Não há maior desventura que a falta de alegria.
Passagens sobre Desventuras
69 resultadosO Apaixonado
Luas, marfins, instrumentos e rosas,
Traços de Dúrer, lampiões austeros,
Nove algarismos e o cambiante zero,
Devo fingir que existem essas coisas.Fingir que no passado aconteceram
Persépolis e Roma e que uma areia
Subtil mediu a sorte dessa ameia
Que os séculos de ferro desfizeram.Devo fingir as armas e a pira
Da epopeia e os pesados mares
Que corroem da terra os vãos pilares.Devo fingir que há outros. É mentira.
SĂł tu existes. Minha desventura,
Minha ventura, inesgotável, pura.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
XXX
Ao coração que sofre, separado
Do teu, no exĂlio em que a chorar me vejo,
NĂŁo basta o afeto simples e sagrado
Com que das desventuras me protejo.NĂŁo me basta saber que sou amado,
Nem sĂł desejo o teu amor: desejo
Ter nos braços teu corpo delicado,
Ter na boca a doçura de teu beijo.E as justas ambições que me consomem
NĂŁo me envergonham: pois maior baixeza
Não há que a terra pelo céu trocar;E mais eleva o coração de um homem
Ser de homem sempre e, na maior pureza,
Ficar na terra e humanamente amar.
Ăšrsula chorava na mesa como se estivesse lendo as cartas que nunca chegaram, nas quais JosĂ© Arcadio relatava as suas façanhas e desventuras. “E tanto lugar aqui, meu filho”, soluçava. “E tanta comida jogada aos porcos!”
Nas desventuras comuns, reconciliam-se os ânimos e travam-se amizades.
É próprio da natureza humana, lamentavelmente, sentir necessidade de culpar os outros dos nossos desastres e das nossas desventuras.
As desventuras que mais atingem
os homens sĂŁo aquelas que sĂŁo escolhidas por eles.
Quem trama desventuras para os outros estende armadilhas a si mesmo.
Errante
Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.Meu coração o mĂstico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura…Meu coração nĂŁo chega lá decerto…
NĂŁo conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memĂłria desse sĂtio incerto…Eu tecerei uns sonhos irreais…
Como essa mĂŁe que viu partir o filho,
Como esse filho que nĂŁo voltou mais!
XLV
A cada instante, Amor, a cada instante
No duvidoso mar de meu cuidado
Sinto de novo um mal, e desmaiado
Entrego aos ventos a esperança errante.Por entre a sombra fúnebre, e distante
Rompe o vulto do alivio mal formado;
Ora mais claramente debuxado,
Ora mais frágil, ora mais constante.Corre o desejo ao vê-lo descoberto;
Logo aos olhos mais longe se afigura,
O que se imaginava muito perto.Faz-se parcial da dita a desventura;
Porque nem permanece o dano certo,
Nem a glória tão pouco está segura
A Morte
Oh! que doce tristeza e que ternura
No olhar ansioso, aflito dos que morrem…
De que âncoras profundas se socorrem
Os que penetram nessa noite escura!Da vida aos frios véus da sepultura
Vagos momentos trĂŞmulos decorrem…
E dos olhos as lágrimas escorrem
Como farĂłis da humana Desventura.Descem entĂŁo aos golfos congelados
Os que na terra vagam suspirando,
Com os velhos corações tantalizados.Tudo negro e sinistro vai rolando
Báratro abaixo, aos ecos soluçados
Do vendaval da Morte ondeando, uivando…
Tu, VĂŁ Filosofia
Tu, vĂŁ Filosofia, embora aviltes
Os crentes nas visões do pensamento,
Turvo clarĂŁo de raciocĂnios tristes
Por entre sombras nos conduz, e a mente,
Rastejando a verdade, a desencanta;
Nem doloroso espĂrito se ilude,
Se o que, dormindo, creu, crĂŞ, despertando.
Até no afortunado a vida é sonho
(Sonho, que lá no fim se verifica),
E ansioso pesadelo em mim, que a choro,
Em mim, que provo o fel da desventura,
Desde que levantei, que abri, carpindo,
Os olhos infantis Ă luz primeira;
Em mim, que fui, que sou de Amor o escravo,
E a vĂtima serei, e o desengano
Da suprema paixĂŁo, por ti cantada
Em versos imortais, como o princĂpio
Etéreo, criador, de que emanaram.
Nas desventuras comuns, reconciliam-se os ânimos e travam-se amizades.
Auto-Retrato
Poeta Ă© certo mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesĂŁo na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.Cozido Ă portuguesa mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento ambas partes
do meu caldo entornado na infância.Nos olhos uma folha de hortelã
que é verde como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.Poeta de combate disparate
palavrĂŁo de machĂŁo no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.
Dor
Há de ser uma estrada de amarguras
a tua vida. E andá-la-ás sozinho,
vendo sempre fugir o que procuras
disse-me um dia um pálido adivinho.“No entanto, sempre hás de cantar venturas
que jamais encontraste… O teu caminho,
dirás que é cheio de alegrias puras,
de horas boas, de beijos, de carinho…”E assim tem sido… Escondo os meus lamentos:
É meu destino suportar sorrindo
as desventuras e os padecimentos.E no mundo hei de andar, neste desgosto,
a mentir ao meu Ăntimo, cobrindo
os sinais destas lágrimas no rosto!
Os melhores momentos do amor sĂŁo aqueles de uma serena e doce melancolia, em que choras sem saber porquĂŞ, e quase aceitas tranquilamente uma desventura que nĂŁo conheces.
LIX
Lembrado estou, Ăł penhas, que algum dia,
Na muda solidĂŁo deste arvoredo,
Comuniquei convosco o meu segredo,
E apenas brando o zéfiro me ouvia.Com lágrimas meu peito enternecia
A dureza fatal deste rochedo,
E sobre ele uma tarde triste, e quĂŞdo
A causa de meu mal eu escrevia.Agora torno a ver, se a pedra dura
Conserva ainda intacta essa memĂłria,
Que debuxou entĂŁo minha escultura.Que vejo! esta Ă© a cifra: triste glĂłria!
Para ser mais cruel a desventura,
Se fará imortal a minha história.
Enlevo
Da doçura da Noite, da doçura
De um tenro coração que vem sorrindo,
Seus segredos recĂ´nditos abrindo
Pela primeira vez, a luz mais pura.Da doçura celeste, da ternura
De um Bem consolador que vai fugindo
Pelos extremos do horizonte infindo,
Deixando-nos somente a Desventura.Da doçura inocente, imaculada
De uma carĂcia virginal da Infância,
Nessa de rosas fresca madrugada.Era assim tua cândida fragrância,
Arcanjo ideal de auréola delicada,
VisĂŁo consoladora da Distância…
Ă“ Trevas, que Enlutais a Natureza
Ă“ trevas, que enlutais a Natureza,
Longos ciprestes desta selva anosa,
Mochos de voz sinistra e lamentosa,
Que dissolveis dos fados a incerteza;Manes, surgidos da morada acesa
Onde de horror sem fim PlutĂŁo se goza,
NĂŁo aterreis esta alma dolorosa,
Que é mais triste que voz minha tristeza.Perdi o galardão da fé mais pura,
Esperanças frustrei do amor mais terno,
A posse de celeste formosura.Volvei, pois, sombras vĂŁs, ao fogo eterno;
E, lamentando a minha desventura,
Movereis Ă piedade o mesmo Inferno.
SolilĂłquio
Já que o sol pouco a pouco se desmaia
E meu mal cada vez mais se desvela,
Enquanto a pena, a ânsia, a mágoa vela,
Quero aqui estar sozinho nesta praia.Que bravo o mar se vĂŞ! Como se ensaia
Na fĂşria e contra os ares se rebela!
Como se enrola! Como se encapela!
Parece quer sair da sua raia.Mas tambĂ©m que inflexĂvel, que constante
Aquela penha está à força dura
De tanto assalto e horror perseverante!Ă“ empolado mar, penha segura,
Sois a imagem mais prĂłpria e semelhante
De meu fado e da minha desventura.