O esplendor das manhãs, o cheiro do tijuco podre, a lama, está tudo impregnado na minha poesia.
Passagens sobre Cheiro
108 resultadoslamento para a lĂngua portuguesa
não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra lĂngua possa
pĂ´r-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas Ă© o teu paĂs que te destroça,
o teu prĂłprio paĂs quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nĂłs fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que sĂł ruĂnas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como Ă© realidade
a relação da lĂngua com a morte,
o nĂł que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
Soneto XV
Triste do que em tristeza passa o dia,
Feliz porém, se a passa, e enfim lhe passa,
Mas quem ventura teve tĂŁo escassa
Que em nada ache prazer nem alegria.Nos ais, alĂvio tem quem n’alma os cria,
A quem em trevas vive, a luz dá graça,
Há quem do fogo e Sol se satisfaça,
E quem se satisfaça d’água fria.Restaura o ar, na calma, o fraco alento,
Conforta o cheiro de ua flor suave,
Convida a sombra, a erva a grato assento,Suspende da Ave o canto a pena grave;
Ai que nĂŁo aliviam meu termento
Ais, luz, Sol, fogo, água, ar, flor, sombra, erva, Ave.
Vénus
I
Ă€ flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda…
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razĂŁo se perde!PĂştrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfato que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.O seu esboço, na marinha turva…
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pĂ©s atrás, como voando…E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co’a salsugem.II
Singra o navio. Sob a água clara
VĂŞ-se o fundo do mar, de areia fina…
_ Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparĂŞncia luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
_ Ă“ fĂşlgida visĂŁo, linda mentira!RĂłseas unhinhas que a marĂ© partira…
Dentinhos que o vaivĂ©m desengastara…
Males de Anto
A Ares n’uma aldeia
Quando cheguei, aqui, Santo Deus! como eu vinha!
Nem mesmo sei dizer que doença era a minha,
Porque eram todas, eu sei lá! desde o odio ao tedio.
Molestias d’alma para as quaes nĂŁo ha remedio.
Nada compunha! Nada, nada. Que tormento!
Dir-se-ia accaso que perdera o meu talento:
No entanto, ás vezes, os meus nervos gastos, velhos,
Convulsionavam-nos relampagos vermelhos,
Que eram, bem o sentia, instantes de Camões!
Sei de cór e salteado as minhas afflicções:
Quiz partir, professar n’um convento de Italia,
Ir pelo Mundo, com os pĂ©s n’uma sandalia…
Comia terra, embebedava-me com luz!
Extasis, spasmos da Thereza de Jezus!
Contei n’aquelle dia um cento de desgraças.
Andava, á noite, só, bebia a noite ás taças.
O meu cavaco era o dos mortos, o das loizas.
Odiava os homens ainda mais, odiava as Coizas.
Nojo de tudo, horror! Trazia sempre luvas
(Na aldeia, sim!) para pegar n’um cacho d’uvas,
Ou n’uma flor. Por cauza d’essas mĂŁos… Perdoae-me,
Aldeões! eu sei que vós sois puros. Desculpae-me.Mas, atravez da minha dor,
O dinheiro, nĂŁo deita cheiro.
Ciclo Terreno
SĂł morta a natureza se comporta
na expectativa podre dessas frutas
amolecidas no chĂŁo que as conforta
para o vĂ´o de moscas dissolutas.Esse tempo ruĂdo rĂłi a crosta
de rugas ventiladas na disputa
de asas amaciando a pele morta
deixando Ă mostra o feto do desfruto.O cheiro cavo amaro pousa Ă s costas
do vento que carrega no azedume
sementes de tanino em seu curtume.SĂŁo muitos comensais nesse repasto
velando o transitĂłrio na certeza
sabendo que outra fruta volta Ă mesa.
O Amor em Visita
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lĂşbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marĂtimo
e o pĂŁo for invadido pelas ondas –
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele – imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
– Oh cabra no vento e na urze,