Elas São Vaporosas
Elas são vaporosas,
Pálidas sombras, as rosas
Nadas da hora lunar…Vêm, aéreas, dançar
Com perfumes soltos
Entre os canteiros e os buxos…
Chora no som dos repuxos
O ritmo que há nos seus vultos…Passam e agitam a brisa…
Pálida, a pompa indecisa
Da sua flébil demora
Paira em auréola à hora…Passam nos ritmos da sombra…
Ora é uma folha que tomba,
Ora uma brisa que treme
Sua leveza solene…E assim vão indo, delindo
Seu perfil único e lindo,
Seu vulto feito de todas,
Nas alamedas, em rodas,
No jardim lívido e frio…Passam sozinhas, a fio,
Como um fumo indo, a rarear,
Pelo ar longínquo e vazio,
Sob o, disperso pelo ar,
Pálido pálio lunar …
Passagens sobre Frio
353 resultadosCantiga do Rosto Branco
Rico era o rosto branco; armas trazia,
E o licor que devora e as finas telas;
Na gentil Tibeima os olhos pousa,
E amou a flor das belas.“Quero-te!” disse à cortesã da aldeia;
“Quando, junto de ti, teus olhos miro,
A vista se me turva, as forças perco,
E quase, e quase expiro.”E responde a morena requebrando
Um olhar doce, de cobiça cheio:
“Deixa em teus lábios imprimir meu nome;
Aperta-me em teu seio!”Uma cabana levantaram ambos,
O rosto branco e a amada flor das belas…
Mas as riquezas foram-se co’o tempo,
E as ilusões com elas.Quando ele empobreceu, a amada moça
Noutros lábios pousou seus lábios frios,
E foi ouvir de coração estranho
Alheios desvarios.Desta infidelidade o rosto branco
Triste nova colheu; mas ele amava,
Inda infiéis, aqueles lábios doces,
E tudo perdoava.Perdoava-lhe tudo, e inda corria
A mendigar o grão de porta em porta,
Com que a moça nutrisse, em cujo peito
Jazia a afeição morta.E para si,
Aos Realistas
Ó seres frios que vos sentis tão couraçados contra a paixão e a quimera e que tanto gostaríeis de fazer da vossa doutrina um adorno e um objecto de orgulho, dais-vos o nome de realistas e dais a entender que o mundo é verdadeiramente tal como vos aparece; que sois os únicos a ver a verdade isenta de véus e que sois vós talvez a melhor parte dessa verdade… ó queridas imagens de Sais! Mas não sereis ainda vós próprios, mesmo no vosso estado mais despojado, seres surpreendentemente obscuros e apaixonados se vos compararmos aos peixes? Não sereis ainda demasiado parecidos com artistas apaixonados? E o que vem a ser a «realidade» aos olhos de um artista apaixonado? Ainda não deixaste de julgar as coisas como fórmulas que têm a sua origem nas paixões e nos complexos amorosos dos séculos passados! A vossa frieza está ainda cheia de uma secreta e inextirpável embriaguez!
O vosso amor pela «realidade», se for necessário escolher-vos um exemplo, que coisa antiga! Que velho «amor»! Não há sentimento, sensação, que não contenham uma certa dose, que não tenham sido, também, trabalhados e alimentados por qualquer exagero da imaginação, por um preconceito, uma sem-razão, uma incerteza,
Na hora em que a terra dorme enrolada em frios véus, eu ouço uma reza enorme enchendo o abismo dos céus
para uma canção de embalar
embalo a minha filha joana que acordou num berreiro.
a casa está às escuras, vou passando com cuidado
para não dar encontrões nos móveis, embalo esta menina
que se calou mas está de olho muito aberto e quer brincar,
e há um halo de luz parda a coar-se pelas persianas
e às vezes uns faróis riscando estrias a correrem pelo tecto.levo-a bem presa ao colo, toda de porcelana pesadinha,
enquanto a irmã está a dormir meio atravessada nos lençóis.
ao chegar-me a outra janela vejo as luzes fugindo na auto-estrada
em direcção ao rio, a uma placa da lua sobre o rio,
e trauteio «já gostava de te ve-er», enquanto acendo o fogão
para aquecer o leite e embalo a minha filha e a outra está a dormir.oxalá cresçam ambas airosas e bem seguras,
e possam ir na vida serenamente como os rios correm,
ou como os veleiros voam, ou como elas agora respiram
em cadências regulares neste silêncio táctil.
a meio da noite um homem acordou no sossego da casa
e pôs-se a cuidar do sono das suas filhas pequenas.
Não Digo do Natal
Não digo do Natal – digo da nata
do tempo que se coalha com o frio
e nos fica branquíssima e exacta
nas mãos que não sabem de que cionasceu esta semente; mas que invade
esses tempos relíquidos e pardos
e faz assim que o coração se agrade
de terrenos de pedras e de cardospor dezembros cobertos. Só então
é que descobre dias de brancura
esta nova pupila, outra visão,e as cores da terra são feroz loucura
moídas numa só, e feitas pão
com que a vida resiste, e anda, e dura.
Solidão
Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espessoEsta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírioÉ então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarouMas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resignaLonge
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo
Enquanto todos praguejavam contra o frio, e fiz a cama na varanda!
Reciclagem de Amizades
Um homem de mente activa e elástica desgasta as suas amizades, assim como certamente desgasta os seus casos amorosos, as suas tendências políticas e a sua epistemologia. Elas tornam-se puídas, esfrangalhadas, artificiais, irritantes e deprimentes. Transformam-se de realidades vivas em nulidades moribundas, e entram em sinistra oposição à liberdade, ao auto-respeito e à verdade. É tão repelente conservá-las, depois que se tornam ocas e podem ser sopradas como uma mosca, quanto manter uma paixão depois que esta paixão já se tornou um cadáver. Todo o homem prudente, ao lembrar-se de que a vida é curta, deveria dispensar uma hora ou duas, de vez em quando, para um exame crítico de suas amizades. Deve pesá-las, repensá-las, testar se ainda contêm algum metal. Algumas poderão sobreviver, talvez com mudanças radicais nos seus termos. Mas a maioria será varrida em poucos minutos e ele tentará esquecê-las, assim como tenta esquecer os seus frios e pegajosos amores do ano retrasado.
Os amantes sem dinheiro
Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
A cada qual, dá Deus o frio conforme anda vestido.
Para Quê e Porquê
Vê se não insistes muito em perguntar porquê ou para quê, se não queres ficar paralítico. Porque a maior grandeza da vida tem o valor nela própria e não fora dela. Não se pode justificar a vida senão nela. Ou a luz. Ou a fraternidade humana. Ou a justiça. E o mais assim. E é o que é indiscutível que pode fundar um comportamento e uma razão de se estar vivo.
É fácil ainda inventar ou ter razões para se atentar contra o que é indiscutível. Porque se é indiscutível, não se pode discutir. E se se discute, o valor deixa de existir. Toda a cultura ou civilização assenta em pressupostos que não exigem uma demonstração e permanecem assim no intocável que é seu. Eis que no nosso tempo, como em nenhum outro, o fundamental para a vida se determina pela negação. A arte foi como sempre o grande arauto da nossa terra queimada. Negar. Destruir. Porque tudo se contamina da possibilidade de negação. Das artes e as letras ao comportamento social.
E curiosamente a mais manifesta negação é a que se refere ao tabu sexual. E o que mais se destaca aí é o uso a frio das maiores obscenidades.
A Casada Infiel
Levei-a comigo ao rio,
pensando que era donzela,
porém já tinha marido.
Foi na noite de Santiago
e quase por compromisso.
Os lampiões se apagaram
e acenderam-se os grilos.
Nas derradeiras esquinas
toquei seus peitos dormidos
e pra mim logo se abriram
como ramos de jacintos.
A goma de sua anágua
soava no meu ouvido,
como uma peça de seda
lacerada por dez facas.
Sem luz de prata nas copas
as árvores têm crescido,
e um horizonte de cães
ladra mui longe do rio.*
Passadas as sarçamoras
os juncos e os espinheiros,
por debaixo da folhagem
fiz um fojo sobre o limo.
Minha gravata tirei.
Tirou ela seu vestido.
Eu, o cinto com revólver.
Ela, seus quatro corpetes.
Nem nardos nem caracóis
têm uma cútis tão fina,
nem os cristais ao luar
resplandecem com tal brilho.
Suas coxas me fugiam
como peixes surpreendidos,
metade cheia de lume,
metade cheia de frio.
Percorri naquela noite
o mais belo dos caminhos,
montado em potra de nácar
sem bridas e sem estribos.
Mostrar cólera e ódio nas palavras ou no semblante é inútil, perigoso, imprudente, ridículo e comum. Não devemos mostrar a nossa cólera ou o nosso ódio senão por meio de actos; e estes podem ser praticados tanto mais perfeitamente quanto mais perfeitamente tivermos evitado os primeiros. Os animais de sangue frio são os únicos que têm veneno.
Meridional
Cabelos
Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos,
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!E, ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.
Amar sem Possuir é um Tormento
Se a ti, onde Amor leva o pensamento,
Meu triste coração levar pudesse,
Dó terias, cruel, do que padece,
S’inda em teu peito cabe sentimento.Amar sem possuir é um tormento
Que só quem o suporta é que o conhece.
Não o conheces tu, pois te arrefece
Sempre, na ausência, o frio esquecimento.Tu tens um coração que se persuade
Dever amar só quando se deleita
Na posse do prazer, da sociedade.O meu segue outra estrada mais direita,
Ama distante, ferem-no a Saudade
O Ciúme infernal, a vil Suspeita.
Louvor do Aprender
Aprende o mais simples! Pra aqueles
Cujo tempo chegou
Nunca é tarde de mais!
Aprende o abc, não chega, mas
Aprende-o! E não te enfades!
Começa! Tens de saber tudo!
Tens de tomar a chefia!Aprende, homem do asilo!
Aprende, homem na prisão!
Aprende, mulher na cozinha!
Aprende, sexagenária!
Tens de tomar a chefia!Frequenta a escola, homem sem casa!
Arranja saber, homem com frio!
Faminto, pega no livro: é uma arma.
Tens de tomar a chefia.Não te acanhes de perguntar, companheiro!
Não deixes que te metam patranhas na cabeça:
Vê c’os teus próprios olhos!
O que tu mesmo não sabes
Não o sabes.
Verifica a conta:
És tu que a pagas.
Põe o dedo em cada parcela,
Pergunta: Como aparece isto aqui?
Tens de tomar a chefia.Tradução de Paulo Quintela
Sugestão
Sede assim — qualquer coisa
serena, isenta, fiel.Flor que se cumpre,
sem pergunta.Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.Não como o resto dos homens.
Mãe…
Mãe — que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas ate o fio
Do meu pobre existir, meio partido…Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio…
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido…Eu dava o meu orgulho de homem — dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava.Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!
Retrato
Pintar o rosto de Márcia
Com tal primor determino,
Que seja logo seu rosto
Pela pinta conhecido.
Anda doudo de prazer
Seu cabelo por tão lindo,
Pois mal lhe vai uma onda,
Quando outra já lhe tem vindo.
Sua testa com seus arcos
Do Turco Império castigo
Vencido tem Solimão,
Meias Luas tem vencido.
Dormidos seus olhos são,
Porém Planetas tão ricos
Nunca já foram sonhados,
Bem que sempre são dormidos.
A dormir creio se lançam
Por ter de mortais, e vivos
Tão boa fama cobrado,
Nome tão grande adquirido.
Entre seus raios se mostra
O grande nariz bornido,
Por final que entre seus raios
Prova o nariz de aquilino.
Nas taças de suas faces
Feitas do metal mais limpo,
Como certos Reverendos,
Mistura o branco co’tinto.
As perlas dos dentes alvos,
Os rubins dos beiços finos
Tem desdentado o marfim,
E a cor mais viva comido.
O passadiço da voz
Nem é neve, nem é vidro,
Nem mármore, nem marfim,
Nem cristal, mas passadiço.