Passagens de CecĂ­lia Meireles

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Frases, pensamentos e outras passagens de CecĂ­lia Meireles para ler e compartilhar. Os melhores escritores estĂŁo em Poetris.

A Amiga Deixada

Antiga
cantiga
da amiga
deixada.

Musgo da piscina,
de uma água tão fina,
sobre a qual se inclina
a lua exilada.

Antiga
cantiga
da amiga
chamada.

Chegara tĂŁo perto!
Mas tinha, decerto,
seu rosto encoberto…
Cantava — mais nada.

Antiga
cantiga
da amiga
chegada.

PĂ©rola caĂ­da
na praia da vida:
primeiro, perdida
e depois — quebrada.

Antiga
cantiga
da amiga
calada.

Partiu como vinha,
leve, alta, sozinha,
— giro de andorinha
na mĂŁo da alvorada.

Antiga
cantiga
da amiga
deixada.

A minha infância de menina sozinha de-me duas coisas que parecem negativas, e, foram sempre positivas para mim:silêncio e solidão.

Personagem

Teu nome Ă© quase indiferente
e nem teu rosto já me inquieta.
A arte de amar Ă© exactamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o prĂłprio amor que por ti sinto:
Ă©s a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
Ă© um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto Ă© que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silĂŞncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo – o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.

Atitude

Minha esperança perdeu seu nome…
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

O Ăşltimo passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa.

Meus olhos estarĂŁo sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.
E um campo de estrelas irá brotando
atrás das lembranças ardentes.

Criança

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, — e resiste,

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e nĂŁo sabe mais o que sente…

Cabecinha boa de menino mudo
que nĂŁo teve nada, que nĂŁo pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que nĂŁo possuiria.

Eu não dei por esta mudança Tão simples, tão certa, tão fácil. Em que espelho Ficou perdida A minha face?

O Que Amamos Está Sempre Longe de Nós

O que amamos está sempre longe de nós:
e longe mesmo do que amamos – que nĂŁo sabe
de onde vem, aonde vai nosso impulso de amor.

O que amamos está como a flor na semente,
entendido com medo e inquietude, talvez
sĂł para em nossa morte estar durando sempre.

Como as ervas do chĂŁo, como as ondas do mar,
os acasos se vĂŁo cumprindo e vĂŁo cessando.
Mas, sem acaso, o amor lĂ­mpido e exacto jaz.

NĂŁo necessita nada o que em si tudo ordena:
cuja tristeza unicamente pode ser
o equĂ­voco do tempo, os jogos da cegueira

com setas negras na escuridĂŁo.

O Tempo Seca o Amor

O tempo seca a beleza,
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas águas.

O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
vestĂ­gio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.

Esperarei pelo tempo
com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
nĂŁo na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.

Há uma doce luz no silêncio, e a dor é de origem divina. Permita que eu volte o meu rosto para um céu maior que este mundo, e aprenda a ser dócil no sonho como as estrelas no seu rumo.

Recado aos Amigos Distantes

Meus companheiros amados,
nĂŁo vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados.
Mas Ă© certo que vos amo.

Nem sempre os que estĂŁo mais perto
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando Ă© dia.

Pelo vosso campo imenso,
vou cortando meus atalhos.
Por vosso amor Ă© que penso
e me dou tantos trabalhos.

NĂŁo condeneis, por enquanto,
minha rebelde maneira.
Para libertar-me tanto,
fico vossa prisioneira.

Por mais que longe pareça,
ides na minha lembrança,
ides na minha cabeça,
valeis a minha Esperança.

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.

Desfaze-te da vaidade triste de falar. Pensa, completamente silencioso, Até a glória de ficar silencioso, Sem pensar.

Nunca ninguĂ©m viu ninguĂ©m que o amor pusesse tĂŁo triste. Essa tristeza nĂŁo viste, e eu sei que ela se vĂŞ bem…

Se te Abaixasses, Montanha

Se te abaixasses, montanha,
poderia ver a mĂŁo
daquele que nĂŁo me fala
e a quem meus suspiros vĂŁo.

Se te abaixasses, montanha,
poderia ver a face
daquele que se soubesse
deste amor talvez chorasse.

Se te abaixasses, montanha,
poderia descansar.
Mas nĂŁo te abaixes, que eu quero
lembrar, sofrer, esperar.

De tanto olhar para longe, não vejo o que passa perto, meu peito é puro deserto. Subo monte, desço monte. Eu ando sozinha ao longo da noite. Mas a estrela é minha.

Gaita de Lata

Se o amor ainda medrasse,
aqui ficava contigo,
pois gosto da tua face,

desse teu riso de fonte,
e do teu olhar antigo
de estrela sem horizonte.

Como, porém, já não medra,
cada um com a sorte sua!

(NĂŁo nascem lĂ­rios de lua
pelos corações de pedra…)