O Asco da Imprensa
É impossível percorrer uma qualquer gazeta, seja de que dia for, ou de que mês, ou de que ano, sem aí encontrar, em cada linha, os sinais da perversidade humana mais espantosa, ao mesmo tempo que as presunções mais surpreendentes de probidade, de bondade, de caridade, a as afirmações mais descaradas, relativas ao progresso e à civilização.
Qualquer jornal, da primeira linha à última, não passa de um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, impudicícias, torturas, crimes dos príncipes, crimes das nações, crimes dos particulares, uma embriaguez de atrocidade universal.
E é com este repugnante aperitivo que o homem civilizado acompanha a sua refeição de todas as manhãs. Tudo, neste mundo, transpira o crime: o jornal, a muralha e o rosto do homem.
Não compreendo que uma mão pura possa tocar num jornal sem uma convulsão de asco.
Passagens sobre Civilização
231 resultadosMáximo de Tédio no Máximo de Civilização
Na Terra tudo vive – e só o homem sente a dor e a desilusão da vida. E tanto mais as sente, quanto mais alarga e acumula a obra dessa inteligência que o torna homem, e que o separa da restante Natureza, impensante e inerte. É no máximo de civilização que ele experimenta o máximo de tédio. A sapiência, portanto, está em recuar até esse honesto mínimo de civilização, que consiste em ter um tecto de colmo, uma leira de terra e o grão para nela semear.
Manufacturamos Realidades
Damos comummente às nossas ideias do desconhecido a cor das nossas noções do conhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes.
Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é aquele sistema de vida particular a que no geral se chama civilização. A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade. O objecto torna-se realmente outro, porque o tornámos outro.
Manufacturamos realidades. A matéria-prima continua a ser a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efectivamente de continuar sendo a mesma. Uma mesa de pinho é pinho mas também é mesa. Sentamo-nos à mesa e não ao pinho. Um amor é um instinto sexual, porém não amamos com o instinto sexual, mas com a pressuposição de outro sentimento. E essa pressuposição é,
O livro de bolso é o poderoso instrumento de cultura da civilização moderna.
Cada civilização é obcecada, visível ou invisivelmente, pelo que pensa sobre a morte.
O Inventário da Nossa Civilização
Fazer o inventário ou uma análise da nossa civilização, quer dizer o quê? Procurar esclarecer, de uma maneira rigorosa, a armadilha que fez do homem escravo das suas próprias criações. Por onde se infiltrou a inconsciência entre a acção e o pensamento metódicos? Na vida selvagem, a evasão constitui uma solução preguiçosa. É preciso reencontrar, na própria civilização em que vivemos, o pacto original entre o espírito e o mundo. De resto, trata-se de uma tarefa impossível de concretizar, por causa da brevidade da vida e da impossibilidade da colaboração e da sucessão. O que não é razão para não a empreender. Estamos todos em situação análoga à de Sócrates, o qual, enquanto esperava a morte na prisão, aprendeu a tocar lira… pelo menos, teremos vivido…
Deem-me uma selvajaria cujo o vislumbre nenhuma civilização consegue suportar.
Liberdade
Antes que a ideia de Deus esmagasse os homens, antes dos autos de fé, das perseguições religiosas da Inquisição e do fundamentalismo islâmico, o Mediterrâneo inventou a arte de viver. Os homens viviam livres dos castigos de Deus e das ameaças dos Profetas: na barca da morte até à outra vida, como acreditavam os egípcios. E os deuses eram, em vida dos homens, apenas a celebração de cada coisa: a caça, a pesca, o vinho, a agricultura, o amor. Os deuses encarnavam a festa e a alegria da vida e não o terror da morte.
Antes da queda de Granada, antes das fogueiras da Inquisição, antes dos massacres da Argélia, o Mediterrâneo ergueu uma civilização fundada na celebração da vida, na beleza de todas as coisas e na tolerância dos que sabem que, seja qual for o Deus que reclame a nossa vida morta, o resto é nosso e pertence-nos – por uma única, breve e intensa passagem. É a isso que chamamos liberdade – a grande herança do mundo do Mediterrâneo.
(…) Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos;
O Egoísmo do Homem das Cidades
A miséria parece uma secreção do progresso, da civilização. Não é nos campos (até em plena crise), onde a vida é simples e sem ambições, que a miséria se torna aflitiva, dramática. A sua tragédia sem remédio desenvolve-se antes nas cidades, nas grandes capitais, tanto mais insensíveis e duras quanto mais civilizadas. A mecanização, o automatismo do progresso que transforma os homens em máquinas, isolam-no brutalmente substituindo os seus gestos e impulsos afectivos por complicadas e frias engrenagens. O homem das cidades, modelado, esculpido na própria luta com os outros que lhe disputam o seu lugar ao sol, é talvez, sem reparar, a encarnação do próprio egoísmo.
Ode Triunfal
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
A Inquietação Moderna
Em direcção a oeste, a movimentação moderna torna-se cada vez maior, de modo que, para os Americanos, os habitantes da Europa na sua totalidade se apresentam como seres que gostam do sossego e dele usufruem, quando estes mesmos, no entanto, voam em confusão como abelhas e vespas. Esta movimentação torna-se tão grande que a cultura superior já não pode madurar os seus frutos; é como se as estações do ano se seguissem umas às outras demasiado depressa. Por falta de sossego, a nossa civilização vai dar a uma nova barbárie. Em nenhuma época, os activos, ou seja, os irrequietos, foram tão considerados. Reforçar em grande medida o elemento contemplativo faz parte, por conseguinte, das necessárias correcções que se tem de efectuar no carácter da humanidade. No entanto, desde já, cada indivíduo, que seja calmo e constante de coração e de cabeça, tem o direito de crer que possui não só um bom temperamento, mas também uma virtude de utilidade geral e que, ao conservar essa atitude, até cumpre uma missão superior.
A decantada civilização tem multiplicado de tal modo as nossas necessidades e desejos, que para os contentar e satisfazer somos forçados, piorando de costumes, a sujeitar-nos a maiores trabalhos e cuidados.
Os cumes da civilização e do progresso estão distantes um do outro. Não devemos deixar-nos enganar sobre o antagonismo profundo que separa civilização de progresso.
O Supremo Palhaço da Criação
A velha noção antropomórfica de que todo o universo se centraliza no homem – de que a existência humana é a suprema expressão do processo cósmico – parece galopar alegremente para o baú das ilusões perdidas. O facto é que a vida do homem, quanto mais estudada à luz da biologia geral, parece cada vez mais vazia de significado. O que no passado deu a impressão de ser a principal preocupação e obra-prima dos deuses, a espécie humana começa agora a apresentar o aspecto de um sub-produto acidental das maquinações vastas, inescrutáveis e provavelmente sem sentido desses mesmos deuses.
(…) O que não quer dizer, naturalmente, que um dia a tal teoria seja abandonada pela grande maioria dos homens. Pelo contrário, estes a abraçarão à medida que ela se tornar cada vez mais duvidosa. De fato, hoje, a teoria antropomórfica ainda é mais adoptada do que nas eras de obscurantismo, quando a doutrina de que um homem era um quase Deus foi no mínimo aperfeiçoada pela doutrina de que as mulheres inferiores. O que mais está por trás da caridade, da filantropia, do pacifismo, da “inspiração” e do resto dos atuais sentimentalismos? Uma por uma, todas estas tolices são baseadas na noção de que o homem é um animal glorioso e indescritível,
Falas de Civilização, e de não Dever Ser
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
Cada Dia que Passa me Aproxima de Si
Bom! Recebo neste instante a sua carta escrita à luz de uma só vela – e tenho de retirar tudo, tudo, tudo o que escrevi! Pois acabou-se! Não retiro. A minha querida dizia no outro dia que devíamos mostrar um ao outro todos os estados de espírito em que tivéssemos estado. Mostro-lhe, assim, que estive hoje, ontem, antes de ontem num estado de impaciência por uma palavra sua, gemendo e queixando-me de «ne voir rien venir». E mostro-lhe assim o desejo de ter todos os dias, ou quase todos, um doce, adorado, apetecido e consolador «petit mot». (…) As pessoas que se estimam nunca deviam se apartar; a culpa tem-na a nossa complicada civilização; o encanto seria que os que se amam se juntassem em tribos, acampando aqui e além, com as suas afeições e a sua bilha de água, and «settling down to be happy, anywhere, under a tree».
Cada dia que passa, agora, me aproxima de si. (…) Eu também não realizo bem a situação. Ela não deixa de ser ligeiramente romântica. Separamo-nos amigos, reencontramo-nos noivos. Que profunda, grave, séria diferença! Enquanto a gente se escreve, num tom de alegre felicidade, gracejando por vezes, falando de sentimentos e dando «notícias do coração» –
A Falta de Cultura Ética da Nossa Civilização
Creio que o exagero da atitude puramente intelectual, orientando, muitas vezes, a nossa educação, em ordem exclusiva ao real e à prática, contribuiu para pôr em perigo os valores éticos. Não penso propriamente nos perigos que o progresso técnico trouxe directamente aos homens, mas antes no excesso e confusão de considerações humanas recíprocas, assentes num pensamento essencialmente orientado pelos interesses práticos que vem embotando as relações humanas.
O aperfeiçoamento moral e estético é um objectivo a que a arte, mais do que a ciência, deve dedicar os seus esforços. É certo que a compreensão do próximo é de grande importância. Essa compreensão, porém, só pode ser fecunda quando acompanhada do sentimento de que é preciso saber compartilhar a alegria e a dor. Cultivar estes importantes motores de acção é o que compete à religião, depois de libertada da superstição. Nesse sentido, a religião toma um papel importante na educação, papel este que só em casos raros e pouco sistematicamente se tem tomado em consideração.
O terrível problema magno da situação política mundial é devido em grande parte àquela falta da nossa civilização. Sem «cultura ética» , não há salvação para os homens.
A Mentira é a Base da Civilização Moderna
É na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc… A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.
Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.
A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc. …
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António,
Há numerosos indivíduos civilizados que recuariam aterrados perante a ideia do assassínio ou do incesto, mas que não desdenham satisfazer a sua cupidez, a sua agressividade, as suas cobiças sexuais, que não hesitam em prejudicar os seus semelhantes por meio da mentira, do engano, da calúnia, contanto que o possam fazer com impunidade.
O Falso Mérito do Cínico
O cínico, parasita da civilização, vive de negá-la, simplesmente porque está convencido de que esta não lhe faltará.