Escreve com fĂșria, mas corrige com fleuma.
Passagens sobre FĂșria
83 resultadosO DilĂșvio
HĂĄ muitos dias jĂĄ, hĂĄ jĂĄ bem longas noites
que o estalar dos vulcÔes e o atroar das torrentes
ribombam com furor, quais råbidos açoites,
ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.Pradarias, vergéis, hortos, vinhedos, matos,
tudo desapar’ceu ao rude desabar
das constantes, hostis, raivosas cataratas,
que fizeram da Terra um grande e torvo mar.Ă flor do torvo mar, verde como as gangrenas,
onde homens e leÔes bóiam agonizantes,
imprecando com fĂșria e angĂșstia, erguem-se apenas,
quais monstros colossais, as montanhas gigantes.Ă aĂ que, ululando, os homens como as feras
refugiar-se vĂŁo em trĂĄgicos cardumes,
O mar sobe, o mar cresce. e os homens e as panteras,
crianças e reptis caminham para os cumes.Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,
arremessam ao chĂŁo pobres velhos cansados.
e as mães largam. cruéis, os filhinhos de leite,
que os que seguem depois pisam, alucinados.Um sinistro pavor; crescente e sufocante,
desnorteia, asfixia a turba pertinaz:
ouvem-se urros de dor, e os que vĂŁo adiante
lançam pedras brutais aos que ficam pra trås.
Coordenadas
Conheço
os começosâ o chegar as chuvas
as migraçÔes, o mugir
de parelhas atreladas
aos varais da madrugada.Conheço onde começa
o medo o estupor o soco!
Onde o homem no ar
parado, rodopiaâ e tomba
quando assoma
o zinabre ao gesto
e a lĂąmina se limpa
de espessa fĂșria.TambĂ©m conheço
antiga promessa
de urtiga Ă s costas,
premissa de colheita
proposta pelos caules.E mais conheço
onde a terra exaure
o corpo que nela deita,onde o Ăntimo de nosso
ser em pó começa a ser
sopro de ossos.Mas desconheço
o remanso das tréguas
o descanso dos remos
o ponto de equilĂbrioonde estou
O Tempo Gastador de Mil Idades
O Tempo gastador de mil idades,
Que na décima esfera vive e mora,
NĂŁo descansa co’a FĂșria tragadora,
De exercitar, feroz, suas crueldades.Ele destrĂłi as Ănclitas cidades,
As egĂpcias pirĂąmides devora:
Sua dentada fouce assoladora,
Rompe forças viris, destrĂłi beldades.O bronze, o ouro, o rĂgido diamante,
A sua mĂŁo pesada amolga e gasta
Levando tudo ao nada, em giro errante.Como trovĂŁo feroz rugindo arrasta,
Quanto cobre na Terra o sol radiante,
SĂł da Virtude com temor se afasta.
Ode Triunfal
à dolorosa luz das grandes lùmpadas eléctricas da fåbrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.Ă rodas, Ăł engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fĂșria!
Em fĂșria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lĂĄbios secos, Ăł grandes ruĂdos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensaçÔes,
Com um excesso contemporĂąneo de vĂłs, Ăł mĂĄquinas!Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trĂłpicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente Ă© todo o passado e todo o futuro
E hĂĄ PlatĂŁo e VirgĂlio dentro das mĂĄquinas e das luzes elĂ©ctricas
SĂł porque houve outrora e foram humanos VirgĂlio e PlatĂŁo,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Tenham cuidado com a fĂșria de um homem paciente.
Leio romances desde que perceba que nĂŁo estĂŁo a responder. Alguns sĂŁo extraordinĂĄrias mĂĄquinas interrogativas: “Ulisses”, “Filhos e Amantes”, “O Doutor Fausto”, “O Processo”, “A Morte de VirgĂlio”,”O Som e a FĂșria”,”Debaixo do VulcĂŁo”, “A Obra ao Negro”, “Lolita”…
Memento por um coração que ladra
O
cĂŁo
que
mais
ganir
Ă©
francĂȘs,
eco
nostĂĄlgico
de
uma
Bretanha
em fĂșria,
uvas
sangrentas,
espelho
ratado
pelo
sĂtio
do umbigo.
Um
bicho
que
gane
merece
os
ardis
todos
e
sulfĂșricas
desgraças.
DĂĄ-se
ao
animal
o
que
vier
do
medo
(rebuçado
com
buço
de
sapo)
e
as
mĂĄscaras
do
LĂĄcio
passam.
EntĂŁo
ser
voada
flor
em chaga
ou
simples
cĂŁo
jĂĄ
nĂŁo
atrapalha
nem
é trapaça.
Um
coração
que
ladra
tem
sempre
boa
raça.
New York
Resplandeces e ris, ardes e tumultuas;
Na escalada do cĂ©u, galgando em fĂșria o espaço,
Sobem do teu tear de praças e de ruas
Atlas de ferro, Anteus de pedra e Brontes de aço.Gloriosa! Prometeu revive em teu regaço,
Delira no teu gĂȘnio, enche as artĂ©rias tuas,
E combure-te a entranha arfante de cansaço,
Na incessante criação de assombros em que estuas.Mas, como as tuas Babéis, debalde o céu recortas,
E pesas sobre o mar, quando o teu vulto assoma,
Como a recordação da Tebas de cem portas:Falta-te o Tempo, – o vago, o religioso aroma
Que se respira no ar de Lutécia e de Roma,
Sempre moço perfume anciĂŁo de idades mortas…
Deixei De Ser Aquele Que Esperava
Deixei de ser aquele que esperava,
Isto Ă©, deixei de ser quem nunca fui…
Entre onda e onda a onda nĂŁo se cava,E tudo, em ser conjunto, dura e flui.
A seta treme, pois que, na ampla aljava,
O presente ao futuro cria e inclui.
Se os mares erguem sua fĂșria brava
Ă que a futura paz seu rastro obstrui.Tudo depende do que nĂŁo existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança, austero e triste.Nada me explica. Nada me pertence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo dissipa e nada vence.
Soneto II
A D. Manuel de Lencastre.
Na tenebrosa noite o caminhante,
Quando o ar se engrossa e o mundo todo atroa,
O tronco busca donde se coroa
Da fugitiva Dafne o brando amante.Ali nĂŁo teme o raio fulminante,
Por mais que na vizinha ĂĄrvore soa,
E seu louvor por onde vai pregoa
Tanto que a cerração c’o sol levante.Trabalha o CĂ©u em minha fim, trabalha
A terra em minha fim, com fĂșria imensa
Cada hora espero pela derradeira.Onde me acolherei que alguém me valha?
A vĂłs, a quem nĂŁo quer fazer ofensa
O CĂ©u, nem pode a terra, inda que queira.
O Primeiro de Todos os Meus Sonhos
o primeiro de todos os meus sonhos era sobre
um amante e o seu Ășnico amor,
caminhando devagar(pensamento no pensamento)
por alguma verde misteriosa terraatĂ© o meu segundo sonho começarâ
o céu é agreste de folhas;que dançam
e dançando arrebatam(e arrebatando rodopiam
sobre um rapaz e uma rapariga que se assustam)mas essa mera fĂșria cedo se tornou
silĂȘncio:em mais vasto sempre quem
dois pequeninos seres dormem(bonecas lado a lado)
imĂłveis sob a mĂĄgicapara sempre caindo neve.
E entĂŁo este sonhador chorou:e entĂŁo
ela rapidamente sonhou um sonho de primavera
âonde tu e eu estamos a florescerTradução de CecĂlia Rego Pinheiro
Sinto a fĂșria de suas palavras, mas nĂŁo entendo nada do que vocĂȘ diz. tradução alternativa: Eu percebo uma fĂșria em suas palavras, mas nĂŁo as palavras.
Tese e AntĂtese
I
Jå não sei o que vale a nova idéia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, Ă luz da barricada,
Como bacchante apĂłs lĂșbrica ceia…Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
Respira fumo e fogo embriagada:
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fĂșrias de Medeia!Um sĂ©culo irritado e truculento
Chama Ă epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz…Mas a idea Ă© n’um mundo inalterĂĄvel,
N’um cristalino cĂ©u, que vive estĂĄvel…
Tu, pensamento, nĂŁo Ă©s fogo, Ă©s luz!II
N’um cĂ©u intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectĂĄculo divino.Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante:
Enche o ar da terra o seu pulmĂŁo possante…
CĂĄ da terra blasfema ou ergue um hino…A idĂ©ia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar sĂŁo chamas que crepitam,
PaixÔes ardentes como vivos sóis!Combatei pois na terra årida e bruta,
PaciĂȘncia, um Sofrimento VoluntĂĄrio
Tu Ă©s, Ăł PaciĂȘncia, um sofrimento
VoluntĂĄrio, fiel, bem ordenado,
Da conhecida sem razĂŁo tirado,
De um constante varĂŁo nobre ornamento.Tu, recolhendo n’alma o pensamento,
Suportas com valor o Tempo irado.
Tu sustentas, com ùnimo esforçado,
Todo o peso do mal, no bem atento.MagnĂąnima tu Ă©s, tu Ă©s ConstĂąncia,
Cedro que nĂŁo derruba a tempestade,
Rocha, onde a fĂșria quebra o mar com Ăąnsia.Tu triunfas da mesma Adversidade.
Subjugando as paixĂ”es co’a TolerĂąncia,
Tu vences os ardis da vil Maldade.
Nas Praças
Nas praças vindouras â talvez as mesmas que as nossas â
Que elixires serĂŁo apregoados?
Com rĂłtulos diferentes, os mesmos do Egito dos FaraĂłs;
Com outros processos de os fazer comprar, os que jĂĄ sĂŁo nossos.E as metafĂsicas perdidas nos cantos dos cafĂ©s de toda a parte,
As filosofias solitĂĄrias de tanta trapeira de falhado,
As idĂ©ias casuais de tanto casual, as intuiçÔes de tanto ninguĂ©m â
Um dia talvez, em fluido abstrato, e substĂąncia implausĂvel,
Formem um Deus, e ocupem o mundo.
Mas a mim, hoje, a mim
NĂŁo hĂĄ sossego de pensar nas propriedades das coisas,
Nos destinos que nĂŁo desvendo,
Na minha prĂłpria metafisica, que tenho porque penso e sinto.NĂŁo hĂĄ sossego,
E os grandes montes ao sol tĂȘm-no tĂŁo nitidamente!TĂȘm-no? Os montes ao sol nĂŁo tĂȘm coisa nenhuma do espĂrito.
Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem.O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,
Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo.E por que é que hå propósitos mortos e sonhos sem razão?
A Melhor Maneira de Viajar Ă© Sentir
Afinal, a melhor maneira de viajar Ă© sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas sĂŁo, em verdade, excessivas
E toda a realidade Ă© um excesso, uma violĂȘncia,
Uma alucinação extraordinariamente nĂtida
Que vivemos todos em comum com a fĂșria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrĂfugas
Que sĂŁo as psiques humanas no seu acordo de sentidos.Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como vĂĄrias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existĂȘncia total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais anĂĄlogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que Ă© Tudo,
E fora d’Ele hĂĄ sĂł Ele, e Tudo para Ele Ă© pouco.Cada alma Ă© uma escada para Deus,
Cada alma Ă© um corredor-Universo para Deus,
Cada alma Ă© um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.
NĂŁo Existe Prosa
NĂŁo existe prosa. A menos que se refiram os escritos, em prosa ou verso, que pretendem ensinar. NĂŁo hĂĄ nada a ensinar embora haja tudo a aprender. Aquilo que se aprende vem do nosso prĂłprio ensino, vem da pergunta; vĂŁo-se aprendendo, pelas esperas, pela imobilidade Ă s portas, pela invisibilidade dos rostos depois de vistos tĂŁo prometedoramente, pela emenda sucessiva, pela insĂłnia sucessiva dos olhos e das figuraçÔes, sempre, vĂŁo-se aprendendo sempre as maneiras da pergunta. Uma pergunta em perguntas, um poema em poemas, uma rebarbativa constelação de objectos ofuscantes. Aprende-se que a pergunta se desloca com a luz inerente; ilumina-se a si mesma, a pergunta constelar; ensina a si mesma, ao longo de si mesma, os estilos de ser dotada dessa luz para fora e para dentro. Leio romances desde que perceba que nĂŁo estĂŁo a responder. Alguns sĂŁo extraordinĂĄrias mĂĄquinas interrogativas: “Ulisses”, “Filhos e Amantes”, “O Doutor Fausto”, “O Processo”, “A Morte de VirgĂlio”, “O Som e a FĂșria”, “Debaixo do VulcĂŁo”, “A Obra ao Negro”, “Lolita”, “DiĂĄrio do LadrĂŁo”, todos os romances de CĂ©line como se fossem um sĂł, alguns outros, antes, agora. Os romances de Agustina Bessa-LuĂs, porventura os menos amados, sĂŁo entre nĂłs as quase Ășnicas mĂĄquinas vivas de perguntar.
A Carnal Tentação Desenfreada
A carnal tentação desenfreada
Que ao sangue quente alta justiça pede,
Fez com que eu, embrulhando-me na rede
Subisse de uma puta a infame escada.Ligeiras pulgas saltam de emboscada
Fartando em mim de sangue humano a sede;
Arde a vela pregada na parede,
JĂĄ de antigos morrĂ”es afogueada.Saiu da alcova a desgrenhada fĂșria
Respirando venal sensualidade,
Vil desalinho, sĂłrdida penĂșria:Muito pode a pobreza e a porquidade;
Abati as bandeiras Ă luxĂșria
Jurei no altar de VĂ©nus castidade.
As Entranhas da Terra na Vida de um Homem
Ao fim dos primeiros dias de trabalho, deu por si de pĂ© no centro do corredor, percorrendo as divisĂ”es com o olhar, e julgou perceber melhor a massa de que era feito o seu povo. Tudo oxidava. Os metais oxidavam, as madeiras oxidavam, as paredes e os tecidos e os objectos oxidavam â e o que nĂŁo oxidava enchia-se de salitre, ressequia ao sol ou, sobrevivendo aos abalos de terra, tombava Ă fĂșria do vento. E, no entanto, havia algo de belo nisso tambĂ©m, como se ao cabo de uma sĂł vida um homem pudesse dizer, sem grande esforço metonĂmico, que as entranhas da Terra se revolviam no interior do seu prĂłprio estĂŽmago.