Passagens sobre Carne

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Frases sobre carne, poemas sobre carne e outras passagens sobre carne para ler e compartilhar. Leia as melhores citações em Poetris.

O teatro é mais rico. Os actores estão lá, em carne e osso. No cinema, só está a personagem. O actor já não se encontra lá quando o filme é exibido. O cinema é complementar mas tem uma vantagem perdura no tempo. Se houvesse cinema no tempo áureo das tragédias gregas saberíamos como elas eram. Como não há, apenas calculamos como seriam.

XVII

Por estas noites frias e brumosas
É que melhor se pode amar, querida!
Nem uma estrela pálida, perdida
Entre a névoa, abre as pálpebras medrosas

Mas um perfume cálido de rosas
Corre a face da terra adormecida …
E a névoa cresce, e, em grupos repartida,
Enche os ares de sombras vaporosas:

Sombras errantes, corpos nus, ardentes
Carnes lascivas … um rumor vibrante
De atritos longos e de beijos quentes …

E os céus se estendem, palpitando, cheios
Da tépida brancura fulgurante
De um turbilhão de braços e de seios.

A Morte o Amor a Vida

Julguei que podia quebrar a profundeza a
[imensidade
Com o meu desgosto nu sem contacto sem eco
Estendi-me na minha prisão de portas virgens
Como um morto razoável que soube morrer
Um morto cercado apenas pelo seu nada
Estendi-me sobre as vagas absurdas
Do veneno absorvido por amor da cinza
A solidão pareceu-me mais viva que o sangue

Queria desunir a vida
Queria partilhar a morte com a morte
Entregar meu coração ao vazio e o vazio à vida
Apagar tudo que nada houvesse nem o vidro
[nem o orvalho
Nada nem à frente nem atrás nada inteiro
Havia eliminado o gelo das mãos postas
Havia eliminado a invernal ossatura
Do voto de viver que se anula

Tu vieste o fogo então reanimou-se
A sombra cedeu o frio de baixo iluminou-se de
[estrelas
E a terra cobriu-se
Da tua carne clara e eu senti-me leve
Vieste a solidão fora vencida
Eu tinha um guia na terra
Sabia conduzir-me sabia-me desmedido
Avançava ganhava espaço e tempo
Caminhava para ti dirigia-me incessantemente
[para a luz
A vida tinha um corpo a esperança desfraldava
[as suas velas
O sono transbordava de sonhos e a noite
Prometia à aurora olhares confiantes
Os raios dos teus braços entreabriam o nevoeiro
A tua boca estava húmida dos primeiros orvalhos
O repouso deslumbrado substituía a fadiga
E eu adorava o amor como nos meus primeiros
[tempos

Os campos estão lavrados as fábricas irradiam
E o trigo faz o seu ninho numa vaga enorme
A seara e a vindima têm inúmeras testemunhas
Nada é simples nem singular
O mar espelha-se nos olhos do céu ou da noite

A floresta dá segurança às árvores
E as paredes das casas têm uma pele comum
E as estradas cruzam-se sempre
Os homens nasceram para se entenderem
Para se compreenderem para se amarem
Têm filhos que se tornarão pais dos homens
Têm filhos sem eira nem beira
Que hão-de reinventar o fogo
Que hão-de reinventar os homens
E a natureza e a sua pátria
A de todos os homens
A de todos os tempos.

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Correspondências

A natureza é um templo augusto, singular,
Que a gente ouve exprimir em língua misteriosa;
Um bosque simbolista onde a árvore frondosa
Vê passar os mortais, e segue-os com o olhar.

Como distintos sons que ao longe vão perder-se,
Formando uma só voz, de uma rara unidade,
Tem vasta como a noite a claridade,
Sons, perfumes e cor logram corresponder-se

Há perfumes subtis de carnes virginais,
Doces como o oboé, verdes como o alecrim,
E outros, de corrupção, ricos e triunfais

Como o âmbar e o musgo, o incenso e o benjoim,
Entoando o louvor dos arroubos ideais,
Com a larga expansão das notas d’um clarim.

Tradução de Delfim Guimarães

Façamos juntos um momento de silêncio ao menos, no arco do nosso dia. Olhemos para o Senhor: Ele pode compreender-nos, porque passou por todas as coisas da vida e da carne.

Auto-Retrato

Poeta é certo mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.

Cozido à portuguesa mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento ambas partes
do meu caldo entornado na infância.

Nos olhos uma folha de hortelã
que é verde como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.

Poeta de combate disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.

A Obsessão Do Sangue

Acordou, vendo sangue… – Horrível! O osso
Frontal em fogo… Ia talvez morrer,
Disse. olhou-se no espelho. Era tão moço,
Ah! certamente não podia ser!

Levantou-se. E eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!

No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão …

E amou, com um berro bárbaro de gozo,
o monocromatismo monstruoso
Daquela universal vermelhidão!

A carne, sendo o ‘eu ilusório’, não pode viver sem explorar o próximo. Somente o ‘Eu verdadeiro’ consegue viver sem tirar proveito dos outros.

Tenho a Certeza de que Entre Nós Tudo Acabou

Tenho a certeza
De que entre nós tudo acabou.
Deixal-o!
Bemdita seja a tristesa!
– Não ha bem que sempre dure
E o meu bem pouco durou.

Não levantes os teus braços,
Para de novo cingir
A minha carne de seda;
– Vou deixar-te… vou partir.

E se um dia te lembrares,
Dos meus olhos côr de bronze
E do meu corpo franzino,
Acalma
A tua sensualidade,
Bebendo vinho e cantando
Os versos que te mandei
N’aquella tarde cinzenta…

Adeus!

Quem fica soffre bem sei;
Mas soffre mais quem se ausenta!…

O Outro

Vão para ti, amor de algum dia,
os gritos rubros da minha alma em sangue;
vives cm mim, corres-me nas veias,
andas a vibrar
na minha carne exangue!

Mas, quando nos teus olhos poisa o meu olhar
enoitado e triste,
vejo-te diferente…
Aquele que tu eras, e que eu amo ainda,
perdeu-se de ti
…e só em mim existe!

A Partida

Partimos muito cedo — A madrugada
Clara, serena, vaporosa e fresca,
Tinha as nuances de mulher tudesca
De fina carne esplêndida e rosada.

Seguimos sempre afora pela estrada
Franca, poeirenta, alegre e pitoresca,
Dentre o frescor e a luz madrigalesca
Da natureza aos poucos acordada.

Depois, no fim, lá de algum tempo — quando
Chegamos nós ao termo da viagem,
Ambos joviais, a rir, cantarolando,

Da mesma parte do levante, de onde
Saímos, pois, faiscava na paisagem
O sol, radioso e altivo como um conde.

Morte não é a Esquálida Caveira

Morte não é a esquálida caveira
Dura, disforme, seca e carcomida:
Ela um destroço é, uma caída
Da abreviada, racional carreira.

De ossos e carne envernizada, inteira,
Por vida tem a nossa própria vida.
Come, bebe, passeia, está vestida
E, até morrer, é nossa companheira.

E sombra que sentimos e não vemos,
Segue-nos sempre aonde quer que vamos,
Só nos deixa nos últimos extremos.

A Morte é sempre a vida que logramos,
Pois morte são os dias que vivemos
E, vida, só o instante que expiramos.

O Mundo, o Demónio e a Carne

Relâmpago adormecido
entre a malva e o estalo
tua penúria, ó Mundo
é a minha penúria.
Somos a mesma falta
de olhos a perseguir
a visão que negou
o barro de meu rosto.

Demónio entre o retinir
das esporas e o redondo
dia,
que fizeste da luz
a arder em minha alma?
Sou teu cúmplice na mão
que apertou o pensamento
em sua nudez.

Carne de minha carne
entre uma pedra e outra
abre-se o trigo
da maldição.
Nossos corpos são nossos
mas o abraço rói
o hálito que foi um
antes de existirmos.

Ego é o homem carnal; é a mente comandada pela carne. O ego é sempre a causa dos sofrimentos, seja qual for o rumo que ele tome. Quem tenta impor seu ego causa sofrimento a si próprio e aos outros.

Vivemos de Matar

Os vivos alimentam-se e engordam às custas dos mortos. É a essência da natureza. Basta ver os documentários sobre a vida selvagem na televisão, aves corpulentas arrancando com o bico as tripas das vítimas, disputando-as entre si; a leoa de focinho enterrado na carne ensanguentada da zebra. Mas nem é preciso ir tão longe: as prateleiras dos supermercados são deprimentes cemitérios: paletes de cordeiro morto, ossos e costeletas de boi esfaqueado, vísceras de vaca sacrificada, lombo de porco eletrocutado, tudo isso em embalagens fabricadas com restos de árvores abatidas. Vivemos do que matamos. Vivemos de matar, ou do que nos é servido morto: os herdeiros consomem os despojos do predecessor, e isso nutre-os, fortalece-os no momento de levantar voo. Quanto maior a quantidade de carne consumida, mais alto e majestoso o voo. E mais elegante, claro. Nada que seja alheio às regras da natureza.

Quem ama o prazer ficará indigente; quem ama vinho e boa carne jamais ficará rico

Quem ama o prazer ficará indigente; quem ama vinho e boa carne jamais ficará rico.

Fábrica

Oh, a poesia de tudo o que é geométrico
e perfeito,
a beleza nova dos maquinismos,
a força secreta das peças
sob o contacto liso e frio dos metais,
a segura confiança

do saber-se que é assim e assim exactamente,
sem lugar a enganos,
tudo matemático e harmónico,
sem nenhum imprevisto, sem nenhuma aventura,
como na cabeça do engenheiro.
Os operários têm nos músculos, de cor,
os movimentos dia a dia repetidos:

é como se fossem da sua natureza,
longe de toda a vontade e de todo o pensamento;

como se os metais fossem carne do corpo
e as veias se abrissem
àquela vida estranha, dura, implacável
das máquinas.

Os motores de tantos mil cavalos
alinhados e seguros de si,
seguros do seu poder;

as articulações subtis das bielas,
o enlace justo das engrenagens:
a fábrica, todo um imenso corpo de movimentos
concordantes, dependentes, necessários.