A vida é um processo de tornar-se, uma combinação de estados que temos de percorrer. Onde as pessoas falham é que querem eleger um estado e permanecer nele. Este é um tipo de morte.
Passagens sobre Estado
688 resultadosTremo Sempre Diante do Amor
Nadia, deves ter visto a falta de jeito com que no último momento te pedi o número do telefone e este endereço de correio eletrónico para onde te escrevo, e deves ter-te apercebido também da peregrina desculpa: os dois sabemos que podes conseguir de mil outras maneiras diferentes 05 livros que fiquei de te emprestar. Há-os em muitos lados. Toda a gente os tem. Pode até acontecer que já façam parte da tua biblioteca há anos e que neste momento estejas a olhar as suas lombadas da cadeira onde estás sentada enquanto me lês; e também pode acontecer, na realidade não me admiraria nada, que seja eu quem não os tem nem os teve nunca. Durante o jantar não conseguia tirar os olhos de ti, mas isso já tu sabes. Perante isso, apenas posso esperar que o resto dos comensais, especialmente os teus amigos, não se tenham apercebido de até que ponto me eram indiferentes as restantes pessoas e conversas. Como viste, tenho já um longo caminho percorrido. Sou um homem com passado, como se costuma dizer, embora isso não faça com que seja mais fácil para mim escrever uma carta como esta. Porque isto é uma carta, não é verdade?
O homem só reconhece e aprecia aquilo que é ele mesmo em estado de realização.
Liberdade e Eternidade
A liberdade que às vezes sentia não vinha de reflexões nítidas, mas de um estado como feito de percepções por demais orgânicas para serem formuladas em pensamentos. Às vezes no fundo da sensação tremulava uma ideia que lhe dava leve consciência de sua espécie e de sua cor.
O estado para onde deslizava quando murmurava: eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem propriamente um conteúdo e uma forma, mas sem dimensões também. A impressão de que se conseguisse manter-se na sensação por mais uns instantes teria uma revelação — facilmente, como enxergar o resto do mundo apenas inclinando-se da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizadamente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte; a impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e também era eterno um sentimento em pureza absoluta, quase abstracto. Sobretudo dava ideia de eternidade a impossibilidade de saber quantos seres humanos se sucederiam após seu corpo, que um dia estaria distante do presente com a velocidade de um bólido.
Definia eternidade e as explicações nasciam fatais como as pancadas do coração. Delas não mudaria um termo sequer,
Eu não era chefe de Estado antes, mas um homem comum. Não herdei cargo. Não sou rei e não preciso preparar o meu sucessor.
Eu Cantei Já, E Agora Vou Chorando
Eu cantei já, e agora vou chorando
o tempo que cantei tão confiado;
parece que no canto já passado
se estavam minhas lágrimas criando.Cantei; mas se me alguém pergunta: -Quando?
-Não sei; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado
que o passado, por ledo, estou julgando.Fizeram-me cantar, manhosamente,
contentamentos não, mas confianças;
cantava, mas já era ao som dos ferros.De quem me queixarei, que tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças
onde a Fortuna injusta é mais que os erros?
A Alegria Pura só Existe sem a Vaidade
A mais pura alegria é aquela que gozamos no tempo da inocência; estado venturoso, em que nada distinguimos pela razão, mas pelo instinto; e em que nada considera a razão, mas sim a natureza. Então circula veloz o nosso sangue, e os humores que num mundo novo, e resumido, apenas têm tomado os seus primeiros movimentos. Os humores são os que produzem as nossas alegrias; e com efeito não há alegria sem grande movimento; por isso vemos, que a tristeza nos abate, e a alegria nos move; o sossego ainda que indique contentamento, contudo mais é representação da morte que da vida; e a tranquilidade pode dar descanso, porém alegria não a dá sempre.
Mas como pode deixar de ser pura a alegria dos primeiros anos, se ainda então a vaidade não domina em nós? Então só sentimos o bem, e o mal, que resulta da dor, ou do prazer; depois também sentimos o mal, e o bem da opinião, isto é, da vaidade; por isso muitas cousas nos alegram, que tomadas em si mesmas, não têm mais bem, que aquele com que a vaidade as considera; e outras também nos entristecem, que tomadas só por si, não têm outro mal,
O Ódio liga mais os Indivíduos que a Amizade
O ódio, a inveja e o desejo de vingança ligam muitas vezes mais dois indivíduos um ao outro do que o podem fazer o amor e a amizade. Pois está em causa a comunidade de interesses interiores ou exteriores e a alegria que se sente nessa comunidade – onde é muitas vezes determinada a essência das relações positivas entre os indivíduos: o amor e a amizade – é sempre relativa e não é em nenhum caso um estado de alma permanente; mas as relações negativas, essas são, a maior parte das vezes, absolutas e constantes. O ódio, a inveja e o desejo de vingança têm, poder-se-ia dizer, o sono mais ligeiro do que o amor. O menor sopro os desperta, enquanto que o amor e a amizade continuam tranquilamente a dormir, mesmo sob o trovão e os relâmpagos.
Lembranças, que lembrais meu bem passado
Lembranças, que lembrais meu bem passado,
Pera que sinta mais o mal presente,
Deixai-me, se quereis, viver contente,
Não me deixeis morrer em tal estado.Mas se também de tudo está ordenado
Viver, como se vê, tão descontente,
Venha, se vier, o bem por acidente,
E dê a morte fim a meu cuidado.Que muito melhor é perder a vida,
Perdendo-se as lembranças da memória,
Pois fazem tanto dano ao pensamento.Assim que nada perde quem perdida
A esperança traz de sua glória,
Se esta vida há-de ser sempre em tormento.
O Engraxanço e o Culambismo Português
Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele.
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores,os jornalistas engraxavam os ministros, as donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc… Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso.
O estado de espírito de negação precede frequentemente a ocasião de negar. Antes que tenhas falado, se me és antipático, a minha negação está pronta, digas o que disseres – pois é a ti que eu nego.
Ausencia
Lúgubre solidão! Ó noite triste!
Como sinto que falta a tua Imagem
A tudo quanto para mim existe!Tua bemdita e efémera passagem
No mundo, deu ao mundo em que viveste,
Á nossa bôa e maternal Paisagem,Um espirito novo mais celeste;
Nova Forma a abraçou e nova Côr
Beijou, sorrindo, o seu perfil agreste!E ei-la agora tão triste e sem verdor!
Depois da tua morte, regressou
Ao seu velhinho estado anterior.E esta saudosa casa, onde brilhou
Tua voz num instante sempiterno,
Em negra, intima noite se occultou.Quando chego á janela, vejo o inverno;
E, á luz da lua, as sombras do arvoredo
Lembram as sombras pálidas do Inferno.Dos recantos escuros, em segredo,
Nascem Visões saudosas, diluidos
Traços da tua Imagem, arremêdoQue a Sombra faz, em gestos doloridos,
Do teu Vulto de sol a amanhecer…
A Sombra quer mostrar-se aos meus sentidos…Mas eu que vejo? A luz escurecer;
O imperfeito, o indeciso que, em nós, deixa
A amargura de olhar e de não vêr…
O estilo fundamental da minha escrita foi a de começar com os meus assuntos pessoais e, a pouco e pouco vinculá-los com a sociedade, o Estado e o mundo.
É Bem Feliz
É bem feliz por certo, o que somente
Ao rústico lavor acostumado
Conduzir sabe os bois, reger o arado,
E dar à terra a provida semente.A arte de a lavrar sempre inocente
Estuda só, e ignora afortunado
As novas leis, as máximas de Estado,
E os documentos de enganar a gente.Projectos vãos não forma, e sempre isento
Da soberba ambição, nunca a Lisboa
Foi dobrar o joelho ao valimento.Cabana humilde, onde nasceu, povoa;
E seguro no próprio abatimento,
Só tem medo do Céu, quando trovoa.
As Três Realidades Sociais
Há três realidades sociais – o indivíduo, a Nação, a Humanidade. Tudo mais é fictício. São ficções a Família, a Religião, a Classe. É ficção o Estado. É ficção a Civilização.
O indivíduo, a Nação, a Humanidade são realidades porque são perfeitamente definidos. Têm contorno e forma. O indivíduo é a realidade suprema porque tem um contorno material e mental — é um corpo vivo e uma alma viva.
A Nação é também uma realidade, pois a definem o território, ou o idioma, ou a continuidade histórica — um desses elementos, ou todos. O contorno da nação é contudo mais esbatido, mais contingente, quer geograficamente, porque nem sempre as fronteiras são as que deviam ser; quer linguisticamente, porque largas distâncias no espaço separam países de igual idioma e que naturalmente deveriam formar uma só nação; quer historicamente, porque, por uma parte, critérios diferentes do passado nacional quebram, ou tendem para o quebrar, o vasículo nacional, e, por outra, a continuidade histórica opera diferentemente sobre camadas da população, diferentes por índole, costumes ou cultura.
A Humanidade é outra realidade social, tão forte como o indivíduo, mais forte ainda que a Nação, porque mais definida do que ela. O indivíduo é,
Este Amor Que Vos Tenho, Limpo E Puro
Este amor que vos tenho, limpo e puro,
de pensamento vil nunca tocado,
em minha tenra idade começado,
tê-lo dentro nesta alma só procuro.De haver nele mudança estou seguro,
sem temer nenhum caso ou duro Fado,
nem o supremo bem ou baixo estado,
nem o tempo presente nem futuro.A bonina e a flor asinha passa;
tudo por terra o Inverno e Estio
deita, só para meu amor é sempre Maio.Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
e que essa ingratidão tudo me enjeita,
traz este meu amor sempre em desmaio.
A Ilusão da Consistência da Obra do Escritor
O homem não é permanentemente igual a si mesmo. A velha concepção dos carácteres rectilíneos e das mentalidades cristalizadas em sistemas imutáveis abriu falência. Tudo muda, no espaço e no tempo. Para um organismo vivo, existir – mesmo no ponto de vista somático – é transformar-se. Quando começamos cedo e envelhecemos na actividade das letras, não há um nós apenas um escritor; há, ou houve, escritores sucessivos, múltiplos e diversos, representando estados de evolução da mesma mentalidade incessantemente renovada. Ao chegar a altura da vida em que a estabilização se opera, olhamos para trás, e muitas das nossas próprias obras parecem-nos escritas por um estranho, tão longe se encontram já, não apenas dos nossos processos literários, mas do nosso espírito, das nossas tendências, da nossa orientação, dos nossos pontos de vista éticos e estéticos.
Nesse exame retrospectivo, por vezes doloroso, se de algumas coisas temos de louvar-nos – obras a que a nossa mocidade comunicou a chama viva do entusiasmo e da paixão -, de outras somos forçados a reconhecer a pobreza da concepção, os vícios da linguagem, as carências da técnica, e tantas vezes (poenitet me!) as audácias, as incoerências, as injustiças, as demasias, a licença de certas pinturas de costumes e o erro de certas atitudes morais.
O perdão não implica reatar uma relação com alguém, voltar a partilhar o que quer que seja com essa pessoa ou falar de novo com ela. Perdoar significa um estado de paz sempre que nos lembramos dela, falarem dela ou, eventualmente, se trocarmos olhares com ela.
Civilização Construída ao Acaso
A civilização moderna encontra-se em má posição porque não nos convém. Foi construída sem conhecimento da nossa verdadeira natureza. Deve-se ao capricho das descobertas científicas, do apetite dos homens, das suas ilusões, das suas teorias e dos seus desejos. Apesar de ter sido edificada por nós, não foi feita à nossa medida.
Na verdade, é evidente que a ciência não seguiu nenhum plano. Desenvolveu-se ao acaso, com o nascimento de alguns homens de génio, a forma do seu espírito e o caminho que tomou a sua curiosidade. Não se inspirou de modo nenhum no desejo de melhorar o estado dos seres humanos. As descobertas produziram-se ao sabor da intuição dos cientistas e das circunstâncias mais ou menos fortuitas das suas carreiras.
Se Galileu, Newton ou Lavoisier tivessem aplicado os poderes do seu espírito ao estudo do corpo e da consciência, talvez o nosso mundo fosse diferente do que é hoje. Os cientistas ignoram para onde vão. São guiados pelo acaso, por raciocínios subtis, por uma espécie de clarividência. Cada um deles é um mundo à parte, governado pelas suas próprias leis. De tempos a tempos, certas coisas, obscuras para os outros, tornam-se claras para eles. Em geral, as descobertas são feitas sem nenhuma revisão das consequências.
Nenhum Amor é Menos Ridículo que Outro
Temos, pois, que ao amor corresponde o amável, e que este é inexplicável. Concebe-se a coisa, mas dela não se pode dar razão; assim também é que de maneira incompreensível o amor se apodera da sua presa. Se, de tempos a tempos, os homens caíssem por terra e morressem subitamente, ou entrassem em convulsões violentas mas inexplicáveis, quem é que não sofreria a angústia? No entanto, é assim que o amor intervém na vida, com a diferença de que ninguém receia por isso, visto que os amantes encaram tal acontecimento como se esperassem a suprema felicidade. Ninguém receia por isso, toda a gente ri afinal, porque o trágico e o cómico estão em perpétua correspondência. Conversais hoje com um homem; parece-vos que ele se encontra em estado normal; mas amanhã ouvi-lo-eis falar uma linguagem metafórica, vê-lo-eis exprimir-se com gestos muito singulares: é sabido, está apaixonado. Se o amor tivesse por expressão equivalente «amar qualquer pessoa, a primeira que se encontra», compreender-se-ia a impossibilidade de apresentar melhor definição; mas já que a fórmula é muito diferente, «amar uma só pessoa, a única no mundo», parece que tal acto de diferenciação deve provir de motivos profundos.
Sim, deve necessariamente implicar uma dialética de razões,