Passagens de Cruz e Souza

306 resultados
Frases, pensamentos e outras passagens de Cruz e Souza para ler e compartilhar. Os melhores escritores estĂŁo em Poetris.

Primavera A Fora

Escute, excelentĂ­ssima: — Que aragens
Traz do ĂĄrvoredo a fresca romaria;
Como este sol Ă© rubro de alegria,
Que tons de luz nas lĂ­mpidas paisagens.

Pois beba este ar e goze estas viagens
Das brancas aves, sinta esta harmonia
Da natureza e deste alegre dia
Que resplandece e ri-se nas ervagens.

Deixe lĂĄ fora estrangular-se o mundo…
Encare o céu e veja este fecundo
ChĂŁo que produz e que germina as flores.

Vamos, senhora, o braço à primavera,
E numa doce mĂșsica sincera,
Cante a balada eterna dos amores…

Cristo De Bronze

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
EnsangĂŒentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.

Ó Cristos de altivez intemerata,
Ó Cristos de metais estrepitosos
Que gritam como os tigres venenosos
Do desejo carnal que enerva e mata.

Cristos de pedra, de madeira e barro…
Ó Cristo humano, estĂ©tico, bizarro,
Amortalhado nas fatais injurias…

Na rija cruz aspérrima pregado
Canta o Cristo de bronze do Pecado,
Ri o Cristo de bronze das luxĂșrias!…

Tulipa Real

Carne opulenta, majestosa, fina,
Do sol gerada nos febris carinhos,
HĂĄ mĂșsicas, hĂĄ cĂąnticos, hĂĄ vinhos
Na tua estranha boca sulferina.

A forma delicada e alabastrina
Do teu corpo de lĂ­mpidos arminhos
Tem a frescura virginal dos linhos
E da neve polar e cristalina.

Deslumbramento de luxĂșria e gozo,
Vem dessa carne o travo aciduloso
De um fruto aberto aos tropicais mormaços.

Teu coração lembra a orgia dos triclĂ­nios…
E os reis dormem bizarros e sangĂŒĂ­neos
Na seda branca e pulcra dos teus braços.

Spleen De Deuses

Oh! DĂĄ-me o teu sinistro Inferno
Dos desesperos tétricos, violentos,
Onde rugem e bramem como os ventos
AnĂĄtemas da Dor, no fogo eterno…

DĂĄ-me o teu fascinante, o teu falerno
Dos falernos das lĂĄgrimas sangrentos
Vinhos profundos, venenosos, lentos
Matando o gozo nesse horror do Averno.

Assim o Deus dos PĂĄramos clamava
Ao DemĂŽnio soturno, e o rebelado,
CapricĂłrnio SatĂŁ, ao Deus bradava.

Se Ă©s Deus-e jĂĄ de mim tens triunfado,
Para lavar o Mal do Inferno e a bava
DĂĄ-me o tĂ©dio senil do cĂ©u fechado…

LĂ­rio Lutuoso

EssĂȘncia das essĂȘncias delicadas,
Meu perfumoso e tenebroso lĂ­rio,
Oh! dĂĄ-me a glĂłria de celeste EmpĂ­reo
Da tu’alma nas sombras encantadas.

Subindo lento escadas por escadas,
Nas espirais nervosas do MartĂ­rio,
Das Ânsias, da Vertigem, do Delírio,
Vou em busca de mĂĄgicas estradas.

Acompanha-me sempre o teu perfume,
LĂ­rio da Dor que o Mal e o Bem resumem,
Estrela negra, tenebroso fruto.

Oh! dĂĄ-me a glĂłria do teu ser nevoento
para que eu possa haurir o sentimento
Das lĂĄgrimas acerbas do teu luto!.

Clamor Supremo

Vem comigo por estas cordilheiras!
PÔe teu manto e bordão e vem comigo,
Atravessa as montanhas sobranceiras
E nada temas do mortal Perigo!

Sigamos para as guerras condoreiras!
Vem, resoluto, que eu irei contigo
Dentre as Águias e as chamas feiticeiras,
SĂł tendo a Natureza por abrigo.

Rasga florestas, bebe o sangue todo
Da Terra e transfigura em astros lodo,
O prĂłprio lodo torna mais fecundo.

Basta trazer um coração perfeito,
Alma de eleito, Sentimento eleito
Para abalar de lado a lado o mundo!

VisĂŁo Guiadora

Ó alma silenciosa e compassiva
Que conversas com os Anjos da Tristeza,
Ó delicada e lñnguida beleza
Nas cadeias das lĂĄgrimas cativa.

FrĂĄgil, nervosa timidez lasciva,
Graça magoada, doce sutileza
De sombra e luz e da delicadeza
Dolorosa de mĂșsica aflitiva.

Alma de acerbo, amargurado exĂ­lio,
Perdida pelos céus num vago idílio
Com as almas e visÔes dos desolados.

Ó tu que Ă©s boa e porque Ă©s boa Ă©s bela,
Da Fé e da Esperança eterna estrela
Todo o caminho dos desamparados.

ManhĂŁ

Alta alvorada. — Os Ășltimos nevoeiros
A luz que nasce levemente espalha;
Move-se o bosque, a selva que farfalha
Cheia da vida dos clarÔes primeiros.

Da passarada os vĂŽos condoreiros,
Os cantos e o ar que as ĂĄrvores ramalha
Lembram combate, estrĂ­dula batalha
De elementos contrĂĄrios e altaneiros.

Vozes, trinados, vibraçÔes, rumores
Crescem, vĂŁo se fundindo aos esplendores
Da luz que jorra de invisível taça.

E como um rei num galeĂŁo do Oriente
O sol pÔe-se a tocar bizarramente
Fanfarras marciais, trompas de caça.

Olhos

II
A GrĂ©cia d’Arte, a estranha claridade
D’aquela GrĂ©cia de beleza e graça,
Passa, cantando, vai cantando e passa
Dos teus olhos na eterna castidade.

Toda a serena e altiva heroicidade
Que foi dos gregos a imortal couraça,
Aquele encanto e resplendor de raça
Constelada de antiga majestade,

Da Atenas flórea toda o viço louro,
E as rosas e os mirtais e as pompas d’ouro,
OdissĂ©ias e deuses e galeras…

Na sonolĂȘncia de uma lua aziaga,
Tudo em saudade nos teus olhos vaga,
Canta melancolias de outras eras!…

Tortura Eterna

ImpotĂȘncia cruel, Ăł vĂŁ tortura!
Ó Força inĂștil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura!
Ó luta, Ó luta secular, insana!

Que tu nĂŁo possas, Alma soberana,
Perpetuamente refulgir na Altura,
Na Aleluia da Luz, na clara Hosana
Do Sol, cantar, imortalmente pura.

Que tu nĂŁo posses, Sentimento ardente,
Viver, vibrar nos brilhos do ar fremente,
Por entre as chamas, os clarÔes supernos.

Ó Sons intraduzĂ­veis, Formas, Cores!…
Ah! que eu nĂŁo possa eternizar as cores
Nos bronzes e nos mĂĄrmores eternos!

Flores Da Lua

Brancuras imortais da Lua Nova
Frios de nostalgia e sonolĂȘncia…
Sonhos brancos da Lua e viva essĂȘncia
Dos fantasmas noctĂ­vagos da Cova.

Da noite a tarda e taciturna trova
Soluça, numa tremula dormĂȘncia…
Na mais branda, mais leve florescĂȘncia
Tudo em VisÔes e Imagens se renova.

Mistérios virginais dormem no Espaço,
Dormem o sono das profundas seivas,
MonĂłtono, infinito, estranho e lasso…

E das Origens na luxĂșria forte
Abrem nos astros, nas sidéreas leivas
Flores amargas do palor da Morte.

Canção Da Formosura

Vinho de sol ideal canta e cintila
Nos teus olhos, cintila e aos lĂĄbios desce,
Desce a boca cheirosa e a empurpurece,
Cintila e canta apĂłs dentre a pupila.

Sobe, cantando, a limpidez tranqĂŒila
Da tu’alma estrelada e resplandece,
Canta de novo e na doirada messe
Do teu amor, se perpetua e trila…

Canta e te alaga e se derrama e alaga…
Num rio de ouro, iriante, se propaga
Na tua carne alabastrina e pura.

Cintila e canta na canção das cores,
Na harmonia dos astros sonhadores,
A Canção imortal da Formosura!

Cabelos

I

Cabelos! Quantas sensaçÔes ao vĂȘ-los!
Cabelos negros, do esplendor sombrio,
Por onde corre o fluido vago e frio
Dos brumosos e longos pesadelos…

Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos,
Tudo que lembra as convulsÔes de um rio
Passa na noite cĂĄlida, no estio
Da noite tropical dos teus cabelos.

Passa através dos teus cabelos quentes,
Pela chama dos beijos inclementes,
Das dolĂȘncias fatais, da nostalgia…

Auréola negra, majestosa, ondeada,
Alma da treva, densa e perfumada,
LĂąnguida Noite da melancolia!

Clamando

BĂĄrbaros vĂŁos, dementes e terrĂ­veis
Bonzos tremendos de ferrenho aspeto,
Ah! deste ser todo o clarĂŁo secreto
Jamais pĂŽde inflamar-vos, ImpassĂ­veis!

Tantas guerras bizarras e incoercĂ­veis
No tempo e tanto, tanto imenso afeto,
SĂŁo para vĂłs menos que um verme e inseto
Na corrente vital pouco sensĂ­veis.

No entanto nessas guerras mais bizarras
De sol, clarins e rĂștilas fanfarras,
Nessas radiantes e profundas guerras…

As minhas carnes se dilaceraram
E vão, das IlusÔes que flamejaram,
Com o prĂłprio sangue fecundando as terras…

Mealheiro De Almas

LĂĄ, das colheitas do celeste trigo,
Deus ainda escolhe a mais louçã colheita:
É a alma mais serena e mais perfeita
Que ele destina conservar consigo.

Fica lĂĄ, livre, isenta de perigo,
TranqĂŒila, pura, lĂ­mpida, direita
A alma sagrada que resume a seita
Dos que fazem do Amor eterno Abrigo.

Ele quer essas almas, os pĂŁes alvos
Das aras celestiais, claros e salvos
Da Terra, em busca das Esferas calmas.

Ele quer delas todo o amor primeiro
Para formar o cĂąndido mealheiro
Que hĂĄ de estrelar todo o Infinito de almas.

Êxtase BĂșdico

Abre-me os braços, Solidão profunda,
ReverĂȘncia do cĂ©u, solenidade
Dos astros, tenebrosa majestade,
Ó planetária comunhão fecunda!

Óleo da noite, sacrossanto, inunda
Todo o meu ser, dĂĄ-me essa castidade,
As azuis florescĂȘncias da saudade,
Graça das graças imortais oriunda!

As estrelas cativas no teu seio
DĂŁo-me um tocante e fugitivo enleio,
Embalam-me na luz consoladora!

Abre-me os braços, Solidão radiante,
Funda, fenomenal e soluçante,
Larga e bĂșdica Noite Redentora!

Campesinas IV

Através das romãzeiras
E dos pomares floridos
Ouvem-se as vezes ruĂ­dos
E bater d’asas ligeiras.

SĂŁo as aves forasteiras
Que dos seus ninhos queridos
VĂȘm dar ali os gemidos
Das ilusÔes passageiras.

VĂȘm sonhar leves quimeras,
IdĂ­lios de primaveras,
Contar os risos e os males.

VĂȘm chorar um seio de ave
Perdida pela suave
CarĂ­cia verde dos vales.

Humildade Secreta

Fico parado, em ĂȘxtase suspenso,
Às vezes, quando vou considerando
Na humildade simpĂĄtica, no brando
Mistério simples do teu ser imenso.

Tudo o que aspiro, tudo quanto penso
D’estrelas que andam dentro em mim cantando,
Ah! tudo ao teu fenĂŽmeno vai dando
Um céu de azul mais carregado e denso.

De onde nĂŁo sei tanta simplicidade,
Tanta secreta e lĂ­mpida humildade
Vem ao teu ser como os encantos raros.

Nos teus olhos tu alma transparece…
E de tal sorte que o bom Deus parece
Viver sonhando nos teus olhos claros.

Sensibilidade

Como os audazes, ruivos argonautas,
Intrépidos, viris e corajosos
Que voltam dos orientes fantasiosos,
Dos paĂ­ses de NĂșbios e Aranautas.

Como esses bravos, que por naus incautas,
Regressam dos oceanos borrascosos,
Indo encontrar nos lares harmoniosos
De luz, vinho e alegria as mesas lautas.

Tal o meu coração, quando aparece
A tua imagem, canta e resplandece,
Sem lutas, sem paixÔes, livre de abrolhos.

A meu pesar, louco de ver-te, louco,
As lĂĄgrimas me correm pouco a pouco,
Como o champanhe virginal dos olhos…

Vanda

Vanda! Vanda do amor, formosa Vanda,
MakuĂąma gentil, de aspecto triste,
Deixe que o coração que tu poluíste
Um dia, se abra e revivesça e expanda.

Nesse teu lĂĄbio sem calor onde anda
A sombra vĂŁ de amores que sentiste
Outrora, acende risos que nĂŁo viste
Nunca e as tristezas para longe manda.

Esquece a dor, a lĂșbrica serpente
Que, embora esmaguem-lhe a cabeça ardente,
Agita sempre a cauda venenosa.

Deixa pousar na seara dos teus dias
A caravana irial das alegrias
Como as abelhas pousam numa rosa.