vão…
E ele sem descansar, sempre o seu Livro lendo!
E sempre a mesma névoa, a mesma escuridão.Nesse eterno cismar, nada vê, nada escuta:
Nem o tempo a dobrar os seus anos mais belos,
Nem o humano sofrer,
Conhecidos de Vista
Conhecem-se há meses de vista, do bairro onde vivem, de se verem na rua, no supermercado, no café, de passearem os cães no jardim. Ela mora dois prédios ao lado do dele, não sabe o seu nome, nem o que faz, mas conhece-lhe algumas rotinas, já ouviu a sua voz, aprecia a forma de ele se vestir. Acha-o atraente e fica atenta quando o vê.
Ele gosta de levar um livro consigo quando vai com o cão ao jardim. Senta-se num banco a ler, mas, se ela chega, não consegue concentrar-se. Finge que lê, espreita-a por cima do livro, maravilhado com o seu jeito distraído de caminhar num vaivém constante enquanto fala ao telemóvel, rodando o vestido numa volta graciosa ao fim de alguns passos casuais. Adora o seu sorriso encantador, o modo como inclina a cabeça para trás e lança um risinho espontâneo para o ar a meio da conversa.
É sábado, estão sentados numa esplanada do jardim, ambos sozinhos, em mesas próximas, frente a frente. Ela pede um café, deita o açúcar, mexe-o demoradamente com a colher, distraída a observá-lo a ler o jornal. Fantasia que ele vai erguer os olhos a qualquer instante e surpreendê-la a olhar,
A Felicidade é uma Interrupção de Futilidade
É nas decisões fúteis, das quais nem a vida nem o estado de espírito depende, que reside a felicidade.
São estes os dias felizes, que Beckett invoca e amaldiçoa, por terem passado, na peça que tem o mesmo nome. Somos sobressaltados por ninharias, que conseguem fazer-se passar por importantes, como escolher entre uma camisa do verde do mar ou do azul do céu.
As decisões fúteis, quando a cabeça é desocupada daquilo que a preocupa, para se ocupar de uma ninharia, como decidir entre o ruivo ou o rascasso ou entre a pêra -pérola e a carapinheira, são o indício seguro da felicidade. Se a escolha primária é entre continuar a viver e deixar de viver e as escolhas secundárias são afluentes da primeira, devemos dar graças.
São uma sorte temporária e alegre a oportunidade e a ocupação mental que nos permitem pensar mais naquilo que nos interessa, sem interessar, do que naquilo que nos deveria interessar, caso estivéssemos tão aflitos que não conseguíssemos pensar noutra coisa senão sobreviver.
Quanto mais tempo perdermos nas escolhas e nas questões de que não dependem as nossas vidas ou as nossas almas – naquelas que não interessam, a bem ver,
Pensamentos não Acabados
Tal como não só a idade viril, mas também a juventude e a infância têm um valor em si e não devem de modo algum ser consideradas somentes como passagens e pontes, assim também os pensamentos não acabados têm o seu valor. Não se deve por isso, atormentar um poeta com uma subtil interpretação e divertir-se com a incerteza do seu horizonte, como se o caminho para vários pensamentos ainda estivesse aberto. Está-se no limiar; espera-se como no desenterramento de um tesouro: é como se devesse estar iminente um feliz achado de pensamento profundo. O poeta antecipa qualquer coisa do prazer que o pensador tem, ao encontrar uma ideia fundamental, e, com isso, torna-nos cobiçosos, de modo que nós tentamos apanhá-la; esta, porém, passa, esvoaçando, sobre a nossa cabeça e mostra as mais belas asas de borboleta… e, contudo, escapa-nos.
O Noivado do Sepulcro
Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.Que paz tranquila!… mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D’entre os sepulcros a cabeça ergueu.Ergueu-se, ergueu-se!… na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.Ergueu-se, ergueu-se!… com sombrio espanto
Olhou em roda… não achou ninguém…
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:“Mulher formosa, que adorei na vida,
“E que na tumba não cessei d’amar,
“Por que atraiçoas, desleal, mentida,
“O amor eterno que te ouvi jurar?“Amor! engano que na campa finda,
“Que a morte despe da ilusão falaz:
“Quem d’entre os vivos se lembrara ainda
“Do pobre morto que na terra jaz?
Quem não traz na cabeça um graozinho de ambição?
Na verdade, o cuidado e a despesa dos nossos pais visam apenas enriquecer as nossas cabeças com ciência; quanto ao juízo e à virtude, as novidades são poucas.
A Racionalidade Irracional
Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.
Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos,
A inveja é um mal terrível. Se uma cabeça se ergue acima das outras, toda a gente tenta decepá-la.
Na cidade de cabeça pra baixo, a gente usa o teto como capacho.
Cada adversidade, cada fracasso, cada dor de cabeça carrega consigo a semente de um benefício igual ou maior.
Símbolos
Símbolos? Estou farto de símbolos…
Mas dizem-me que tudo é símbolo,
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos. —
Que o sol seja um símbolo, está bem…
Que a lua seja um símbolo, está bem…
Que a terra seja um símbolo, está bem…
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas,
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes,
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra…
Bem, vá, que tudo isso seja símbolo…
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde se demorava outrora com o namorado que a deixou?
Tenho sempre na cabeça armazenadas algumas dezenas de coisas para impingir aos outros com o rótulo de versos.
Descende de Adão e Eva. É honra suficientemente grande para que o mendigo mais miserável possa andar de cabeça erguida, e também vergonha suficientemente grande para fazer vergar os ombros do maior imperador da Terra.