Em Louvor das Crianças
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que,
Passagens de Eugénio de Andrade
99 resultadosCreio que foi o sorriso, o sorriso foi quem abriu a porta. Era um sorriso com muita luz lá dentro, apetecia entrar nele, tirar a roupa, ficar nu dentro daquele sorriso.
Foi para ti que criei as rosas. Foi para ti que lhes dei perfume. Para ti rasguei ribeiros e dei ás romãs a cor do lume.
Ser poeta também é isso, essa inabilidade para o mundo do lucro e da usura.
Só através do corpo nos poderemos erguer à divindade de que formos capazes, até deixarmos de ser, na frágil e precária luz da terra, o mais estrangeiro dos seus habitantes.
A poesia é o inferno; às vezes também é o paraíso.
Procura a maravilha. Onde um beijo sabe a barcos e bruma. No brilho redondo e jovem dos joelhos. Na noite inclinada de melancolia. Procura. Procura a maravilha.
A música que me sai dos dedos ama o silêncio, e a suprema ambição do poeta é integrá-lo no canto.
A Visita do Príncipe
Não sei nunca o que me trazem as palavras, elas gostam tanto de me surpreender. Hoje ao levantar da névoa trouxeram-me a casa sobre o rio, o terraço escassamente iluminado por um lampeão que balançava ao vento, o pequeno sapo que todas as noites, rente ao muro, se ia aproximando, depositário de tudo o que nesse tempo em mim se confundia com a ternura. Pequeno príncipe da vadiagem, por ali se quedava sem outro ofício que não fosse o de receber alguma carícia, só depois regressando por entre a humidade das pedras aos pântanos da sombra, a noite inteira nos olhos desmedidos.
O sucesso de uma obra não é sinal da sua qualidade.
É na nossa poesia que se encontra isso que os políticos tão afanosamente buscam: a nossa identidade.
A poesia não faz falta a ninguém: nem a mim escrevê-la nem aos outros lê-la.
Frente a frente
Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
– e é tão pouco!
Surdo, Subterrâneo Rio
Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
– surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
Procuro-te
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
É possível que a poesia seja ficção, mas eu prefiro pensá-la como Goethe: inseparável da verdade.
Que relação pode existir entre a poesia e o poder? Com o poder nenhuma, mas com o anti-poder pode existir alguma.
Sê paciente; espera que a palavra amadureça e se desprenda como um fruto ao passar o vento que a mereça.
O mal é a ausência do homem no homem.
As palavras que te envio são interditas
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.