Poupar a Vontade
Em comparação com o comum dos homens, poucas coisas me atingem, ou, dizendo melhor, me prendem; pois é razoável que elas atinjam, contanto que não nos possuam. Tenho grande zelo em aumentar pelo estudo e pela reflexão esse privilégio de insensibilidade, que em mim é naturalmente muito saliente. Desposo – e consequentemente me apaixono por – poucas coisas. A minha visão é clara, mas detenho-a em poucos objectos; a sensibilidade, delicada e maleável. Mas a apreensão e aplicação, tenho-a dura e surda: dificilmente me envolvo. Tanto quanto posso, emprego-me todo em mim; porém mesmo nesse objecto eu refrearia e suspenderia de bom grado a minha afeição para que ela não se entregasse por inteiro, pois é um objecto que possuo por mercê de outrém e sobre o qual a fortuna tem mais direito do que eu. De maneira que até a saúde, que tanto estimo, ser-me-ia preciso não a desejar e não me dedicar a ela tão desenfreadamente a ponto de achar insuportáveis as doenças. Devemos moderar-nos entre o ódio e o amor à voluptuosidade; e Platão receita um caminho mediano de vida entre ambos.
Mas às paixões que me distraem de mim e me prendem alhures, a essas certamente me oponho com todas as minhas forças. A minha opinião é que devemos emprestar-nos a outrém e só nos darmos a nós mesmos. Se a minha vontade se mostrasse fácil de se hipotecar e se empenhar, eu não sobreviveria a ela: sou frágil demais, tanto por natureza como por hábito, Avesso às ocupações e nascido para a segurança do ócio (Ovídio). As discussões combativas e encarniçadas que no final dessem vitória ao meu adversário, o desenlace que tornasse vergonhoso o meu ardente assédio talvez me corroessem muito cruelmente. Se eu cravasse os dentes a fundo, como fazem os outros, a minha alma nunca teria força para suportar os sobressaltos e emoções que acompanham os que abarcam tanto; seria incontinenti desconjuntada por essa agitação intestina. Se por vezes me impeliram ao manejo de assuntos alheios, prometi tomá-los nas mãos, não no pulmão nem no fígado; encarregar-me deles, não incorporá-los; interessar-me por eles, sim, apaixonar-me, de forma alguma; atento a eles mas não os fico a chocar. Já tenho trabalho suficiente dispondo e organizando a multidão doméstica que trago nas minhas entranhas e nas minhas veias sem nelas alojar uma multidão estrangeira que me oprima; e sou suficientemente afectado pelos meus assuntos essenciais, pessoais e naturais sem convidar outros, forasteiros. Os que sabem o quanto devem a si e quantas obrigações têm para consigo mesmos descobrem que a natureza lhes deu essa missão suficientemente cabal e nada ociosa. Tens largamente o que fazer em tua casa: não te afastes.