Viver pela Evidência
Creio que já falei disto. Mas de que é que diabo se não falou já? Se não falámos nós, falaram os outros, que também são gente. E no entanto, de cada vez se fala pela primeira vez, porque o que importa não é o que se sabe mas o que se vê. E ver é ver sempre de outra maneira para aquele que vê. Quantas vezes se falou da morte e da vida e do amor e de mil outras coisas sisudas? Mas volta-se sempre à mesma, porque o saber pela evidência é saber pela primeira vez; e uma dor que nos dói ou uma alegria que nos alegra não doeu nem alegrou senão a nós. De modo que de novo me intriga a extraordinária desproporção entre o complexo de uma vida e a coisa chilra que dela resulta.
Mesmo os grandes homens, que são maiores do que nós, que é que nos deixaram em testamento? Um livro, uma ideia, uma fórmula. E os que nada nos deixaram? Mas uma vida é fantástica pelo que nela aconteceu. Há assim um desperdício extraordinário, uma pura perda do que se amealhou. Relações, sentimentos, projectos, acções correntes que foram desencadear mil efeitos maus ou úteis. E tudo se perdeu. Ninguém vem tomar conta do que numa vida aconteceu. Podemos pensar que os efeitos permanecem ou se justapõem na vida que ficou. Mas isso mesmo que houvesse seria uma realidade anónima e mergulhada finalmente no silêncio, como a de um vento que passou. A Natureza é assim perdulária e só de facto o sabemos quando nos fixamos no centro de nós e damos o balanço da infinidade de realidades que em nós se efectivaram. Viver é assim desenvolver-se numa vida o vazio ignorado do universo que existe e se transforma e se aniquila na inutilidade do ser. Viver é estabelecer o confronto entre um máximo e um mínimo, entre o ser e o não-ser. E no resultado do confronto o que aparece é o falado absurdo. Mas o absurdo é ainda um nome e o resultado efectivo não tem nome. Porque nada há para nomear.