Passagens sobre Despedida

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Ditosos a quem Acena

MARINHA

Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena…
Eu sofro sem pena a vida.

Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar…

E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.

Num Bairro Moderno

Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama do papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho da horta aglomerada
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a.
Pôs-se de pé, ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:
“Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.” È muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

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Razões

“Razões…”
I
Pensarás que é mentira e é no entanto verdade
– mas me afasto de ti, propositadamente,
pelo estranho prazer de sentir que a saudade
ainda torna maior o coração da gente…

Parto! Bem sei que parto sem necessidade!
Quero ver os teus olhos turvos, de repente,
embora não compreenda essa felicidade
que assim te faz sofrer comigo inutilmente!

Quero ouvir-te na hora da despedida
que eu volte bem depressa para a tua vida,
– quero no último beijo um soluço interior…

Que enquanto ficas só, e enquanto vou sozinho,
sabemos que a saudade vai tecendo o ninho
que há de aquecer na volta o nosso eterno amor!

As Esperas

Uma

Esperamos na paz que a si mesma se anula
aquilo que nos possa doar o tempo,
além da passividade a que nos habituámos
e a confusão de sentimentos que move,
incautos, nossos passos pelas ruas.

A angústia de saber que não se volta a casa
e para sempre deixamos as fronteiras do país
visita-nos com a sua invalidez irreparável
no instante compassivo em que prenderíamos
as mãos ao pouco que displicentemente amámos.

Pois nada nos poderia assombrar sob a coberta,
na intimidade de nossas casas, ao deitarmos
a cabeça na almofada. Não há liturgia da palavra
nem ofertório aos santos que permita a uma existência
ociosa achar no meio do terror área reservada.

Assim esperamos, mantendo o porte de cabeça
que nos distingue, sem cartas de despedida,
sem apologia e afixação de editais penitentes,
sem aquinhoar por quem fica os bens de raiz,
o tiro certeiro que nos redima em obra póstuma.

Amar quem Está tão Próximo da Morte

Esta estação do ano podes vê-la
em mim: folhas caindo ou já caídas;
ramos que o frémito do frio gela;
árvore em ruína, aves despedidas.

E podes ver em mim, crepuscular,
o dia que se extingue sobre o poente,
com a noite sem astros a anunciar
o repouso da morte, gradualmente.

Ou podes ver o lume extraordinário,
morrendo do que vive: a claridade,
deitado sobre o leito mortuário
que é a cinza da sua mocidade.

Eis o que torna o teu amor mais forte:
amar quem está tão próximo da morte.

Tradução de Carlos de Oliveira

Soneto De Aniversário

Setembro me agasalha nos seus galhos
e de amor canto no seu verde ventre:
Eis a ventura vaga em danação,
bronze canonizado nas cigarras.

O canto é breve, fino, e já anuncia
o inconfundível som do último acorde:
aquele dó de peito em nó estrídulo.
Como Bashô sonhara, é despedida

que mal se sabe, é morte anunciada,
canora liturgia sazonal.
Em setembro me mato e me renasço

em canto livre, rouco, sem ter palco,
representando de cor e salteado
o meu 13, que é fado e sortilégio.

A Despedida

Três modos de despedida
Tem o meu bem para mim:
– «Até logo»; «até à vista»:
Ou «adeus» – É sempre assim.

«Adeus», é lindo, mas triste;
«Adeus» … A Deus entregamos
Nossos destinos: partimos,
Mal sabendo se voltamos.

«Até logo», é já mais doce;
Tem distancia e ausência, é certo;
Mas não é nem ano e dia,
Nem tão-pouco algum deserto.

Vale mais «até à vista»,
Do que «até logo» ou «adeus»;
«À vista», lembra, voltando,
Meus olhos fitos nos teus.

Três modos de despedida
Tem, assim, o meu Amor;
Antes não tivesse tantos!
Nem um só… Fora melhor.

Ilha

Eis-me completamente só em plena vida,
sem uma amor sequer à vista, sem ninguém:
– a que um dia julguei eterna, a mais querida,
traí-a, e me traiu… já não lhe quero bem…

a outra, a que me chegou quase que despercebida
e acabou sendo tudo o que a paixão contém,
tal como me chegou partiu: sem despedida!
e eis-me só, na lembrança, a aguardá-la também.

Completamente só, perdido em plena vida
como desabitada ilha, íngreme penha
fora de rota, a erguer-se entre vagas bravias.

Uma ilha em pleno mar, esperando esquecida
que algum náufrago amor ( algum dia) ainda venha
por milagre encontrar suas praias vazias..

Os Amantes de Pompeia

Eles conheceram-se neste abraço
em que levam tanto tempo,
embalados na cadência,

de uma canção desconhecida
e no mover das mãos que hesitam
entre o animal e a planta.
O tempo privou-os de vida
mas não um do outro, tangíveis
nos membros onde o desejo

lateja ainda,
gestos como medusas esvaindo-se
no sangue em que se fundiram para sempre.

Geraram esta outra placenta
com a urgência de quem sabe
que bebe em cada trago despedida:

lenta colheita da alma
que palidamente assoma
em cada poro,

subtil, alada, como pluma
que sem ser vista
se solta.
Neste abraço que os reteve até à sufocação,
depois que se abateram o céu e o horizonte,
o mundo foi-lhes langor

e memória acesa;
petrificados, mortos,
estão diante do nosso olhar,

na posição aflita em que os une,
mais que o esterno e a pelve,
o duplo receio da imortalidade.

O Drama de Amar

O drama de amar é não haver sucedâneos.
E tudo o resto sabe a merda. Porque houve o teu abraço, porque existe o teu cheiro. Amei-te para sempre mesmo que já não te ame. Ficou em mim a tarde em que pela primeira vez o nosso corpo (o teu arfar a mostrar-me que língua se fala no cėu, a tua boca a mostrar-me o tamanho de um beijo), e a partir daí fiquei órfão de um corpo sempre que não fosse o teu corpo. E quando chegou o dia da despedida eu soube que tinha chegado o dia de para sempre.
O drama de amar é não admitir a morte.
Há uma mulher a mais sempre que amo um corpo que não é o teu. E um homem a menos. Deito-me, aperto, espremo (o encaixe perfeito das tuas costas nos meus braços, o cheiro dos teus lábios no suor do meu pescoço). E até um orgasmo comprova a hipocrisia da carne. Despedi-me de orgasmos quando me despedi de ti. Já me deitei com tantas e é sempre o teu boa-noite que me adormece.
O drama de amar é só criar réplicas.
Tudo o que amo és tu.

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Carta (Esboço)

Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo,

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Adeus

Sim, vou partir.
E não levo saudade
De ninguém
Nem em ti penso agora!
Julgavas que a tristeza desta hora
Fosse maior que a firme vontade
Que eu pus em destruir
O luminoso fio de ternura
Que me prendia ao teu olhar?
Julgaste mal:
Eu sei amar,
Mas meu amor
O que eu não sei
É ser banal!

Mas por que vim eu escrever-te ainda?
Nem eu sei!
Talvez somente
O hábito cortês da despedida
– e o hábito faz lei!

Choro?! Oh, sim , perdidamente!
Mas sabes tu, por que este pranto
Assim amargo e soluçado vem?
É que na hora da partida
Eu nunca pude sem chorar
Dizer adeus a ninguém!

Quando Voltei Encontrei Os Meus Passos

Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a úmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
– Tão rediviva! nos meus olhos baços…

Olhos turvos de lágrimas contidas.
– Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?

Onde fostes sem tino, ao vento vário,
Em redor, como as aves num aviário,
Até que a asita fofa lhes faleça…

Toda essa extensa pista – para quê?
Se há de vir apagar-vos a maré,
Com as do novo rasto que começa…

Presídio

Nem todo o corpo é carne… Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco…?

E o ventre, inconsistente como o lodo?…
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor… Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo…

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono…
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

Agora Mesmo

Está gente a morrer agora mesmo em qualquer lado
Está gente a morrer e nós também

Está gente a despedir-se sem saber que para
Sempre
Este som já passou Este gesto também
Ninguém se banha duas vezes no mesmo instante
Tu próprio te despedes de ti próprio
Não és o mesmo que escreveu o verso atrás
Já estás diferente neste verso e vais com ele

Os amantes agarram-se desesperadamente
Eis como se beijam e mordem e por vezes choram
Mais do que ninguém eles sabem que estão a
[despedir-se

A Terra gira e nós também A Terra morre e nós
Também
Não é possível parar o turbilhão
Há um ciclone invisível em cada instante
Os pássaros voam sobre a própria despedida
As folhas vão-se e nós
Também
Não é vento É movimento fluir do tempo amor e morte
Agora mesmo e para todo o sempre
Amen

I – À Morte Do Príncipe D. Pedro

Pode o artista pintar a imagem morta
Da mulher, por quem dera a própria vida.
À esposa que a ventura vê perdida
Casto e saudoso beijo inda conforta.

A imitar-lhe os exemplos nos exorta
O amigo na extrema despedida…
Mas dizer o que sente a alma partida
Do pai, a quem, oh Deus, tua espada corta.

A flor de seu futuro, o filho amado;
Quem o pode, Senhor, se mesmo o Teu
Só morrendo livrou-nos do pecado,

Se a terra à voz do Gólgota tremeu
E o sangue do Cordeiro Imaculado
Até o próprio céu enegreceu!

Memórias

Você foi a maior das minhas amarguras
E vive até hoje na minha loucura
E foi a mais cruel de todas as vitórias
E faz parte do livro das minhas memórias
Lembrar de que nada de bom,
Você me deu, só machuca alguém
Que não viveu

Vou recomeçar,
Vou tentar viver
Vou tirar você da minha vida
E p’ra não chorar
Antes de partir
Vou tentar sorrir na despedida

Agora que voltei à minha realidade
Tentando me esquecer,
De que tudo foi verdade
Vou rebuscando,
Fundo nas minhas memórias
P’ra riscar você da minha história

Ar

Vivificante ar, pai da existência,
Assopro animador do Autor Divino,
Deste nosso subtil moto contino
Composto, onde um Deus pôs sua ciência!

Tu tens, ó ar, a excelsa preeminência
De ser exalação do bafo Trino,
Tu susténs, sem cair, o home a pino:
Sem ti tem sempre pronta a decadência.

Tu as ardentes febres lhe mitigas
Nesta, do mundo, trabalhosa lida,
Nestas da Terra (sem cessar) fadigas.

Tu és o sustentáculo da vida,
Porém, quando do corpo te desligas,
Lhe dás, com dor, eterna despedida.