Coerção e Autocoerção
Os casos e acontecimentos que nos dizem respeito aparecem e entrecruzam-se isoladamente, sem ordem nem relação uns com os outros, no mais vivo contraste e sem nada em comum, a não ser justamente o facto de se relacionarem connosco. Dessa maneira, para corresponder a esses casos e acontecimentos, os nossos pensamentos e cuidados têm igualmente de estar desligados uns dos outros. Como consequência, quando empreendemos algo, temos de nos abstrair de tudo o resto, para então tratar cada coisa a seu tempo, fruí-la e senti-la, sem demais preocupações. Precisamos ter, por assim dizer, compartimentos para os nossos pensamentos e abrir apenas um deles, enquanto os outros permanecem fechados. Desse modo, conseguimos impedir que uma preocupação muito grave roube cada pequeno prazer do presente, despojando-nos de toda a tranquilidade.
Conseguimos ainda fazer com que uma ponderação não reprima a outra, que a preocupação com um caso importante não produza a negligência de muitos de menor relevância, e assim por diante. Mas sobretudo o homem capaz de considerações elevadas e nobres nunca pode deixar o seu espírito ser totalmente possuído e absorvido por casos pessoais e preocupações triviais, a ponto de impedir o acesso às altas considerações, pois isso, de facto, faria valer a sentença «para viver, perder as causas da vida» (Juvenal).Decerto, para conseguirmos realizar realizar essas manobras e contramanobras espirituais, bem como muitas outras coisas, precisamos de impor uma coerção a nós mesmos. Para isso, entretanto, devemos fortalecer-nos com a ponderação de que todo o homem tem de sofrer coerções numerosas e grandes, vindas do mundo exterior, das quais nenhuma vida se exime. Contudo, uma pequena autocoerção, aplicada no lugar correcto, previne muitas coerções vindas do exterior, assim como um pequeno recorte no círculo próximo ao centro corresponde a um outro cem vezes maior na periferia. Nada nos subtrai mais à coerção vinda do exterior que a autocoerção. É o que diz a sentença de Séneca: Se queres submeter tudo a ti mesmo, submete-te primeiro à razão.
Além disso, temos sempre essa autocoerção em nosso poder e podemos relaxá-la um pouco em casos extermos ou quando atingir o nosso ponto mais sensível; já a coerção que vem de fora, ao contrário, não tem consideração nem indulgência e é insensível. Assim, é sábio prevenir esta por meio daquela.