Civilização e Religião Condicionam-se Uma à Outra
Quando a civilização formulou o mandamento de que o homem não deve matar o próximo a quem odeia, que se acha no seu caminho ou cuja propriedade cobiça, isso foi claramente efetuado no interesse comunal do homem, que, de outro modo, não seria praticável, pois o assassino atrairia para si a vingança dos parentes do morto e a inveja de outros, que, dentro de si mesmos, se sentem tão inclinados quanto ele a tais actos de violência. Assim, não desfrutaria da sua vingança ou do seu roubo por muito tempo, mas teria toda a possibilidade de ele próprio em breve ser morto. Mesmo que se protegesse contra os seus inimigos isolados através de uma força ou cautela extraordinárias, estaria fadado a sucumbir a uma combinação de homens mais fracos. Se uma combinação desse tipo não se efectuasse, o homicídio continuaria a ser praticado de modo infindável e o resultado final seria que os homens se exterminariam mutuamente. Chegaríamos, entre os indivíduos, ao mesmo estado de coisas que ainda persiste entre famílias na Córsega, embora, em outros lugares, apenas entre nações. A insegurança da vida, que constitui um perigo igual para todos, une hoje os homens numa sociedade que proíbe ao indivíduo matar, e reserva para si o direito à morte comunal de quem quer que viole a proibição. Aqui, então, temos justiça e castigo.
Mas não damos publicidade a essa explicação racional da proibição do homicídio. Asseveramos que a proibição foi emitida por Deus. Assim, assumimos a responsabilidade de adivinhar as Suas intenções e descobrimos que Ele também não gosta que os homens se exterminem uns aos outros. Comportando-nos dessa maneira, revestimos a proibição cultural de uma solenidade muito especial, mas, ao mesmo tempo, arriscamos-nos a tornar sua observância dependente da crença em Deus.Se voltarmos atrás, ou seja, se não mais atribuirmos a Deus o que é a nossa própria vontade, e nos contentarmos em fornecer a razão social, então, é verdade, teremos renunciado à transfiguração da proibição cultural, mas também teremos evitado o seu risco. Contudo, ganhamos algo mais. Através de certo tipo de difusão ou infecção, o carácter de santidade e inviolabilidade – de pertencer a outro mundo, poder-se-ia dizer – espalhou-se de certas poucas proibições de vulto para todas as outras regulamentações, leis e ordenações culturais. Nestas, entretanto, a auréola com freqüência não parece cair bem; não apenas se invalidam umas às outras por fornecerem decisões contrárias em épocas e lugares diferentes como também, à parte isso, apresentam todos os sinais de inadequação humana. É fácil identificar nelas coisas que só podem ser produto de uma compreensão míope, de uma expressão de interesses egoisticamente restritos, ou de uma conclusão baseada em premissas insuficientes. A crítica que não podemos deixar de lhes dirigir também diminui a um grau muito pouco favorável o nosso respeito por outras exigências culturais mais justificáveis. Visto ser tarefa difícil isolar aquilo que o próprio Deus exigiu, daquilo que pode ter a sua origem remontada à autoridade de um parlamento Todo-Poderoso ou de um alto judiciário, constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário, para servir os seus interesses, e adoptariam uma atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à sua abolição, visariam unicamente a sua melhoria. Isso constituiria um importante avanço no caminho que leva à reconciliação com o fardo da civilização.