Estoicismo
(A Manoel Duarte de Almeida)
Tu que não crês, nem amas, nem esperas,
Espírito de eterna negação,
Teu hálito gelou-me o coração
E destroçou-me da alma as primaveras…Atravessando regiões austeras,
Cheias de noite e cava escuridão,
Como n’um sonho mau, só oiço um não,
Que eternamente ecoa entre as esferas…— Porque suspiras, porque te lamentas,
Cobarde coração? Debalde intentas
Opôr á Sorte a queixa do egoísmo…Deixa aos tímidos, deixa aos sonhadores
A esperança vã, seus vãos fulgores…
Sabe tu encarar sereno o abismo!
Passagens sobre Coração
2137 resultadosO primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
O poeta desmente as leis fisiológicas, vivendo do princípio vital de uma única entranha: o coração.
As feridas morais tem a particularidade de que se escondem, mas não se fecham; sempre dolorosas, sempre prontas a sangrar quando são tocadas, ficam vivas e abertas no coração.
Incubadora
Era tão pequena a mão que
nem o seu dedo mendinhoconseguia agarrar. Pesava
quinhentos gramas e respiravasem ajuda do ventilador
O coração da sua mãe quaseque não batia com receio de
que ele sufocasse sob o pesodo seu amor
Triste Regresso
Uma vez um poeta, um tresloucado,
Apaixonou-se d’uma virgem bela;
Vivia alegre o vate apaixonado,
Louco vivia, enamorado dela.Mas a Pátria chamou-o. Era o soldado,
E tinha que deixar p’ra sempre aquela
Meiga visão, olímpica e singela!
E partiu, coração amargurado.Dos canhões ao ribombo e das metralhas,
Altivo lutador, venceu batalhas,
Juncou-lhe a fronte aurifulgente estrela,E voltou, mas a fronte aureolada,
Ao chegar, pendeu triste e desmaiada,
No sepulcro da loura virgem bela.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Esse primeiro calor ainda fresco traz: tudo. Apenas isso, e indiviso: tudo. E tudo é muito para um coração de repente enfraquecido que só suporta o menos, só pode querer o pouco e aos poucos.
Dizem que Finjo ou Minto
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê!
Pois deixe que a convivência faça falar o coração.
Pássaros
Eu não sei o nome destes pássaros que viajam alto.
Anjos? Não. Ouve-se-lhes bater o coração.Os nazis distribuíam sopa aos pobres
(vejo na TV como quem diz «nem tudo foi mau»).
Revejo-me numa foto de 70
dando sopa aos pobres de Cangombe. – «Tu és nazi,
pergunto?»Não te compete a ti explicares-te, rapaz
sobretudo quando escreves versos
e pensas que em qualquer caso vale sempre a pena
adiar um pouco mais a morte.
E nem nunca mesmo ninguém explicou se um império que morre
morre de imortalidade ou de morte natural.Tranquiliza-te: a besta que és
tu a suportas cada vez menos. Isso é bom, tão sério sendo?
O Amor
I
Eu nunca naveguei, pieguíssimo argonauta
Dans les fleuves du tendre, onde há naufrágios bons,
Conduzindo Florian na tolda a tocar frauta,
E cupidinhos d’oiro a tasquinhar bombons.
Nunca ninguém me viu de capa à trovador,
Às horas em que está já Menelau deitado,
A tanger o arrabil sob os balcões em flor
Dos castelos feudais de papelão doirado.
Não canto de Anfitrite as vaporosas fraldas,
(Eu não quero com isto, ó Vénus, descompor-te)
Nem costumo almoçar c’roado de grinaldas,
Nem nunca pastoreei enfim, vestido à corte,
De bordão de cristal e punhos de Alençon,
Borreguinhos de neve a tosar esmeraldas
Num lameiro qualquer de qualquer Trianon.
Eu não bebo ambrósia em taças cristalinas,
Bebo um vinho qualquer do Douro ou de Bucelas,
Nem vou interrogar as folhas das boninas,
Para saber o amor, o tal amor das Elas.
Não visto da poesia a túnica inconsútil,
Pela simples razão, sob o pretexto fútil
De ter visto passar na rua uns pés bonitos;
Nem do meu coração eu fiz um paliteiro,
Onde venha o amor cravar os seus palitos.
Antes vergonha na cara que mágoa no coração.
Amar e saber amar… Amar com o coração e não com a cabeça.
Não temais a derrota de hoje. Concentrai vossos corações e vossas mãos num único alvo: a vitória final!
O Supremo Palhaço da Criação
A velha noção antropomórfica de que todo o universo se centraliza no homem – de que a existência humana é a suprema expressão do processo cósmico – parece galopar alegremente para o baú das ilusões perdidas. O facto é que a vida do homem, quanto mais estudada à luz da biologia geral, parece cada vez mais vazia de significado. O que no passado deu a impressão de ser a principal preocupação e obra-prima dos deuses, a espécie humana começa agora a apresentar o aspecto de um sub-produto acidental das maquinações vastas, inescrutáveis e provavelmente sem sentido desses mesmos deuses.
(…) O que não quer dizer, naturalmente, que um dia a tal teoria seja abandonada pela grande maioria dos homens. Pelo contrário, estes a abraçarão à medida que ela se tornar cada vez mais duvidosa. De fato, hoje, a teoria antropomórfica ainda é mais adoptada do que nas eras de obscurantismo, quando a doutrina de que um homem era um quase Deus foi no mínimo aperfeiçoada pela doutrina de que as mulheres inferiores. O que mais está por trás da caridade, da filantropia, do pacifismo, da “inspiração” e do resto dos atuais sentimentalismos? Uma por uma, todas estas tolices são baseadas na noção de que o homem é um animal glorioso e indescritível,
Aquele que não tiver o Natal no seu coração nunca o encontrará debaixo de uma árvore.
Moralidade
É nosso coração vorage imensa,
Em que Honras, Cargos, lúbrica Ventura
São dos Desejos vagos a mantença,
Que, gozados, os manda à sepultura,
Para abrir nova boca à turba densa
De prazeres de nova formosura
Quais das talhas das Bélides impias,
Se esvaecem as águas fugidias.
A Amizade Ideal
Nada é mais agradável à alma do que uma amizade terna e fiel. É bom encontrarmos corações atenciosos, aos quais podes confiar todos os teus segredos sem perigo, cujas consciências receias menos do que a tua, cujas palavras suavizam as tuas inquietações, cujos conselhos facilitam as tuas decisões, cuja alegria dissipa a tua tristeza, cuja simples aparição te deixa radiante! Tanto quanto for possível, devemos escolher aqueles que estão livres de afecções: de facto, os vícios rastejam, passam de pessoa para pessoa com a proximidade e qualquer contacto com eles pode ser prejudicial.
Tal como numa epidemia, devemos ter o cuidado de não nos aproximarmos das pessoas afectadas, porque correremos perigo só de respirarmos perto delas, também, em relação aos amigos, devemos ter o cuidado de escolher aqueles que estão menos corrompidos: a doença começa quando se misturam os homens saudáveis com os doentes. Não estou, com isto, a exigir-te que procures e sigas apenas o sábio: de facto, onde encontrarás um homem destes, que procuro há tanto tempo? Procura o menos mau, antes de procurares o óptimo.
(…) Evitemos, sobretudo, os temperamentos tristes, que se lamentam de tudo e não deixam escapar uma única ocasião de se queixarem.
A razão não me ensinou nada. Tudo o que eu sei foi-me dado pelo coração.