Falar à Humanidade é Demagogia
Esquece-se demasiadamente que todo o autêntico dizer não só diz algo, como diz alguém a alguém. Em todo o dizer há um emissor e um receptor, os quais não são indiferentes ao significado das palavras. Este varia quando aquelas variam. Duo si idem dicunt non est idem. Todo o vocábulo é ocasional. A linguagem é por essência diálogo, e todas as outras formas do falar destituem a sua eficácia. Por isso eu creio que um livro só é bom na medida em que nos traz um diálogo latente, em que sentimos que o autor sabe imaginar concretamente o seu leitor e este percebe como se de entre as linhas saísse uma mão ectoplástica que tacteia a sua pessoa, que quer acariciá-la – ou bem, mui cortesmente, dar-lhe um murro.
Abusou-se da palavra e por isso ela caiu em desgraça. Como em tantas outras coisas, o abuso aqui consistiu no uso sem preocupação, sem consciência da limitação do instrumento. Há quase dois séculos que se acredita que falar era falar urbi et orbi, isto é, a todos e a ninguém. Eu detesto essa maneira de falar e sofro quando não sei concretamente a quem falo.
Contam, sem insistir demasiado sobre a realidade do facto, que quando se celebrou o jubileu de Victor Hugo foi organizada uma grande festa no palácio do Eliseu, da qual participaram, levando as suas homenagens, representações de todas as nações. O grande poeta achava-se na grande sala de recepção, em solene atitude de estátua, com o cotovelo apoiado no rebordo de uma chaminé. Os representantes das nações adiantavam-se ao público e apresentavam a sua homenagem ao vate da França. Um porteiro, com voz estentórica, anunciava-os:
«Monsieur le Représentant de l’Anglaterre!» E Victor Hugo, com voz de dramático trêmulo, virando os olhos, dizia: «L’Anglaterre! Ah, Shakespeare!» O porteiro continuou: «Monsieur le Représentant de l’Espagne!» E Victor Hugo: «L’Espagne! Ah, Cervantes!» O porteiro: «Monsieur le Représentant de L’Allemagne!» E Victor Hugo: «L’Allemagne! Ah, Goethe!»
Mas então chegou a vez de um senhor baixo, atarracado, balofo e de andar desgracioso. O porteiro exclamou: «Monsieur le Représentant de la Mésopotamie!»
Victor Hugo, que até então permanecera impertérrito e seguro de si mesmo, pareceu vacilar. As suas pupilas, ansiosas, fizeram um grande giro circular como que a procurar em todo o cosmos algo que não encontrava. Mas logo se viu que o achara e que recobrara o domínio da situação. Efectivamente, com o mesmo tom patético, com a mesma convicção, respondeu à homenagem do rotundo senhor dizendo: «La Mésopotamie! Ah, L’Humanité!»
Contei isso a fim de declarar, sem a solenidade de Victor Hugo, que não escrevi nem falei à Mesopotâmia, e nunca me dirigi à Humanidade. Esse costume de falar para a Humanidade, que é a forma mais sublime, e, portanto, a mais desprezível da demagogia, foi adotada até 1750 por intelectuais desajustados, ignorantes de seus próprios limites e que sendo, por seu ofício, os homens do dizer, do logos, usaram dele sem respeito e precauções, sem perceberem que a palavra é um sacramento de mui delicada administração.