Depois, só tinha pensamentos de prisioneiro. Aguardava o passeio diário no pátio ou a visita do advogado. O restante do meu tempo eu coordenava muito bem. Nessa época pensei muitas vezes que se me obrigassem a viver dentro de um tronco seco de árvore, sem outra ocupação além de olhar a flor do céu acima da minha cabeça, eu teria me habituado aos poucos. Teria esperado a passagem dos pássaros ou os encontros entre as nuvens tal como esperava aqui as estranhas gravatas do advogado, e, como num outro mundo, esperava até sábado para estreitar nos meus braços o corpo de Marie. Ora, a verdade, afinal é que eu não estava numa árvore seca. Havia pessoas mais infelizes do que eu. Era, aliás, uma idéia de mamãe, e ela repetia com frequência que acabávamos acostumando-nos a tudo.
Passagens sobre Diário
52 resultadosO Medo
Que não se confunde. Por existir se ganha
e nos pertence. Sílabas ou linguagem,
busca o centro nas mãos, nos olhos, o contacto
incessante. Percorre os muros da memória,na penumbra da palavra se instala. Nada
partilha. Como um monólogo se mascara
de gemas, rumores e gotas de ervas. Flui
e estilhaça as pálpebras, domina as casas,abala os sismos. Ara o corpo, viva árvore
em ascensão, ronda a pele e os jorros do ar.
Até que nos toma e molda o ventre, descobreo preço diário da invisível folhagem
solar. É o que se oculta. Livor, sílaba,
margem eterna da inicial prudência.
Aguentar os Desafios
Todos os desafios que enfrentamos têm o poder de nos derrotar. Mas ainda mais desconcertante do que o próprio embate é o nosso receio de não sermos capazes de o aguentar. Quando sentimos que o nosso chão treme, ficamos em pânico. Esquecemos tudo o que sabemos e deixamo-nos dominar pelo medo. Basta-nos imaginar o que poderia acontecer para nos desequilibrarmos.
Tenho a certeza de que a única forma de aguentarmos o terramoto é adaptarmos a nossa postura. Não conseguiremos evitar os tremores diários. Fazem parte de estar vivo. Mas acredito que essas experiências são dádivas que nos obrigam a dar um passo para a direita ou para a esquerda, em busca do nosso ponto de gravidade. Não os combata. Deixe que o ajudem a ajustar o passo.
O equilíbrio está no presente. Quando sentir a terra a tremer, transporte-se para o agora. Se o fizer, conseguirá lidar com todos os tremores de terra que o momento seguinte lhe possa trazer. Neste momento, você ainda respira. Neste momento, você sobreviveu. Neste momento, você está a descobrir uma forma de passar para o nível seguinte.
Não Tenho Ninguém em Quem Confiar
Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar a mim mesmo, de me apiedar, com lágrimas, sobre o meu próprio eu. Acabo de ter uma espécie de cena com a tia Rita acerca de F. Coelho. No fim dela senti de novo um desses sintomas que cada vez se tornam mais claros e sempre mais horríveis em mim: uma vertigem moral. Na vertigem física há um rodopiar do mundo externo em relação a nós: na vertigem moral, um rodopiar do mundo interior. Parece-me perder, por momentos, o sentido da verdadeira relação das coisas, perder a compreensão, cair num abismo de suspensão mental. É uma pavorosa sensação esta de uma pessoa se sentir abalada por um medo desordenado.
Estes sentimentos vão-se tornando comuns, parecem abrir-me o caminho para uma nova vida mental, que acabará na loucura. Na minha família não há compreensão do meu estado mental — não, nenhuma. Riem-se de mim, escarnecem-me, não me acreditam. Dizem que o que eu pretendo é mostrar-me uma pessoa extraordinária. Nada fazem para analisar o desejo que leva uma pessoa a querer ser extraordinária. Não podem compreender que entre ser-se e desejar-se ser extraordinário não há senão a diferença da consciência que é acrescentada ao facto de se querer ser extraordinário.
Levanto-me todos os dias antes das oito, faço dez minutos de ginástica diários, enquanto oiço as notícias, leio os jornais todos, porque faz parte do meu trabalho. Nunca trabalho à noite, porque à noite as pessoas divagam.
Sem movimento diário e apropriado é impossível manter-se saudável. Todos os processos vitais exigem, para serem executados convenientemente, movimento tanto das partes onde acontecem quanto do todo.
O Amor ao Próximo
Vós outros andais muito solícitos em redor do próximo, e a vossa solicitude exprime-se em belas palavras. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é apenas o vosso mau amor por vós próprios.
É para fugirdes de vós que andais em volta do próximo, e quereríeis converter isso numa virtude; mas pus a claro o vosso «desinteresse».
(…) Não suportais a vossa própria companhia, e não vos amais o suficiente; procurais então seduzir o próximo com o vosso amor e doirar-vos com o seu erro.
Eu quisera que todos os próximos e aqueles que se seguem se vos tornassem intoleráveis: assim teríeis de extrair de vós mesmos o amigo de coração transbordante.
Convocais uma testemunha quando quereis dizer bem de vós; e logo que a haveis induzido a pensar bem da vossa pessoa, vós mesmos pensais bem da vossa pessoa.
É mentiroso não só o que fala contra a sua consciência, mas também o que fala contra a sua inconsciência. Ora é assim que falais de vós no trânsito diário, e que enganais o próximo e a vós mesmos.
Assim fala o louco: ‘O convívio dos homens estraga o carácter, sobretudo quando não tem carácter’.
Vantagens de se Escrever um Diário
Uma vantagem de se ter um diário reside no facto de que se toma consciência, de um modo claro e calmo, das mudanças que se está constantemente a sofrer e que de uma maneira geral a pessoa naturalmente acredita, pressente e aceita, mas que inconscientemente se negam quando se chega ao ponto de obter esperança ou paz por tal aceitação. No diário a pessoa encontra provas de que, em situações que hoje parecem insuportáveis, a pessoa viveu, olhou à volta e anotou coisas, que a mão direita se movia como hoje se move, quando hoje podemos ser mais sábios porque somos capazes de observar a nossa antiga condição, e por essa mesma razão temos de admitir a coragem da nossa luta anterior em que persistimos até por mera ignorância.
Use o Seu Cérebro
Não existe manual de instruções para o cérebro, mas ele precisa de alimento, reparação e da devida manutenção ainda assim. Certos nutrientes são físicos; a atual mania dos alimentos para o cérebro faz as pessoas correrem para vitaminas e enzimas. Mas o devido alimento para o cérebro é tanto mental como físico. O álcool e o tabaco são tóxicos, e sujeitar o cérebro à sua exposição é fazer mau uso dele. A raiva e o medo, o stress e a depressão são igualmente uma forma de má utilização. No momento em que escrevemos este livro, um novo estudo revela que uma rotina de stress diário fecha o córtex pré-frontal, a parte do cérebro responsável pela tomada de decisões, correção de erros e avaliação de situações. É por isso que as pessoas dão em doidas em engarrafamentos. É um stress rotineiro, e contudo a fúria, frustração e impotência que alguns condutores sentem indicam que o córtex pré-frontal deixou de dominar os impulsos primários por cujo controlo é responsável.
Damos constantemente connosco a voltar à mesma questão: use o seu cérebro, não deixe que o seu cérebro o use a si. As fúrias com o trânsito são um exemplo do seu cérebro a usá-lo,
Cacida da Mão Impossível
Não quero mais que uma mão,
mão ferida, se possível.
Não quero mais que uma mão,
inda que passe noites mil sem cama.Seria um lírio pálido de cal,
uma pomba atada ao meu coração,
o guarda que na noite do meu trânsito
de todo vetaria o acesso à lua.Não quero mais que essa mão
para os diários óleos e a mortalha de minha agonia.
Não quero mais que essa mão
para de minha morte ter uma asa.Tudo mais passa.
Rubor sem nome mais, astro perpétuo.
O demais é o outro; vento triste
enquanto as folhas fogem debandadas.Tradução de Oscar Mendes
A Fronteira entre a Juventude e a Velhice
Creio que se pode traçar uma fronteira muito precisa entre a juventude e a velhice. A juventude acaba quando termina o egoísmo, a velhice começa com a vida para os outros. Ou seja: os jovens têm muito prazer e muita dor com as suas vidas, porque eles a vivem só para eles. Por isso todos os desejos e quedas são importantes, todas as alegrias e dores são vividas plenamente, e alguns, quando não vêem os seus desejos cumpridos, desperdiçam toda uma vida. Isso é a juventude. Mas para a maior parte das pessoas vem o tempo em que tudo se modifica, em que vivem mais para os outros, não por virtude, mas porque é assim. A maior parte constitui família. Pensa-se menos em nós próprios e nos nossos desejos quando se tem filhos. Outros perdem o egoísmo num escritório, na política, na arte ou na ciência. A juventude quer brincar, os adultos trabalhar.
Não há quem se case para ter filhos, mas quando chegam, modificamo-nos, e acabamos por perceber que tudo aconteceu por eles. Da mesma forma, a juventude gosta de falar na morte, mas nunca pensa nela; com os velhos acontece o contrário. Os jovens acreditam ser eternos e centram todos os desejos e pensamentos sobre si próprios.
Escrever um Diário
Nunca mais deixo o diário. Aqui é que eu tenho de me firmar, porque só aqui é que o posso fazer. Bem gostaria de explicar o sentimento de felicidade que de vez em quando, como agora, tenho em mim. É de facto qualquer coisa de efervescente que me enche completamente de um tremor leve e agradável e que me convence da existência de capacidades de cuja inexistência nem me posso convencer com toda a certeza em qualquer momento, mesmo agora.