Singularidade(s)
Quem sou eu? A minha singularidade dissolve-se quando a examino e, por fim, fico convencido de que a minha singularidade vem de uma ausência de singularidade. Tenho mesmo em mim algo de mimético que me impele a ser como os outros. Em Itália sinto-me italiano e gostaria que os italianos me sentissem como participante na sua italianidade. Outro dia, ao falar a um auditório da Champanha senti-me champanhizado. Ah sim, gostaria de ser como eles. Adoro ser integrado e, contudo, não sou inteiramente de uns e dos outros. Poderia ser de todo o lado, mas nem por isso me sinto de alguma parte, estou enraizado assim.
Não é o exercício de um talento singular nem a posse de uma admirável verdade que me distinguem. Se me distingo é pelo uso não inibido ou cristalizado de uma máquina cerebral comum e pela minha preocupação permanente em obedecer às regras primeiras desta máquina cognitiva: ligar todo o conhecimento separado, contextualizá-lo, situar todas as verdades parciais no conjunto de que fazem parte.
Passagens sobre Dia
2705 resultadosGrandes Homens Forjam-se a si Próprios
Para conhecer a realidade do mundo, único fim sério da ciência, é preciso entrar no combate da vida como entravam na liça os paladinos bastardos – sem pai e sem padrinho. Os príncipes não constituem excepção a esta lei geral da formação dos homens. Da educação de gabinete, do bafo enervante dos mestres, dos camareiros e das aias, nunca sairam senão doentes e pedantes.
Na sagração dos czares há uma cerimónia de alta significação simbólica: o imperador não se confirma enquanto por três vezes não haja descido do trono e penetrado sozinho na multidão; e isto quer dizer que na convivência do povo a autoridade e o valor dos monarcas recebe uma tão sagrada unção como a da santa crisma. Todos os reis fortes se fizeram e se educaram a si mesmos nos mais rudes e mais hostis contactos da natureza e da sociedade humana.
Veja vossa alteza Carlos Magno, que só aos quarenta anos é que mandou chamar um mestre para aprender a ler. Veja Pedro o Grande, do qual a educação de câmara começou por fazer um poltrão. Aos quinze anos não se atrevia a atravessar um ribeiro. Reagiu enfim sobre si mesmo pela sua única força pessoal.
O Somno de João
O João dorme… (Ó Maria,
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar…)Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria… um morango!
Podia engulil-o um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores…
Mas os astros são menores!O João dorme… Que regalo!
Deixal-o dormir, deixal-o!
Callae-vos, agoas do moinho!
Ó mar! falla mais baixinho…
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar…O João dorme… Innocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo somno profundo!
Não acordes para o mundo,
Póde affogar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é…Ó Mae! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
«Na Vida que a Dor povoa,
Ha só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir…
Tudo vae sem se sentir.»Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho… até morrer!E tu vel-o-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João!
E chegou o dia em que o risco de continuar espremido dentro do botão era mais doloroso que o de desabrochar.
Não te felicites pelo dia de amanhã, pois não sabes o que o hoje vai gerar
Não te felicites pelo dia de amanhã, pois não sabes o que o hoje vai gerar.
A magia do primeiro amor está em ignorarmos que pode acabar um dia.
C
Musas, canoras musas, este canto
Vós me inspirastes, vós meu tenro alento
Erguestes brandamente àquele assento
Que tanto, ó musas, prezo, adoro tanto.Lágrimas tristes são, mágoas, e pranto,
Tudo o que entoa o músico instrumento;
Mas se o favor me dais, ao mundo atento
Em assunto maior farei espanto.Se em campos não pisados algum dia
Entra a ninfa, o pastor, a ovelha, o touro,
Efeitos são da vossa melodia;Que muito, ó musas, pois, que em fausto agouro
Cresçam do pátrio rio à margem fria
A imarcescível hera, o verde louro!
A Minha Ausência de Ti
Foi tal e qual o inverno a minha ausência
de ti, prazer dum ano fugitivo:
dias nocturnos, gelos, inclemência;
que nudez de dezembro o frio vivo.E esse tempo de exílio era o do verão;
era a excessiva gravidez do outono
com a volúpia de maio em cada grão:
um seio viúvo, sem senhor nem dono.Essa posteridade em seu esplendor
uma esperança de órfãos me parecia:
contigo ausente, o verão teu servidoremudeceu as aves todo o dia.
Ou tanto as deprimiu, que a folha arfava
e no temor do inverno desmaiava.Tradução de Carlos de Oliveira
O Homem Certo
Hoje, numa época em que se misturam todos os discursos, em que profetas e charlatães usam as mesmas fórmulas com mínimas diferenças, cujo percurso nenhum homem ocupado tem tempo de seguir, num tempo em que as redacções dos jornais são constantemente incomodadas por gente que acha que é um génio, é muito difícil ajuizar do valor de um homem ou de uma ideia. Temos de nos deixar guiar pelo ouvido para podermos perceber se os rumores, os sussurros e o raspar de pés diante da porta da redacção são suficientemente fortes para poderem ser admitidos como voz da polis. A partir desse momento, porém, o génio passa a outra condição. Deixa de ser matéria fútil da crítica literária ou teatral, cujas contradições os leitores que qualquer jornal deseja ter levam tão pouco a sério como a tagarelice de uma criança, para aceder ao estatuto de factos concretos, com todas as consequências que isso tem.
Certos fanáticos insensatos ignoram a necessidade desesperada de idealismo que se esconde por detrás de tal situação. O mundo dos que escrevem porque têm de escrever está cheio de grandes palavras e conceitos que perderam a substância. Os atributos dos grandes homens e das grandes causas sobrevivem ao que quer que seja que lhes deu origem,
Uma coisa é ser capaz de pintar um quadro especial, ou esculpir uma estátua, produzindo assim objetos de beleza; mas é muito mais glorioso esculpir e pintar a própria atmosfera e a maneira pela qual vemos o mundo. Influir na qualidade do dia – esta é a mais elevada das artes.
Mãe e Filho
Primícias do meu amor!
Meu filhinho do meu seio
Tenro fruto que à luz veio
Como à luz da aurora a flor!Na tua face inocente,
De teu pai a face beijo,
E em teus olhos, filho, vejo
Como Deus é providente;Via em lâmina dourada
O meu rosto todo o dia,
E a minha alma não havia
De a ver nunca retratada?Quando o pai me unia à face
E em seus braços me apertava,
Pomba ou anjo nos faltava
Que ambos juntos abraçasse!Felizmente Deus que o centro
Vê da Terra e vê do abismo,
Que bem sabe no que eu cismo,
Na minha alma um altar viu dentro:Mas com lâmpada sem brilho,
Sem o deus a que era feito…
Bafeja-me um dia o peito,
E eis feito o meu gosto, filho!Como em lágrimas se espalma
Dor íntima e se esvaece
De alma o resto quem pudesse
Vazar todo na tua alma!Mas em ti minha alma habita!
Mas teu riso a vida furta…
Queria viajar mas não tinha dinheiro, fumei um baseado e viajei o dia inteiro.
Infinitude dos Amantes
Se até agora ainda não possuo todo o teu amor,
Querida, nunca o terei de todo.
Não posso soltar mais um suspiro, comover-me,
Nem suplicar a mais outra lágrima que corra;
E todo o meu tesouro, que deveria comprar-te —
Suspiros, lágrimas, juras e cartas — já gastei.
Porém, nada mais me poderá ser devido,
Além do proposto no negócio acordado:
Se então a tua dádiva de amor foi parcial,
Que parte a mim, parte a outros, caberia,
Querida, nunca te possuirei totalmente.Mas, se então me deste tudo,
Tudo seria apenas o tudo que ao tempo tinhas;
E se em teu coração, desde então, existe ou venha
A existir novo amor gerado por outros homens,
Cujos haveres estejam intactos e possam, em lágrimas,
Em suspiros, em juras e cartas, exceder a minha oferta,
Este novo amor pode suscitar novos receios,
Dado que um tal amor não foi jurado por ti.
Mas se foi, sendo as tuas dádivas gerais,
O terreno — o teu coração —, é meu, e o que quer
Que nele cresça, querida, pertence-me totalmente.
Virá o dia em que a matança de um animal será considerada crime tanto quanto o assassinato de um homem.
O Meu Génio Vem de Ti
O que me acalma ou o que me agita, o que me torna alegre ou triste, o que refulge no meio da noite, a meu lado, e me alumia mil vezes melhor do que o candeeiro de trabalho, o que me encanta os dias durante os meus passeios solitários, os meus estudos, os meus devaneios, e até as mais enfadonhas tarefas, é a tua imagem, a lembrança de que existes, de que me amas, de que me esperas, de que pensas em mim! Se tenho algum génio, é de ti que me vem.
Diana Prateada, Esclarecia
Diana prateada, esclarecia
com a luz que do claro Febo ardente,
por ser de natureza transparente,
em si, como em espelho, reluzia.Cem mil milhões de graças lhe influía,
quando me apareceu o excelente
raio de vosso aspecto, diferente
em graça e em amor do que soía.Eu, vendo-me tão cheio de favores,
e tão propínquo a ser de todo vosso,
louvei a hora clara, e a noite escura,Sois nela destes cor a meus amores;
donde colijo claro que não posso
de dia para vós já ter ventura.
A abóbora e o nabo, ao fim de três dias, enganaram o diabo.
LXIX
Se à memória trouxeres algum dia,
Belíssima tirana, ídolo amado,
Os ternos ais, o pranto magoado,
Com que por ti de amor Alfeu gemia;Confunda-te a soberba tirania,
O ódio injusto, o violento desagrado,
Com que atrás de teu olhos arrastado
Teu ingrato rigor o conduzia.E já que enfim tão mísero o fizeste,
Vê-lo-ás, cruel, em prêmio de adorar-te,
Vê-lo-ás, cruel, morrer; que assim quiseste.Dirás, lisonjeando a dor em parte:
Fui-te ingrata, pastor; por mim morreste;
Triste remédio a quem não pode amar-te!
Quando é que eu serei da tua cor, Do teu plácido e azul encanto, Ó claro dia exterior, Ó céu mais útil que o meu pranto?
Os homens nascem iguais, mas no dia seguinte já são diferentes.