A Incapacidade de Amar Alguém
Para falar com franqueza, não considero grave a incapacidade de amar alguém. O que significa amar? Na sua maioria, as pessoas coabitam sem necessidade de um sentimento que desconhecem até ao momento em que o leem num romance ou o veem num filme. O facto de, à partida, não sabermos o que é, indica talvez que se trata de algo que não existe dentro de nós, que nos é inculcado, ou que importamos. Se não estou em erro, era um velho filósofo francês que dizia que, quando um homem exprime o muito que ama a senhora marquesa, o muito que aprecia a sua inteligência — como é harmoniosa nos seus movimentos, que ideias tão extraordinárias tem, que sensibilidade tão requintada exibe —, aquilo que realmente quer dizer é que está doido por foder com ela. Julgo que há aí alguma verdade. Confundimos empatia ou compaixão com desejo, julgamos querer acarinhar, proteger, quando na verdade queremos penetrar, violar.
Passagens sobre Filósofos
213 resultadosSer Sensível
Não se é obrigado a fazer do homem um filósofo, em lugar de fazer dele um homem; os seus deveres para com outrem não lhe são ditados unicamente pelas tardias lições da sabedoria; e, enquanto não resistir ao impulso interior da comiseração, jamais fará mal a outro homem, nem mesmo a nenhum ser sensível, excepto no caso legítimo em que, achando-se a conservação interessada, é obrigado a dar preferência a si mesmo. Por esse meio, terminam também as antigas disputas sobre a participação dos animais na lei natural; porque é claro que, desprovidos de luz e de liberdade, não podem reconhecer essa lei; mas, unidos de algum modo à nossa natureza pela sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que devem também participar do direito natural e que o homem está obrigado, para com eles a certa espécie de deveres. Parece, com efeito, que, se sou obrigado a não fazer nenhum mal ao meu semelhante, é menos porque ele é um ser racional do que porque é um ser sensível, qualidade que, sendo comum ao animal e ao homem, deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro.
A Mentira é mais Interessante que a Verdade
«O que é a verdade»? Perguntava Pilatos gracejando, talvez que não esperasse pela resposta. Há quem se delicie com a inconstância, e considere servidão o fixar-se numa crença; há quem se afeiçoe ao livre-arbítrio tanto no pensar como no agir. E se bem que as seitas de filósofos desta espécie hajam desaparecido, sobrevivem alguns representantes da mesma família, apesar de nas veias não lhes correr tanto sangue como nas dos antigos. Não é somente a dificuldade e a canseira que o homem experimenta ao perseguir a verdade, nem sequer o facto de, uma vez encontrada, se impor aos pensamentos humanos, o que leva a conceder às mentiras os maiores favores; é sim, um natural mas corrompido amor da própria mentira. Uma das últimas escolas dos Gregos examinou esta questão, mas deteve-se a pensar no que leva o homem a armar as mentiras, quando não o faz por prazer, como os poetas, ou por utilidade, como os mercadores, mas pelo próprio mentir.
Não sei como dizê-lo, mas a verdade é uma luz nua e crua que não mostra as máscaras, as cegadas e os cortejos do mundo com metade da altivez e da graciosidade com que aparecem iluminados pelos candelabros.
Os costumes dos filósofos não estão de harmonia com os preceitos; mas se não vivem como ensinam, ensinam como se deve viver.
O filósofo observa e medita. É um espelho que pensa.
Em todo o caso, casai-vos. Se vos couber em sorte uma boa esposa, sereis felizes; se vos calhar uma má, tornar-vos-eis filósofos, o que é excelente para os homens.
Assuntos Mortais e Assuntos Imortais
Com um pouco mais de deliberação na escolha dos seus objectivos, possivelmente todos os homens se tornariam em essência estudiosos e observadores, porque a natureza e o destino de cada um interessam sem dúvida de igual maneira a todos. Ao acumular bens para nós ou para os nossos descendentes, ao fundar uma família ou um estado, ou ainda ao alcançar a fama, somos mortais; mas ao lidarmos com a verdade somos imortais e não precisamos de temer mudanças ou acidentes.
O mais antigo filósofo egípcio ou hindu levantou uma ponta do véu que cobria a estátua da divindade; essa trémula túnica ainda permanece levantada, e eu contemplo uma glória tão fresca como a que contemplou o filósofo, já que era eu nele quem se mostrou tão audacioso naquela época, e é ele em mim quem agora volta a observar a visão. Nenhuma poeira se depositou sobre essa túnica; tempo nenhum decorreu desde que tal divindade se viu revelada. O tempo que aproveitamos realmente, ou que é aproveitável, não é passado, nem presente, nem futuro.
A Causa da Vontade
A nossa vida não passaria de uma série de caprichos, se a nossa vontade se determinasse por si mesma e sem motivos. Não temos vontade que não seja produzida por alguma reflexão ou por alguma paixão. Quando levanto a mão, é para fazer uma experiência com a minha liberdade ou por alguma outra razão. Quando me propõem um jogo de escolha entre par ou ímpar, durante o tempo em que as ideias de um e de outro se sucedem no meu espírito com rapidez, mescladas de esperança e temor, se escolho par, é porque a necessidade de fazer uma escolha se apresenta ao meu pensamento no momento em que par está aí presente. Proponha-se o exemplo que se quiser, demonstrarei a qualquer homem de boa-fé que não temos nenhuma vontade que não seja precedida por algum sentimento ou por algum arrazoado que a faz nascer. É verdade que a vontade tem também o poder de excitar as nossas ideias; mas é necessário que ela própria seja antes determinada por alguma causa.
A vontade não é nunca o primeiro princípio das nossas acções, ela é o seu último móbil; é o ponteiro que marca as horas num relógio e que o leva a dar as pancadas sonoras.
O Excesso de Conhecimento sem Discernimento
Herdamos conhecimentos e invenções de todos os séculos; ficamos portanto mais ricos em bens do espírito: isso não nos pode ser contestado sem injustiça. Mas estaríamos nós próprios enganados se confundíssemos essa riqueza herdada e de empréstimo com o génio que a dá. Quantos desses conhecimentos adquiridos são estéreis para nós! Estranhos no nosso espírito onde não tiveram origem, acontece muitas vezes que eles confundem o nosso juízo muito mais do que o esclarecem. Arcamos sob o peso de tantas ideias, como aqueles estados que sucumbem por excesso de conquistas e em que a opulência introduz novos vícios e desordens mais terríveis; porque pouca gente é capaz de fazer bom uso do espírito alheio.
(…) O efeito das opiniões multiplicadas além das forças do espírito é produzir contradições e abalar a certeza dos melhores princípios. Os objectos apresentados sob um número excessivo de faces não se podem organizar, nem desenvolver, nem pintar distintamente na imaginação dos homens. Incapazes de conciliar todas as suas ideias, tomam os diversos lados de uma mesma coisa como contradições da sua natureza. Vários não querem comparar a opinião dos filósofos. Não examinam se na oposição dos seus princípios, alguém fez pender a balança para o seu lado;
Dificuldade de Prever o Comportamento de qualquer Pessoa, o Nosso Inclusivamente
Sendo variável o nosso “eu”, que é dependente das circunstâncias, um homem jamais deve supor que conhece outro. Pode somente afirmar que, não variando as circunstâncias, o procedimento do indivíduo observado não mudará. O chefe de escritório que já redige há vinte anos relatórios honestos, continuará sem dúvida a redigi-los com a mesma honestidade, mas cumpre não o afirmar em demasia. Se surgirem novas circunstâncias, se uma paixão forte lhe invadir a mente, se um perigo lhe ameaçar o lar, o insignificante burocrata poderá tornar-se um celerado ou um herói.
As grandes oscilações da personalidade observam-se quase exclusivamente na esfera dos sentimentos. Na da inteligência, elas são muito fracas. Um imbecil permanecerá sempre imbecil.
As possíveis variações da personalidade, que impedem de conhecermos a fundo os nossos semelhantes, também obstam a que cada qual se conheça a si próprio. O adágio “Nosce te ipsum” dos antigos filósofos constitui um conselho irrealizável. O “eu” exteriorizado representa habitualmente uma personalidade de empréstimo, mentirosa. Assim é, não só porque atribuímos a nós mesmos muitas qualidades e não reconhecemos absolutamente os nossos defeitos, como também porque o nosso “eu” contém uma pequena porção de elementos conscientes, conhecíveis em rigor, e, em grande parte,
O Âmago da Virtude
Haverá filósofos que pretendem induzir-nos a dar grande valor à prudência, a praticarmos a virtude da coragem, a nos aplicarmos à justiça — se for possível — com maior empenho ainda do que às restantes virtudes. Pois bem: de nada servirão estes conselhos se nós ignorarmos o que é a virtude, se ela é una ou múltipla, se as virtudes são individualizadas ou interdependentes, se quem possui uma virtude possui também as restantes ou não, qual a diferença que existe entre elas. Um operário não precisa de investigar qual a origem ou a utilidade do seu trabalho, tal como o bailarino o não tem que fazer quanto à arte da dança: os conhecimentos relativos a todas estas artes estão circunscritos a elas mesmas, porquanto elas não têm incidência sobre a totalidade da vida. A virtude, porém, implica tanto o conhecimento dela própria como o de tudo o mais; para aprendermos a virtude temos de começar por aprender o que ela é. Uma acção não pode ser correcta se não for correcta a vontade, pois é desta que provém a acção. Também a vontade nunca será correcta se não for correcto o carácter, porquanto é deste que provém a vontade. Finalmente,
Quem está ao sol e fecha os olhos, Começa a não saber o que é sol. (…) Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos De todos os filósofos e de todos o poetas.
Prejudicar a Estupidez
A reprovação do egoísmo, que se pregou com tamanha convicção casmurra, prejudicou certamente, no conjunto, esse sentimento (em benefício, hei-de repeti-lo milhares e milhares de vezes, dos instintos gregários do homem), e prejudicou-o, nomeadamente no facto de o ter despojado da sua boa consciência e de lhe ter ordenado a procurar em si próprio a verdadeira fonte de todos os males. «O teu egoísmo é a maldição da tua vida», eis o que se pregou durante milénios: esta crença, como eu ia dizendo, fez mal ao egoísmo; tirou-lhe muito espírito, serenidade, engenhosidade e beleza; bestializou-o, tornou-o feio, envenenado.
Os filósofos antigos indicavam, ao contrário, uma fonte completamente diferente para o mar; os pensadores não cessaram de pregar desde Sócrates: «É a vossa irreflexão, são a vossa estupidez, o vosso hábito de vegetar obedecendo à regra e de vos subordinar ao juízo do próximo, que vos impedem tão amiudadamente de serdes felizes; somos nós, pensadores, que o somos mais, porque pensamos». Não nos perguntemos aqui se este sermão contra a estupidez tem mais fundamentos do que o sermão contra o egoísmo; o que é certo é que despojou a estupidez da sua boa consciência: estes filósofos foram prejudiciais à estupidez!
O Mistério das Cousas
O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os
homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
A Glória Mais Genuína
A glória mais genuína, a póstera, nunca é ouvida por quem é seu objecto e, no entanto, ele é tido por feliz. Assim, a sua felicidade consistiu propriamente nas grandes qualidades que lhe conferiram a sua glória e no facto de que encontrou oportunidade para desenvolvê-las; logo, foi-lhe permitido agir como era adequado, ou praticar aquilo que praticava com prazer e amor. Pois só as obras assim nascidas alcançam glória póstera. A sua felicidade consistiu, pois, no grande coração, ou também na riqueza de um espírito cuja estampa, nas suas obras, recebe a admiração dos séculos vindouros. Tal felicidade consistiu nos seus próprios pensamentos, cuja meditação será a ocupação e o gozo dos espíritos mais nobres de um imenso futuro. O valor da glória póstera reside, portanto, em merecê-la, e isso é a sua recompensa verdadeira.
Se chegou a haver obras que adquiriram glória na posteridade e que também a obtiveram entre os seus contemprâneos, tratam-se de circunstâncias fortuitas, sem grande importância. Pois, como os homens, via de regra, são privados de juízo próprio e, sobretudo, não têm capacidade alguma para apreciar as realizações elevadas e difíceis, acabam sempre por seguir nesse domínio a autoridade alheia, e a glória de género superior,
Não houve até hoje grande poeta que não fosse, ao mesmo tempo, profundo filósofo.
Se sou um cruel satirista pelo menos eu não sou um hipócrita: Eu nunca julgo o que outras pessoas fazem. Nem um político, nem um padre, eu nunca censuro o que os outros fazem. Nem um filósofo, um psiquiatra, eu nunca incomodo tentando analisar e resolver meus medos e neuroses.
A Clareza do Filósofo
Sempre acreditei que a claridade é a gentileza do filósofo e, além disso, esta nossa disciplina tem como ponto de honra, hoje mais do que nunca, estar aberta e porosa a todas as mentes, diferente das ciências especiais, que cada vez mais com maior rigor, interpõem entre o tesouro das suas descobertas e a curiosidade dos profanos o dragão medonho da sua terminologia hermética. Penso que o filósofo tem que levar até ao limite de si próprio o rigor metódico quando investiga e persegue as suas verdades, mas que ao emiti-las e enunciá-las deve evitar o uso cínico com que alguns homens de ciência se comprazem, como Hércules de feira, em ostentar diante do público os biceps do seu tecnicismo.
Os filósofos se limitaram a interromper o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo.
No seu ponto mais alto, a filosofia é uma criação perfeitamente similar à criação artística ou religiosa ou amorosa; quem não tem nervos de artista, força de imaginação e quem não tem ao seu dispor uma vida rica pode ser professor de Filosofia, mas duvido que chegue alguma vez aos planos em que vale realmente a pena ser filósofo.