Posse II
Ele —
Seduzir o cotidiano pelo corpo.
Penetrá-lo deste brilho longo,
compacto,
onde o cansaço não é tédio
mas úmido intervalo.A paisagem não sustenta
mais os olhos; estrelas
despojaram-se dos monólogos,
a flor voltou a si, não mais
dizer exausto, a primavera guardou
sua intimidade no discurso
das árvores, e o amor,
esgarçado de imagens,
procurou outro equilíbrio
além da frase, de um silêncio
a outro.Nem sempre a paz levou-nos
a suas tácitas paragens:
a liberdade aspirou um ser estranho,
em que de novo nos olhássemos.No corpo prosseguimos
onde o amor parava.
E inventamos. Sem palavras
tornamos nossa a carne da manhã,
a exaurir o tempo, sem fidelidade
alguma, no dia imprevisível,
além do nosso invento.
Passagens sobre Frase
210 resultadosEu creio que, para ser escritor, basta ter algo para dizer em frases próprias ou alheias.
Arte e Sensibilidade
1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade.
2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível.
3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual (prim. versão: tirem da sensação o que não pode ser sensível aos outros e ao mesmo tempo, para compensar, reforçam o que lhes pode ser sensível); b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela “inspiração” a um processo inteiramente objectivo — construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.
5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente,
A Certeza do Nosso Amor
A certeza do nosso amor era calma. Ao escrever, algo de nós se tocava. Ao escrever, sentia-a passar por mim, sentia-a atravessar-me. Depois, fechava os olhos e via-a sorrir. Ainda dentro de mim, mas um pouco do seu rosto de anjo e da lonjura do seu olhar e dos seus gestos brandos a existir na página, no texto. Às vezes, levantava-me, segurava as folhas a tremerem-me na mão e lia devagar. Após cada frase, parava e ouvia-a lida na memória. Ela era o texto. Cada palavra a dizia, cada palavra era o nome dos seus gestos e de tudo o que em si era belo. Ela era o sentido das palavras. Ela não era nem material, nem imaterial. Ela era o sentido das palavras. Nem sequer terra, nem sequer céu, estrelas, noite. Existia para lá do que podemos tocar ou entender. Ela era aquilo que existia, porque era sentida por mim. Existia dentro de mim e existia no texto para quem o lesse. Existia porque existia, porque existia para ser sentida. As noites passavam e conhecíamo-nos. Por ela estar dentro de mim e dentro do texto escrito pela minha mão, cheguei a pensar que era parte de mim. Enganei-me. Ela era maior do que eu.
Frases! Frases! Como se o conforto de todos, diante de um facto que não se explica, diante de um mal que nos consome, não fosse encontrar uma palavra que não diz nada e na qual nos tranquilizamos!
Não se Reconquista o Amor com Argumentos
Não te esqueças de que a tua frase é um acto. Se desejas levar-me a agir, não pegues em argumentos. Julgas que me deixarei determinar por argumentos? Não me seria difícil opor, aos teus, melhores argumentos.
Já viste a mulher repudiada reconquistar-te através de um processo em que ela prova que tem razão? O processo irrita. Ela nem sequer será capaz de te recuperar mostrando-te tal como tu a amavas, porque essa já tu a não amas. Olha aquela infeliz que, nas vésperas do divórcio, teve a ideia de cantar a mesma canção triste que cantava quando noiva. Essa canção triste ainda tornou o homem mais furioso.
Talvez ela o recuperasse se o conseguisse despertar tal como ele era quando a amava. Mas para isso precisaria de um génio criador, porque teria de carregar o homem de qualquer coisa, da mesma maneira que eu o carrego de uma inclinação para o mar que fará dele construtor de navios. Só assim cresceria essa árvore que depois se iria diversificando. E ele havia de pedir de novo a canção triste.
Para fundar o amor por mim, faço nascer em ti alguém que é para mim. Não te confessarei o meu sofrimento,
Frases felizes… Frases encantadas… Ó festa dos ouvidos! Sempre há tolices muito bem ornadas… Como há pacóvios bem vestidos.
Carpe diem
Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? “Não”, dizes, “nada me obrigará
à renúncia de mim próprio – nem esse olhar
que me oforece o leito profundo da sua imagem!”
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.
Antes da frase do De Gaulle, todo brasileiro sério já sabia disso.
Os homens assemelham-se a relógios a que se dá corda e trabalham sem saber a razão. E sempre que um homem vem a este mundo, o relógio da vida humana recebe corda novamente, para repetir, mais uma vez, o velho e gasto refrão da eterna caixa de música, frase por frase, com variações imperceptíveis.
Poema do Silêncio
Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
– Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo…O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.
Ele é tão discreto nas suas opiniões que esta frase representa uma espécie de audácia
Quanto é Alto e Régio o Pensamento
Ponho na altiva mente o fixo esforço
Da altura, e à sorte deixo,
E as suas leis, o verso;Que, quanto é alto e régio o pensamento,
Súbita a frase o busca
E o ‘scravo ritmo o serve.
Moral para Psicólogos
Não cultivar uma psicologia de bisbilhoteiro! Nunca observar só por observar! Isso provoca uma óptica falsa, uma perspectiva vesga, algo que resulta forçado e que exagera as coisas. O ter experiências, quando é um querer-ter-experiências, — não resulta bem. Na experiência não é lícito olhar para si mesmo, todo o olhar se converte então num «mau-olhado». Um psicólogo nato guarda-se, por instinto, de ver por ver; o mesmo se pode dizer do pintor nato. Este não trabalha jamais «segundo a natureza», encomenda ao seu instinto, à sua câmara escura o crivar e exprimir o «caso», a «natureza», o «vivido»… Até à sua consciência chega só o universal, a conclusão, o resultado: não conhece esse arbitrário abstrair do caso individual. — Que é que resulta quando se procede de outro modo? Quando se cultiva, por exemplo, uma psicologia de bisbilhoteiro, à maneira dos romanciers parisienses, grandes e pequenos? Essa gente anda, por assim dizê-lo, à espreita da realidade, essa gente leva para casa cada noite um punhado de curiosidades… Porém veja-se o que acaba por sair daí — um montão de borrões, um mosaico no melhor dos casos, e de qualquer forma algo que é o resultado da soma de várias coisas,
Cada frase do adulador é composta de um sujeito, um predicado e um cumprimento.
A Moral Pura é Impossível
A nossa moral é a cristalização de um movimento interior completamente diferente dela! Nada do que dizemos faz sentido. Pensa numa frase qualquer, ocorre-me, por exemplo, esta: «Numa prisão deve imperar o arrependimento!» É uma frase que se pode pronunciar com a melhor das consciências, mas ninguém a toma à letra, senão estávamos a pedir o fogo do inferno para os encarcerados! Como é que a entendemos então? Há com certeza muito poucos que saibam o que é o arrependimento, mas todos dizem onde ele deve imperar. Ou então pensa em algo de exaltante: como é que isso se mistura com a moral? Quando é que estivemos com o rosto tão mergulhado no pó que isso nos faça sentir a bem-aventurança do arrebatamento? Ou então toma à letra uma expressão como «ser assaltado por um pensamento»: no momento em que sentisses no corpo um tal contacto já estarias no limiar da loucura! Cada palavra quer então ser lida na sua literalidade para não degenerar em mentira, mas não podemos tomar nenhuma à letra, sob pena de o mundo se transformar num manicómio! Há uma qualquer grande embriaguez que se eleva daí sob a forma de uma obscura recordação, e de vez em quando imaginamos que todas as nossas experiências são partes soltas e destruídas de uma antiga totalidade que um dia se foi completando de maneira errada.
A Gravidade e a Seriedade nem Sempre andam Juntas
Tomar a verdade a sério! De quantas maneiras diferentes não entendem os homens esta frase! São as mesmas opiniões, as mesmas formas de exame e de demonstração que um pensador considera com uma ligeireza quando as aplica por si próprio – sucumbiu-lhes para sua vergonha, neste ou naquele momento da sua vida -, são essas mesmas opiniões, esses mesmos métodos que podem dar a um artista, quando com eles se choca e com eles vive algum tempo, a consciência de ter sido dominado pela profunda gravidade da verdade, de ter mostrado – coisa espantosa -, ainda que artista, a mais séria necessidade do contrário da aparência.
É assim que acontece que uma pomposa gravidade revele precisamente a ausência de seriedade com que um espírito que se contenta com pouco se tenha debatido até então no domínio do conhecimento… Não somos nós sempre traídos por aquilo que consideramos importante? A nossa gravidade mostra onde se encontram os nossos pesos e os casos em que temos falta deles.
A originalidade não está nas palavras ou nas frases. A originalidade é a soma total do pensamento de um homem na sua escrita.
Os Caminhos Insondáveis do Progresso da Humanidade
O progresso não é necessário por uma necessidade metafísica: pode-se dizer apenas que muito provavelmente a experiência acabará por eliminar as falsas soluções e por se livrar dos impasses. Mas a que preço, por quantos meandros? Não se pode nem mesmo excluir, em princípio, que a humanidade, como uma frase que não se consegue concluir, fracasse no meio do caminho.
Decerto o conjunto dos seres conhecidos pelo nome de homens e definidos pelas características físicas que se conhecem tem também em comum uma luz natural, uma abertura ao ser que torna as aquisições da cultura comunicáveis a todos eles e somente a eles. Mas esse lampejo que encontramos em todo o olhar dito humano é visto tanto nas formas mais cruéis do sadismo quanto na pintura italiana. É justamente ele que faz com que tudo seja possível da parte do homem, e até o fim.
A Verdadeira Religião é Individual e não Social
É possível que a religião da solidão seja de certa maneira superior à religião social e formalizada. O que é certo é que ela apareceu mais tarde no decurso da evolução. Além disso, os fundadores das religiões e seitas históricamente mais importantes têm sido todos, com excepção de Confúcio, solitários. Talvez seja verdade dizer-se que, quanto mais poderosa e original for uma mente, mais ela se inclinará para a religião da solidão, e menos ela será atraída no sentido da religião social ou impressionada pelas suas práticas. Pela sua própria superioridade a religião da solidão está condenada a ser a religião das minorias. Para a grande maioria dos homens e das mulheres a religião ainda significa, o que sempre significou, religião social formalizada, um assunto de rituais, observâncias mecânicas, emoção das massas. Perguntem a qualquer dessas pessoas o que é a verdadeira essência da religião, e eles responderão que ela consiste na devida observância de certas formalidades, na repetição de certas frases, na reunião em certos tempos e em certos lugares, da realização por meios apropriados de emoções comunais.