A Dupla Realidade
A mente pregava-nos partidas. Fabricava estímulos, treslia sinais. Lesões e fissuras instalavam-se no corpo caloso dos nossos cérebros, dificultando a comunicação entre as suas duas metades. Confundiam o hemisfério da racionalidade e, nos momentos mais inconvenientes, obrigavam a entrar em acção aquele ao qual cabia o fabrico de histórias.
Talvez tivesse sido o caso. Lera sobre isso. O cérebro podia ser mentiroso, e as ilusões ópticas não passavam do menor dos seus truques. Um pequeno desequilíbrio entre o esplénio e o fórnix era suficiente para a instauração de uma espécie de dupla-realidade — pelo menos até que se impusesse o dilema lógico capaz de produzir o curto-circuito capaz de a desmontar. E nem nesse momento um homem poderia considerar-se a salvo, porque, como qualquer curto-circuito, também esse era de consequências imprevisíveis.
Passagens sobre Comunicação
83 resultadosOs Recursos de um Poeta
Presumo que um poeta dispõe de recursos muito mais amplos do que os meramente verbais e que, utilizando-os mesmo em exclusivo, eles devem tender à organização não apenas literária, ou gramatical, ou rítmica. Compreendo que se possam fazer poemas recorrendo, por exemplo, à expressão matemática, ao grafismo, à técnica comercial e industrial, às máquinas, à música, ou a qualquer outra fonte e tipo de sintaxe. Por outro lado, imagino que as preocupações do poeta se devem libertar da linguagem organizada para o diálogo. Max Bense afirma algo de semelhante, ao acentuar que «no conceito convencional de literatura, põe-se a ênfase na função comunicativa-social dela, enquanto que, no conceito progressivo, se insiste na sua função experimentativa-intelectual». Interessa-me, portanto, chegado que sou à convicção de me haver limitado, nos livros anteriores, a mover-me em círculo sobre uma linguagem esgotada – interessa-me digo, muito menos executar, uma gramática literária, destinada ao diálogo, do que perfazer um organismo internamente coerente e bastante. A comunicação será consequente, se for. De qualquer modo, bani a ideia, do diálogo, no meu estilo. Mas sinto-me ligado aos escritos antigos como alguém se pode sentir ligado a um paciente e doloroso erro…
A Precisão da Escrita não Faz o Bom Escritor
Como escritor, poderá alguém fazer a experiência de que quanto mais precisa, esmerada e adequadamente se expressar, tanto mais difícil de entender será o resultado literário, ao passo que quando o faz de forma laxa e irresponsável se vê recompensado com uma segura inteligibilidade. De nada serve evitar asceticamente todos os elementos da linguagem especializada e todas as alusões a esferas culturais não estabelecidas. O rigor e a pureza da textura verbal, inclusive na extrema simplicidade, criam antes um vazio. O desmazelo, o nadar com a corrente familiar do discurso, é um sinal de vinculação e de contacto: sabe-se o que se quer porque se sabe o que o outro quer. Enfrentar a coisa na expressão, em vez da comunicação, é suspeitoso: o específico, o que não está acolhido no esquematismo, parece uma desconsideração, um sintoma de excentricidade, quase de confusão. A lógica do nosso tempo, que tanto se ufana da sua claridade, acolheu ingenuamente tal perversão na categoria da linguagem quotidiana.
A expressão vaga permite a quem a ouve ter uma ideia aproximada do que é que lhe agrada e do que, de qualquer modo, opina. A rigorosa exige a univocidade da concepção, o esforço do conceito,