Algumas Horas Outras
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algumas horas outras invadiram as sedas, os perfumes
ácidos da louça, não serão recordadas, ou quanto mais
as recordarmos, mais a ignorância deitará
os corpos no tapume de vidros, para que em torno
se conciliem as vontades singulares, as
particularidades de um impetuoso alarme.
ou seja: deixarão as esplanadas baças, os garfos
encolhidos, para que um amplo destino os atravesse.
considerem, por exemplo, o paquete que ao meio-dia
igere as minuciosas palmeiras sobre a
alta insensatez dos aquedutos. ou ainda
a ilusão dos alicates ao lado da água, e o seu reflexo
do outro lado das vidraças: azul, não é?
assim estas algumas outras horas: como esquecĂŞ-las?2
e ainda o sossego das interrogações não se deixa
facilmente esborratar, ou a qualidade
das tintas, assim no meio do lençol,
o impediu até agora. algumas
sĂŁo as horas do vasto almofadĂŁo translĂşcido
onde as janelas germinaram, e sĂŁo
as solenes sardinheiras ardidas
na boca do inĂcio. soçobrando a mĂşsica
produzimos os locais inamovĂveis, as persianas
corridas sobre o papel meticuloso das suas
amenas enseadas.
Passagens sobre Ferida
158 resultadosSĂł
Este, que um deus cruel arremessou Ă vida,
Marcando-o com o sinal da sua maldição,
– Este desabrochou como a erva má, nascida
Apenas para aos pĂ©s ser calcada no chĂŁo.De motejo em motejo arrasta a alma ferida…
Sem constância no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos maus, filhos da solidĂŁo.Longos dias sem sol! noites de eterno luto!
Alma cega, perdida Ă toa no caminho!
Roto casco de nau, desprezado no mar!E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto;
E, homem, há de morrer como viveu: sozinho!
Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!
O coração é uma ferida aberta.
Da Minha Janela
Mar alto! Ondas quebradas e vencidas
Num soluçar aflito, murmurado…
VĂ´o de gaivotas, leve, imaculado,
Como neves nos pĂncaros nascidas!Sol! Ave a tombar, asas já feridas,
Batendo ainda num arfar pausado…
Ă“ meu doce poente torturado
Rezo-te em mim, chorando, mãos erguidas!Meu verso de Samain cheio de graça,
Inda não és clarão já és luar
Como um branco lilás que se desfaça!Amor! Teu coração trago-o no peito…
Pulsa dentro de mim como este mar
Num beijo eterno, assim, nunca desfeito!…
A Adversidade Ă© Essencial
PorquĂŞ espantar-nos que possa ser vantajoso, por vezes mesmo desejável, expor-nos ao fogo, Ă s feridas, Ă morte, Ă prisĂŁo? Para o homem esbanjador a austeridade Ă© um castigo, para o preguiçoso o trabalho equivale a um suplĂcio; ao efeminado toda a labuta causa dĂł, para o indolente qualquer esforço Ă© uma tortura: pela mesma ordem de ideias toda a actividade de que nos sentimos incapazes se nos afigura dura e intolerável, esquecendo-nos de que para muitos Ă© uma autĂŞntica tortura passar sem vinho ou acordar de madrugada! Qualquer destas situações nĂŁo Ă© difĂcil por natureza, os homens Ă© que sĂŁo moles e efeminados!
Para formar juĂzos de valor sobre as grandes questões há que ter uma grande alma, pois de outro modo atribuiremos Ă s coisas um defeito que Ă© apenas nosso, tal como objectos perfeitamente direitos nos parecem tortos e partidos ao meio quando os vemos metidos dentro de água. O que interessa nĂŁo Ă© o que vemos, mas o modo como o vemos; e no geral o espĂrito humano mostra-se cego para a verdade!
Indica-me um jovem ainda incorrupto e de espĂrito alerta, e ele nĂŁo hesitará em julgar mais afortunado o homem capaz de suportar todo o peso da adversidade sem dobrar os ombros,
O Homem Pensador e a Mulher Faladora
O homem pensador Ă© necessariamente taciturno. A mulher faladora nĂŁo consegue atordoar-lhe o espĂrito, mas faz-lhe nos ouvidos a traquinada intolerável de uma matraca. A matraca afuguenta do coração todas as quimeras do amor. NĂŁo vos caseis com homem pensador, mulheres que falais um momento antes de pensar o que direis. O amor —se vo-lo pode inspirar tal homem—fará que nĂŁo fecheis olhos velando-lhe a doença; fará que lhe sacrifiqueis os haveres, a reputação e a vida; fará tudo que humanamente pode fazer um anjo de sacrifĂcio, mas nĂŁo vos fará calar. O feudo mais pesado que uma tal mulher pĂ´de impĂ´r a um homem Ă© — a obrigação de ouvi-la.
A ofensa que tal mulher nunca perdoa Ă© — a insolĂŞncia de ouvi-la, sem escutá-la. Vejam num dicionário a diferença das duas palavras. Escutar Ă© querer ouvir. Uma bela mulher, capaz de extremos, tentou a franqueza do amante que, em vĂ©speras de matrimonio, lhe disse: «nĂŁo faltes tanto.» A noiva pesou estas palavras, reflectiu, calculou as suas forças, chorou, atormentou-se, e disse: «nĂŁo me casarei: Ă© impossĂvel calar-me.» Para que me nĂŁo tomem isto como anedota, Ă© preciso dizer-lhes que esta mulher foi acerbamente ferida no seu orgulho.
Todos os navios se afundam com fogo nos porões e há fogos que crepitam nas arrecadações de cada casa. A mais branca carne do ser que se ama é a que o vidro partido irá cortar e a que a roda irá esmagar. Os longos uivos na noite são uivos de morte. A noite é o assessor dos carrascos. O dia é a luz das descobertas estridentes. Se um cão ladra é porque o homem que ama feridas profundas salta pela janela. O riso precede a histeria. Eu espero a grande queda com a espuma na boca.
A Louca
A Dias Paredes
Quando ela passa: – a veste desgrenhada,
O cabelo revolto em desalinho,
No seu olhar feroz eu adivinho
O mistério da dor que a traz penada.Moça, tão moça e já desventurada;
Da desdita ferida pelo espinho,
Vai morta em vida assim pelo caminho,
No sudário de mágoa sepultada.Eu sei a sua histĂłria. – Em seu passado
Houve um drama d’amor misterioso
– O segredo d’um peito torturado –E hoje, para guardar a mágoa oculta,
Canta, soluça – coração saudoso,
Chora, gargalha, a desgraçada estulta.
O Construtor
O construtor, antes de levantar a primeira pedra do dia, contempla e considera as suas feridas que enfraquecem a vontade de construir, com a sua prĂłpria substância de cinzas e sangue petrificado, a habitação em que a fĂ©nix poderá renascer com todo o esplendor original de um astro. Nada mais lhe resta do que lançar-se a um trabalho para o qual a disposição ainda nĂŁo surgiu, mas que poderá despertar os impulsos da construção solar e abrir o horizonte luminoso e tranquilo de um rio em torno da morada. A construção está envolta numa espessa bruma e nĂŁo há nela sinais de figuras ou formas, porque essa nĂ©voa Ă© o prĂłprio nada da confusĂŁo inicial e do fim de toda a construção como possibilidade de vida e de renovo. É do obscuro fundo da retina que surge um tĂ©nue raio cintilante que penetra na massa nebulosa da construção e a faz palpitar e estremecer. O construtor poderá entĂŁo discernir algumas linhas de força, algumas estruturas e bases numa crescente e sincopada clarificação. Haverá um momento em que ele sentirá que o edifĂcio dança porque tudo se duplica e se reflecte e se anima. De algum modo, Ă© já a fĂ©nix que resplandece no fulgor da edificação e na plenitude do ser e do olhar na sua mĂştua criação.
Faz falta aqui uma trova
Duma criança oprimida;
Ela que fale da fome,
Ela que fale da vidaEla que fale da pomba
Que tem a asa ferida;
Ela que fale da nuvem
Que encobre a terra poluĂda.
Amor Ă Vista
Entras como um punhal
até à minha vida.
Rasgas de estrelas e de sal
a carne da ferida.Instala-te nas minas.
Dinamita e devora.
Porque quem assassinas
é um monstro de lágrimas que adora.Dá-me um beijo ou a morte.
Anda. Avança.
Deixa lá a esperança
para quem a suporte.Mas o mar e os montes…
isso, sim.
NĂŁo te amedrontes.
Atira-os sobre mim.Atira-os de espada.
Porque ficas vencida
ou desta minha vida
nĂŁo fica nada.Mar e montes teus beijos, meu amor,
sobre os meus férreos dentes.
Mar e montes esperados com terror
de que te ausentes.Mar e montes teus beijos, meu amor!…
A Vaidade Deforma a Alegria e a Tristeza
As virtudes humanas muitas vezes se compõem de melancolia, e de um retiro agreste. As mais das vezes é humor o que julgamos razão; é temperamento o que chamamos desengano; e é enfermidade o que nos parece virtude. Tudo são efeitos da tristeza; esta obriga-nos a seguir os partidos mais violentos, e mais duros; raras vezes nos faz reflectir sobre o passado, quási sempre nos ocupa em considerar futuros; por isso nos infunde temor, e cobardia, na incerteza de acontecimentos felizes, ou infaustos; e verdadeiramente a alegria nos governa em forma, que seguimos como por força os movimentos dela; e do mesmo modo os da tristeza.
Um ânimo alegre disfarça mal o riso, um coração triste encobre mal o seu desgosto: como há-de chorar quem está contente? E como há-de rir quem está triste? Se alguma vez se chora donde só se deve rir, ou se ri por aquilo por que se deve chorar, a alma então penetrada de dor, ou de prazer, desmente aquele exterior fingido, e falso. Só a vaidade sabe transformar o gosto em dor, e esta em prazer, a alegria em tristeza, e esta em contentamento; por isso as feridas não se sentem, antes lisonjeiam,
Cultura
É um fenĂłmeno eterno: a ávida vontade vai sempre encontrar um meio de fixar as suas criaturas na vida atravĂ©s de uma ilusĂŁo espalhada sobre as coisas, forçando-as a continuar a viver. Este vĂŞ-se amarrado pelo prazer socrático do conhecimento e pela ilusĂŁo de poder, atravĂ©s do mesmo, curar a eterna ferida da existĂŞncia; aquele vĂŞ-se envolvido pedo vĂ©u sedutor da arte ondeando diante dos seus olhos; aquele, por seu turno, pela consolação metafĂsica de que sob o remoinho dos fenĂłmenos continua a fluir, impreturbável, a vida eterna: para nĂŁo falar das ilusões mais comuns, e talvez mais vigorosas, que a vontade tem preparadas em qualquer instante.
Aqueles trĂŞs nĂveis de ilusĂŁo destinam-se apenas Ă s naturezas mais nobremente apetrechadas, nas quais a carga e o peso da existĂŞncia sĂŁo em geral sentidos com um desagrado mais profundo e que podem ser ilusoriamente desviadas desse desagrado atravĂ©s de estimulantes seleccionados. É nestes estimulantes que consiste tudo o que chamamos cultura.
As Queixas dos Pais
É desagradável ouvir o meu pai falar, sempre cheio de insinuações, da boa sorte das pessoas de hoje e especialmente dos filhos dele, dos sofrimentos por que teve de passar quando era novo. NinguĂ©m nega que, durante anos, por nĂŁo ter roupa de Inverno capaz, ele teve feridas nas pernas, que andou muitas vezes com fome, que quando sĂł tinha ainda dez anos empurrava uma carroça pelas aldeias, atĂ© de Inverno e de manhĂŁ muito cedo — mas, e isto Ă© uma coisa que ele nĂŁo compreende, estes factos, juntamente com o de eu nĂŁo ter tido de passar por tudo isto, nĂŁo levam a concluir que eu sou mais feliz do que ele, que ele se pode orgulhar das feridas que teve nas pernas, que Ă© uma coisa de que se arroga e que afirma desde o princĂpio, que eu nĂŁo posso avaliar os seus sofrimentos e que, finalmente, sĂł porque nĂŁo passei pelos mesmos sofrimentos, tenho de lhe estar eternamente grato. O prazer que eu nĂŁo teria de o ouvir falar da sua juventude e dos pais, mas ouvir tudo isto naquele tom de orgulho e agressividade Ă© um tormento. Está constantemente a erguer as mĂŁos: «Quem Ă© capaz de compreender isto hoje!
O Amor Ă© fogo que arde sem se ver, em ferida que doe e nĂŁo se sente…
Vencido está de amor
Vencido está de amor Meu pensamento
O mais que pode ser Vencida a vida,
Sujeita a vos servir e InstituĂda,
Oferecendo tudo A vosso intento.Contente deste bem, Louva o momento
Outra vez renovar TĂŁo bem perdida;
A causa que me guia A tal ferida,
Ou hora em que se viu Seu perdimento.Mil vezes desejando Está segura
Com essa pretensĂŁo Nesta empresa,
TĂŁo estranha, tĂŁo doce, Honrosa e altaVoltando sĂł por vĂłs Outra ventura,
Jurando nĂŁo seguir Rara firmeza,
Sem ser no vosso amor Achado em falta.
Esquece-se muito mais cedo uma ferida do que um insulto.
A Vida Ă© LĂquida
É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mĂłrula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de vĂbora.
Como-a no livro da lĂngua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha pĂşmblea, me casaco rosso
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, gĂłticas, altas de corpo e copos.
A vida Ă© crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tĂŁo generosa e mĂtica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida Ă© liquĂda.TambĂ©m sĂŁo cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos Ă mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraĂso. O sinistro das horas
Vai se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Auto-Retrato
O’Neill (Alexandre), moreno portuguĂŞs,
cabelo asa de corvo; da angĂşstia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e nĂŁo cicatrizada.Se a visagem de tal sujeito Ă© o que vĂŞs
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada…)No amor? No amor crĂŞ (ou nĂŁo fosse ele O’Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras milque são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse…
Julieta
A loura Julieta enamorada,
Triste, lânguida, pálida, abatida,
Aparece radiante na sacada
Dos raios brancos do luar ferida.Engolfa o olhar na sombra condensada,
Perscruta, busca em torno… e na avenida
Surge Romeu; da valerosa espada
Esplende a clara lâmina polida…Sente-se o arfar de sĂ´fregos desejos,
Estoura no ar um turbilhĂŁo de beijos,
Mas o dia reponta!… Ă“ indiscretaDa cotovia matinal garganta!
Ă“ perigo do amor, que o amor quebranta!
Ă“ noites de Verona! Ă“ Julieta!