Passagens de Carlos Pena Filho

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Frases, pensamentos e outras passagens de Carlos Pena Filho para ler e compartilhar. Os melhores escritores estĂŁo em Poetris.

Testamento do Homem Sensato

Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: «Ele era assim…»
mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se, um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silĂȘncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
com uma luz, mais que distante, breve.

Soneto das Metamorfoses

A Edmundo Morais

Carolina, a cansada, fez-se espera
e nunca se entregou ao mar antigo.
NĂŁo por temor ao mar, mas ao perigo
de com ela incendiar-se a primavera.

Carolina, a cansada que entĂŁo era,
despiu, humildemente, as vestes pretas
e incendiou navios e corvetas
jĂĄ cansada, por fim, de tanta espera.

E cinza fez-se. E teve o corpo implume
escandalosamente penetrado
de imprevistos azuis e claro lume.

Foi quando se lembrou de ser esquife:
abandonou seu corpo incendiado
e adormeceu nas brumas do Recife.

Olinda

(Do alto do mosteiro, um frade a vĂȘ)

De limpeza e claridade
Ă© a paisagem defronte.
TĂŁo limpa que se dissolve
a linha do horizonte.

As paisagens muito claras
nĂŁo sĂŁo paisagens, sĂŁo lentes.
SĂŁo Ă­ris, sol, aguaverde
ou claridade somente.

Olinda Ă© sĂł para os olhos,
nĂŁo se apalpa, Ă© sĂł desejo.
Ninguém diz: é lå que eu moro.
Diz somente: Ă© lĂĄ que eu vejo.

Tem verdĂĄgua e nĂŁo se sabe,
a nĂŁo ser quando se sai.
NĂŁo porque antes se visse,
mas porque nĂŁo se vĂȘ mais.

As claras paisagens dormem
no olhar, quando em existĂȘncia.
DiluĂ­das, evaporadas,
sĂł se reĂșnem na ausĂȘncia.

Limpeza tal sĂł imagino
que possa haver nas vivendas
das aves, nas ĂĄreas altas,
muito além do além das lendas.

Os acidentes, na luz,
nĂŁo sĂŁo, existem por ela.
NĂŁo hĂĄ nem pontos ao menos,
nem hå mar, nem céu, nem velas.

Quando a luz Ă© muito intensa
Ă© quando mais frĂĄgil Ă©:
planĂ­cie, que de tĂŁo plana
parecesse em pé:

Soneto para Greta Garbo

(Em louvor da decadĂȘncia bem comportada)

Entre silĂȘncio e sombra se devora
e em longínquas lembranças se consome;
tĂŁo longe que esqueceu o prĂłprio nome
e talvez jĂĄ nem saiba porque chora.

Perdido o encanto de esperar agora
o antigo deslumbrar que jĂĄ nĂŁo cabe,
transforma-se em silĂȘncio, porque sabe
que o silĂȘncio se oculta e se evapora.

Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a face
que jĂĄ foi sol e agora Ă© cinza fria.

Mas vĂȘ nascer da sombra outra alegria:
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que nĂŁo via.

A SolidĂŁo e Sua Porta

A Francisco Brennand

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha),

quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e atĂ© Deus em silĂȘncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitectar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditĂłrio,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que Ă© insolvente e provisĂłrio
e de que ainda tens uma saĂ­da:
entrar no acaso e amar o transitĂłrio.

Soneto, Ă s Cinco Horas da Tarde

Agora que me instigo e me arremesso
ao branco ofĂ­cio de prender meu sono
e depois atirĂĄ-lo em seu vestido
feito de céu e restos de incerteza,

recolho inutilmente de seus lĂĄbios
a precisĂŁo do sangue do silĂȘncio
e inauguro uma tarde em suas mĂŁos
grĂĄvidas de gestos e de rumos.

Pelo temor e o débil sobressalto
de encontrar sua ausĂȘncia numa esquina
quando extingui canção e permanĂȘncia,

guardei todo o impossĂ­vel de seus olhos,
embora ouvisse, longe, além dos mapas,
bruscos mastins de cedro em seus cabelos.

Elegia para a AdolescĂȘncia

E enfim descansaremos sob a verde
resistĂȘncia dos campos escondidos.
Nem pensaremos mais no que hĂĄ-de ser de
nĂłs que entĂŁo seremos definidos.

No mar que nos chamou, no mar ausente,
simples e prolongado que supomos
seremos atirados de repente,
puros e inĂșteis como sempre fomos.

Veremos que as vogais e as consoantes
nĂŁo sĂŁo mais que ornamentos coloridos,
fruto de nossas bocas inconstantes.

E em silĂȘncio seremos transformados,
quando formos, serenos e perdidos,
além das coisas vãs precipitados.