Corpo de Mulher…
Corpo de mulher, brancas colinas, coxas
[brancas,
pareces-te com o mundo na tua atitude de
[entrega.
O meu corpo de lavrador selvagem escava em ti
e faz saltar o filho do mais fundo da terra.Fui só como um túnel. De mim fugiam os
[pássaros,
e em mim a noite forçava a sua invasão
[poderosa.
Para sobreviver forjei-te como uma arma,
como uma flecha no meu arco, como uma pedra
na minha funda.Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te.
Corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme.
Ah os copos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah a tua voz lenta e
[triste!Corpo de mulher minha, persistirei na tua graça.
Minha sede, minha ânsia sem limite, meu
[caminho indeciso!
Escuros regos onde a sede eterna continua,
e a fadiga continua, e a dor infinita.
Passagens sobre Horas
1043 resultadosPergunto-te Onde se Acha a Minha Vida
Pergunto-te onde se acha a minha vida.
Em que dia fui eu. Que hora existiu formada
de uma verdade minha bem possuída.Vão-se as minhas perguntas aos depósitos do nada.
E a quem é que pergunto? Em quem penso, iludida
por esperanças hereditárias? E de cada
pergunta minha vai nascendo a sombra imensa
que envolve a posição dos olhos de quem pensa.Já não sei mais a diferença
de ti, de mim, da coisa perguntada,
do silêncio da coisa irrespondida.
na hora de pôr a mesa, éramos cinco
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
O génio é solar. Apaga-se o fogo da terra, não se obscurece o dia, e se a noite o envolve em horas negras é para o restituir depois ao céu, ainda mais claro, no berço refulgente das auroras.
Saudade
Ter saudade
é vaga disforme de um corpo.
Ter saudade
é pássaro que aparece e se apaga
erguido de confusão
na angústia, teste dado à natureza
bruxuleante dentro de mim.
Ter saudade
é fingir qualquer coisa que inquieta,
levantada, desenterrada do crivo da memória.
Por vezes quando o tempo por ela passa
não passa o tempo da saudade,
estátua rígida dum destino anoitecido,
passa um nada meio acontecido.
Saudade,
é filha da alma do mundo
que de tanto ser outro
sou eu já.
Saudade,
porque viajas cansada
em horas dentro de mim?
Saudade
que vieste até à última força desta linha,
brumosa da eterna caminhada.
Sempre que vieres
sem avisares
leva-me contigo
para que a paz volte
à memória de meu corpo
como o rio que passa
no tempo final da minha natureza.
É preciso entender as artimanhas do tempo: a hora certa sempre chega.
Noites em Claro
Passas em claro as noites a chorar;
Dia a dia, teu rosto empalidece…
Faze tu, pobre Mãe, por serenar,
Santa Resignação sobre ela desce!Rochedo que a penumbra desvanece,
Tu, por acaso, não lhe podes dar
Um pouco d’esse frio que entorpece
O coração e o deixa descançar?…Jamais! Não ha remedio! Nem as horas
Que passam! Toda a fria noite choras;
Tua sombra, no chão, é mais escura.Soffres! E sinto bem que a tua dôr,
Como se fôra um beijo, acêso amôr,
Vae-lhe aquecer, ao longe, a sepultura.
Ternura
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamenteE posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não trai o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma…
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o
[olhar extático da aurora.
Não há amor que resista a vinte e quatro horas de filosofia.
Soneto II
A D. Manuel de Lencastre.
Na tenebrosa noite o caminhante,
Quando o ar se engrossa e o mundo todo atroa,
O tronco busca donde se coroa
Da fugitiva Dafne o brando amante.Ali não teme o raio fulminante,
Por mais que na vizinha árvore soa,
E seu louvor por onde vai pregoa
Tanto que a cerração c’o sol levante.Trabalha o Céu em minha fim, trabalha
A terra em minha fim, com fúria imensa
Cada hora espero pela derradeira.Onde me acolherei que alguém me valha?
A vós, a quem não quer fazer ofensa
O Céu, nem pode a terra, inda que queira.
Apolo E As Nove Musas, Discantando
Apolo e as nove Musas, discantando
com a dourada lira, me influíam
na suave harmonia que faziam,
quando tomei a pena, começando:-Ditoso seja o dia e hora, quando
tão delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam
estar se em seu desejo traspassando!Assi cantava, quando Amor virou
a roda à esperança, que corria
tão ligeira que quase era invisível.Converteu se me em noite o claro dia;
e, se algüa esperança me ficou,
será de maior mal, se for possível.
Para Ser Lido Mais Tarde
Um dia
quando já não vieres dizer-me Vem
jantarquando já não tiveres dificuldade
em chegar ao puxador
da porta quandojá não vieres dizer-me Pai
vem ver os meus deveresquando esta luz que trazes nos cabelos
já não escorrer nos papéis em que trabalhopara ti será o começo de tudo
Uma outra vida haverá talvez para os teus sonhos
um outro mundo acolherá talvez enfim a tua oferendaHás-de ter alguma impaciência enquanto falo
Ouvirás com encanto alguém que não conheço
nem talvez ainda exista neste instanteMas para mim será já tão frio e já tão tarde
E nem mesmo uma lembrança amarga
ou doce ficará
desta hora redonda
em que ninguém repara
Alguém disse uma vez que na hora em que se pára para pensar se gosta de alguém, já se deixou de gostar da pessoa para sempre.
Os bons vão ao passo certo; os outros ignorando-os inteiramente, dançam à volta deles a coreografia da hora que passa.
Cartas Trocadas para o Marido e para o Amante
Anais,
Uma terrível asneira foi feita. Enviaste a carta para o Hugo, no dia em que chegaste, e mandaste-lhe a minha. O Hugo está freneticamente a tentar entrar em contacto comigo. Mandou a Amélia aqui, que deixou debaixo da porta o bilhete que junto. Ela esteve aqui de manhã e outra vez esta noite. Pensei de manhã que era o próprio Hugo e que ele tinha vindo para me “apanhar”… Por isso, não abri a porta.
Já que eu tinha recebido a carta dele na noite anterior (a tua carta para ele), tive um pressentimento de que as cartas tinham sido postas nos envelopes errados e fiquei apreensivo. Esta noite enviei-lhe a sua carta para o número 18 da Ave. de Versailles, sem dar a minha morada. Não posso dizer nesta carta se chegarei a receber a que me era devida. Espero que sim. Suponho que ele saiba tudo agora. Mas estou a evitá-lo, porque não quero admitir nem negar. Ele deve estar furioso, mas, ao mesmo tempo, num estado terrível. Eu próprio estou exausto de apreensão. Trouxe o Fred para ficar aqui comigo, porque até o Hugo partir vou estar em pulgas. Sei que, se ele me matasse,
A melhor hora para se consertar o telhado é quando o tempo está bom.
É hora da tempestade. O mar espera silencioso.
Vinho
Do amor tu não dirás: provo, mas não me embriago,
que não basta provar para sentir o amor.
É preciso sorvê-lo até o último trago
se a embriaguez é que dá seu profundo sabor.Teu amor deve ter profundidade e cor
não deve ser um sonho doentio e vago,
se assim for, então sim, podes te dar por pago
que este é o preço da vida e todo o seu valor.Transborda a tua taça, ergue-a nas mãos, e brinda
o momento feliz que viveste e não finda,
que só o amor que embriaga e que nos leva a extremospode glorificar os sentidos e a vida,
e vencendo a razão que nos tolhe e intimida,
nos faz reaver, de pronto, as horas que perdemos!
Este anoitecer vai ser divino, como deves calcular. Foi sempre a minha hora de tragédia, a hora dos meus nervos dolorosos, dos meus pensamentos doidos; foi sempre, a noitinha, o meu grande calvário onde sobem devagarinho, em passos lentos, todas as minhas dores de muitos anos, todas as mágoas que me têm dado, e é nesta hora que eu rezo o meu verso, não sei de que soneto: “Ergue-se a minha cruz dos desalentos”.
Felina Mulher
Eu quisera depois das lutas acabadas,
na paz dos vegetais adormecer um dia
e nunca mais volver da santa letargia,
meu corpo dando pasto às plantas delicadas.Seria belo ouvir nas moitas perfumadas,
enquanto a mesma seiva em mim também corria,
as sãs vegetações, em íntima harmonia,
aos troncos enlaçando as lívidas ossadas!Ó beleza fatal que há tanto tempo gabo:
se eu volvesse depois feito em jasmins-do-cabo
– gentil metamorfose em que nesta hora penso –tu, felina mulher, com garras de veludo,
havias de trazer meu espírito, contudo,
envolto muita vez nas dobras do teu lenço!