Passagens sobre Fogo

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Paixões são como fogo: útil de inúmeras maneiras e perigoso de uma só forma- o excesso.

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Esta inconstancia de mim próprio em vibração
É que me ha de transpôr às zonas intermédias,
E seguirei entre cristais de inquietação,
A retinir, a ondular… Soltas as rédeas,
Meus sonhos, leões de fogo e pasmo domados a tirar
A tôrre d’ouro que era o carro da minh’Alma,
Transviarão pelo deserto, muribundos de Luar –
E eu só me lembrarei num baloiçar de palma…
Nos oásis, depois, hão de se abismar gumes,
A atmosfera ha de ser outra, noutros planos:
As rãs hão de coaxar-me em roucos tons humanos
Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes…

*       *       *

Há sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos…
A cada passo a minha alma é outra cruz,
E o meu coração gira: é uma roda de côres…
Não sei aonde vou, nem vejo o que persigo…
Já não é o meu rastro o rastro d’oiro que ainda sigo…
Resvalo em pontes de gelatina e de bolôres…
Hoje, a luz para mim é sempre meia-luz…

. . . . . . . . . . .

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Ó Meus Irmãos Contrários

Ó meus irmãos contrários que guardais nas vossas
[pupilas
A noite infusa e o seu horror
Onde vos deixei eu
Com vossas pesadas mãos no azeite preguiçoso
Dos vossos actos antigos
Com tão pouca esperança que’a morte tem razão
Ó meus irmãos perdidos
Eu vou para a vida tenho aparência de homem
Para provar que o mundo é feito à minha medida

E não estou só
Mil imagens de mim multiplicam a luz
Mil olhares semelhantes igualam a carne
É a ave é a criança é a rocha é a planície
Que se misturam a nós
O ouro desata a rir ao ver-se fora do abismo
A água o fogo despem-se por uma única estação
Já não há eclipse na fronte do universo.

Tradução de António Ramos Rosa

O Homem é o Animal Menos Preparado

A capacidade do homem para o pensamento abstracto, que parece faltar à maioria dos outros mamíferos, conferiu-lhe sem dúvida o seu actual domínio sobre a superfície da Terra – um domínio disputado apenas por centenas de milhares de tipos de insectos e organismos microscópicos. Este pensamento abstracto é o responsável pela sua sensação de superioridade e pelo que, sob esta sensação, corresponde a uma certa medida de realidade, pelo menos dentro de estreitos limites. Mas o que é frequentemente subestimado é o facto de que a capacidade de desempenhar um acto não é, de forma alguma, sinónima de seu exercício salubre. É fácil observar que a maior parte do pensamento do homem é estúpida, sem sentido e injuriosa para ele. Na realidade, de todos os animais, ele parece o menos preparado para tirar conclusões apropriadas nas questões que afectam mais desesperadamente o seu bem-estar.
Tente imaginar um rato, no universo das ideias dos ratos, chegando a noções tão ocas de plausibilidade como, por exemplo, o Swedenborgianismo, a homeopatia ou a telepatia mental. O instinto natural do homem, de facto, nunca se dirige para o que é sólido e verdadeiro; prefere tudo que é especioso e falso. Se uma grande nação moderna se confrontar com dois problemas antagónicos – um deles baseado em argumentos prováveis e racionais,

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Quando Se Vir Com Água O Fogo Arder

Quando se vir com água o fogo arder,
e misturar co dia a noite escura,
e a terra se vir naquela altura
em que se vem os Céus prevalecer;

o Amor por razão mandado ser,
e a todos ser igual nossa ventura,
com tal mudança, vossa formosura
então a poderei deixar de ver.

Porém não sendo vista esta mudança
no mundo (como claro está não ver-se),
não se espere de mim deixar de ver-vos.

Que basta estar em vós minha esperança,
o ganho de minha alma, e o perder-se,
para não deixar nunca de querer-vos.

Soneto I

De Amor escrevo, de Amor falo e canto;
E se minha voz fosse igual ao que amo,
Esperara eu sentir na que em vão chamo
Piedade, e na gente dor e espanto.

Mas não há pena, ou língua, ou voz, ou canto
Que mostre o amor por que eu tudo desamo,
Nem o vivo fogo em que me sempre inflamo,
Nem de meus olhos o contino pranto.

Assi me vou morrendo, sem ser crida
A causa por que em vão mouro contente,
Nem sei se isto que passo é vida ou morte.

Mas inda da que eu amo fosse ouvida
E crida minha voz, e da vã gente
Nunca entendida fosse minha sorte!

Amor De Mentiras

“Amor… De Mentiras…”
I
Eram beijos de fogo, eram de lavas,
e sabiam a sonhos e ambrosias.
Como pensar que a boca com que os dava
era a mesma afinal com que mentias?

Se eras as mais humilde das escravas
em dádivas, anseios, alegrias,
– como prever que o amor que me juravas
seria mais uma das tuas heresias ?

Como supor ser tudo um falso jogo?
E crer que se extinguisse aquele fogo
que acendia em teus olhos duas piras?

E descobrir, – no instante em que me amavas, –
que em tua boca ansiosa misturavas
ao mesmo tempo beijos e mentiras ?

O segredo é demorar o sofrimento, cozinhá-lo em lentíssimo fogo, até que ele se espalhe, diluto, no infinito do tempo.

A Vida Oblíqua

Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes só via através de cortes retos e paralelos. Não percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida é outra. Que viver não é só desenrolar sentimentos grossos — é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição.

A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta.
E conheço também um modo de vida que é suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contínua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excêntrica. Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café num terraço dentro da friagem e aconchegada na lã.
Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante,

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Antes do fogo vêm o vapor da fornalha e a fumaça: assim, antes do sangue, vêm as ofensas

Antes do fogo vêm o vapor da fornalha e a fumaça: assim, antes do sangue, vêm as ofensas.

Regras Básicas de Avaliação do Amante

Para avaliar o amor da vossa amante, lembrai-vos:
1º – De que, quanto mais prazer físico entrou na base do vosso amor, no que noutros tempos determinou a intimidade, tanto mais ele está sujeito à infidelidade. Isto aplica-se sobretudo aos amores cuja cristalização foi favorecida pelo fogo da juventude, aos dezasseis anos.
2º – De que o amor de duas pessoas que amam não é quase nunca o mesmo. O amor-paixão tem as suas fases durante as quais, e sucessivamente, um dos dois ama mais que o outro. Muitas vezes a simples galanteria ou o amor de vaidade responde ao amor-paixão, e é sobretudo a mulher que ama com exaltação. Qualquer que seja o amor sentido por um dos dois amantes, a partir do momento em que sente cíumes, exige do outro que preencha as condições do amor-paixão; a vaidade simula nele todas as necessidades de um coração terno.
Finalmente, nada aborrece tanto o amor-gosto como a existência do amor-paixão no outro ou outra.
Muitas vezes um homem de espírito, ao fazer a corte a uma mulher, não consegue senão fazê-la pensar no amor e enternecer-lhe a alma. Ela recebe bem este homem que lhe dá um tal prazer.

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No Mundo não Tem Boa Sorte Senão quem Tem por Boa a que Tem

Uma cousa sabei de mim: que queria antes o bem do mal, que o mal do bem; porque muito mais se sente o porvir, que o passado; e a morte, até matar, mata. Não sei se sereis marca de voar tão alto; porque, para tomar a palha a esta matéria, são necessárias asas de nebri. Mas vós sois homem de prol, e desculpa-me a conta em que vos tenho. E a que de mim vos sei dar, é que:

Esperança me despede,
tristeza não me falece,
e tudo o mais m’aborrece.
Já que mais não mereceu
minha estrela,
só a tristeza conheço,
pois que para mim nasceu
e eu para ela.

No mundo não tem boa sorte senão quem tem por boa a que tem. E daqui me vem contentar-me, de triste. Mas olhai de que maneira:

Vivo assi ao revés,
tomando por certa vida
certa morte,
com que folgo, em que me pês,
pois minha sorte é servida
de tal sorte.

Uma cousa sabei: que o mal, ainda que às vezes o vejais louvar, não há quem o louve com a boca que o não taxe com o coração:

Ajudai-me a sofrer
vida tão sem sofrimento,

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A Quem Darei Todos os Dias da Minha Vida?

A quem darei todos os dias da minha vida? A voz que levo
em mim impressa como o rumor dos jardins, os rebanhos
descem pelas encostas, a neve abandona as giestas,
uma banda de província comemora o entardecer. Tu e eu dançaremos
como antigamente o Verão nos chamava, pelas romarias,
e passaremos as noites em viagem. Reinventei o mundo agora,
tu o fizeste assim, uma única vez se diz o nome que nos fez
voar sobre as searas. A quem darei a minha vida?
Aquilo que deixámos um no outro marcado como um fogo,
o sobressalto, as novas palavras. O tempo demora, e volve, devagar,
sobre si mesmo, nos pátios mais antigos. Do primeiro ao último dia,
a quem darei todos os dias da minha vida?

Vou Voltar para Mim Mesma

Minha vida é um grande desastre. É um desencontro cruel, é uma casa vazia. Mas tem um cachorro dentro latindo. E eu — só me resta latir para Deus. Vou voltar para mim mesma. É lá que eu encontro uma menina morta sem pecúlio. Mas uma noite vou à Secção de Cadastro e ponho fogo em tudo e nas identidades das pessoas sem pecúlio. E só então fico tão autónoma que só pararei de escrever depois de morrer. Mas é inútil, o lago azul da eternidade não pega fogo. Eu é que me incineraria até meus ossos. Virarei número e pó. Que assim seja. Amén. Mas protesto. Protesto à toa como um cão na eternidade da Seção de Cadastro.

Seguia Aquele Fogo, Que O Guiava

Seguia aquele fogo, que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento;
as forças lhe faltavam já e o alento,
Amor lhas refazia e renovava.

Despois que viu que a alma lhe faltava,
não esmorece; mas, no pensamento,
(que a língua já não pode) seu intento
ao mar que lho cumprisse, encomendava.

Ó mar (dezia o moço só consigo),
já te não peço a vida; só queria
que a de Hero me salves; não me veja…

Este meu corpo morto, lá o desvia
daquela torre. Sê me nisto amigo,
pois no meu maior bem me houveste enveja!

XXVIII

Pinta-me a curva destes céus … Agora,
Erecta, ao fundo, a cordilheira apruma:
Pinta as nuvens de fogo de uma em uma,
E alto, entre as nuvens, o raiar da aurora.

Solta, ondulando, os véus de espessa bruma,
E o vale pinta, e, pelo vale em fora,
A correnteza túrbida e sonora
Do Paraíba, em torvelins de espuma.

Pinta; mas vê de que maneira pintas …
Antes busques as cores da tristeza,
Poupando o escrínio das alegres tintas:

– Tristeza sir-gular, estranha mágoa
De que vejo coberta a natureza,
Porque a vejo com os olhos rasos d’água …

Carta a Manoel

Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paysagem triste, triste,
A cuja influencia a minha alma não reziste,
Queres noticias? Queres que os meus nervos fallem?
Vá! dize aos choupos do Mondego que se callem…
E pede ao vento que não uive e gema tanto:
Que, emfim, se soffre abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! Peor que as sabbatinas
Dos ursos na aula, peor que beatas correrias
De velhas magras, galopando Ave-Marias,
Peor que um diamante a riscar na vidraça!
Peor eu sei lá, Manoel, peor que uma desgraça!
Hysterisa-me o vento, absorve-me a alma toda,
Tal a menina pelas vesperas da boda,
Atarefada mail-a ama, a arrumar…
O vento afoga o meu espirito n’um mar
Verde, azul, branco, negro, cujos vagalhões
São todos feitos de luar, recordações.
Á noite, quando estou, aqui, na minha toca,
O grande evocador do vento evoca, evoca
Nosso verão magnifico, este anno passado,
(E a um canto bate,

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