Sentimento do Tempo
Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, trĂŞs ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer porque deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer porque o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais nĂŁo souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde sĂł existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se nĂŁo houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Passagens sobre Disfarce
45 resultadosAntes do Nome
NĂŁo me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero Ă© o esplĂŞndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sĂtios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porĂ©m» e o «que», esta incompreensĂvel
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho Ă© Verbo. Morre quem entender.
A palavra Ă© disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentĂssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
Estar bem disposto Ă© uma mistura de sentido de proporção, sentido de humor, capacidade de disfarce, e vontade de agradar. É raro ver um portuguĂŞs bem disposto. O melhorzinho que se arranja hoje em dia Ă© a nossa versĂŁo anos 90 da sociabilidade, que nĂŁo consiste em estar bem disposto mas em estar «disponĂvel». Como quem diz: «Eu por mim nĂŁo me vou dispor bem, mas se houver aĂ alguĂ©m que se queira aventurar, estou disposta a deixá-lo mexer na minhas peças a ver se acerta e me põe bem…».
Os Parceiros
Sonhar Ă© acordar-se para dentro:
de sĂşbito me vejo em pleno sonho
e no jogo em que todo me concentro
mais uma carta sobre a mesa ponho.Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada!
E quase que escurece a chama triste…
E, a cada parada uma pancada,
o coração, exausto, ainda insiste.Insiste em quê?Ganhar o quê? De quem?
O meu parceiro…eu vejo que ele tem
um riso silencioso a desenhar-senuma velha caveira carcomida.
Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce…
Como também disfarce é a minha vida!
A Ăšnica Realidade Social (1)
A Ăşnica realidade social Ă© um indivĂduo, por isso mesmo que ele Ă© a Ăşnica realidade. O conceito de sociedade Ă© um puro conceito; o de humanidade uma simples ideia. SĂł o indivĂduo vive, sĂł o indivĂduo pensa e sente. SĂł por metáfora ou em linguagem translata se pode aludir ao pensamento ou ao sentimento de uma colectividade. Dizer que Portugal pensa, ou que a humanidade sente Ă© tĂŁo razoável como dizer que Portugal se penteia ou que a humanidade se assoa.
(…) Sendo o indivĂduo a Ăşnica realidade social, Ă© o egoĂsmo a Ăşnica qualidade real, embora, por disfarces vários e artĂficios diversos se construĂssem, no decurso da evolução social (nĂŁo digo do progresso, porque nĂŁo sei – nem ninguĂ©m sabe – se existe progresso) sentimentos altruĂstas, afinamentos dos instintos.
Para que o indivĂduo possa ter uma vida social que lhe seja um elemento de desenvolvimento, ou, em outras palavras, para que a sociedade seja um ambiente favorável ao desenvolvimento do indivĂduo, Ă© forçoso que se faça assentar essa sociedade num conceito egoĂsta.
Assim se formam naturalmente nações. A nação é o segundo elemento social primário. Os homens não se agrupam fraternitariamente senão por oposição. Sempre nos unimos para nos opormos.