Aprender a Ver
Aprender a ver – habituar os olhos à calma, à paciência, ao deixar-que-as-coisas-se-aproximem-de-nós; aprender a adiar o juízo, a rodear e a abarcar o caso particular a partir de todos os lados. Este é o primeiro ensino preliminar para o espírito: não reagir imediatamente a um estímulo, mas sim controlar os instintos que põem obstáculos, que isolam. Aprender a ver, tal como eu o entendo, é já quase o que o modo afilosófico de falar denomina vontade forte: o essencial nisto é, precisamente, o poder não «querer», o poder diferir a decisão. Toda a não-espiritualidade, toda a vulgaridade descansa na incapacidade de opor resistência a um estímulo — tem que se reagir, seguem-se todos os impulsos. Em muitos casos esse ter que é já doença, decadência, sintoma de esgotamento, — quase tudo o que a rudeza afilosófica designa com o nome de «vício» é apenas essa incapacidade fisiológica de não reagir. — Uma aplicação prática do ter-aprendido-a-ver: enquanto discente em geral, chegar-se-á a ser lento, desconfiado, teimoso. Ao estranho, ao novo de qualquer espécie deixar-se-o-á aproximar-se com uma tranquilidade hostil, — afasta-se dele a mão. O ter abertas todas as portas, o servil abrir a boca perante todo o facto pequeno,
Passagens sobre Incapacidade
66 resultadosControlar a Vida a 360 Graus
Vivemos numa sociedade dominada cada vez mais pelo mito do controlo. E o seu postulado dogmático é este: a receita para uma vida realizada é a capacidade de controlá-la a 360 graus. Não percebemos até que ponto uma mentalidade assim representa a negação do princípio de realidade. Isto para dizer como somos pouco ajudados a lidar com a irrupção do inesperado que hoje o sofrimento representa. Sentimos a dor como uma tempestade estranha que se abate sobre nós, tirânica e inexplicável. Quando ela chega, só conseguimos sentir-nos capturados por ela, e os nossos sentidos tornam-se como persianas que, mesmo inconscientemente, baixamos. A luz já não nos é tão grata, as cores deixam de levar-nos consigo na sua ligeireza, os odores atormentam-nos, ignoramos o prazer, evitamos a melodia das coisas. Damos por nós ausentes nessa combustão silenciosa e fechada onde parece que o interesse sensorial pela vida arde. «A dor é tão grande, a dor sufoca, já não tem ar. A dor precisa de espaço», escreve Marguerite Duras nas páginas autobiográficas do volume a que chamou «A Dor». E descobrimo-nos mais sós do que pensávamos no meio desse incêndio íntimo que cresce. Nas etapas de sofrimento a impotência parece aprisionar enigmaticamente todas as nossas possibilidades.
Contra a Ansiedade
Sempre que te aconteça alguma coisa contrária à tua expectativa diz a ti mesmo que os deuses tomaram uma decisão superior! Com semelhante disposição de espírito, nada terás a temer. Esta disposição de espírito consegue-se pensando na instabilidade da vida humana antes de a experimentarmos em nós, olhando para os filhos, a mulher, os bens como algo que não possuiremos para sempre, e evitando imaginarmo-nos mais infelizes um dia que deixemos de os possuir. Será a ruína do espírito andarmos ansiosos pelo futuro, desgraçados antes da desgraça, sempre na angústia de não saber se tudo o que nos dá satisfação nos acompanhará até ao último dia; assim, nunca conseguiremos repouso e, na expectativa do que há-de vir, deixaremos de aproveitar o presente. Situam-se, de facto, ao mesmo nível a dor por algo perdido e o receio de o perder. Isto não quer dizer que te esteja incitando à apatia! Pelo contrário, procura evitar as situações perigosas; procura prever tudo quanto seja previsível; procura conjecturar tudo o que pode ser-te nocivo muito antes de que te suceda, para assim o evitares. Para tanto, ser-te-á da maior utilidade a autoconfiança, a firmeza de ânimo apta a tudo enfrentar. Quem tem ânimo para suportar a fortuna é capaz de precaver-se contra ela;
Dificilmente o homem procura reconhecer a sua incapacidade.
Nada revela mais uma incapacidade fundamental para o exercício do comércio que o hábito de concluir o que os outros querem sem estudar os outros, fechando-nos no gabinete da nossa própria cabeça.
A incapacidade de se adaptar traz a destruição.
A única anomalia é a incapacidade de amar.
Detalhes Importantes da Governação
Um sábio evita dizer ou fazer o que não sabe. Se os nomes não condizem com as coisas, há confusão de linguagem e as tarefas não se executam. Se as tarefas não se executam, o bem-estar e a harmonia são negligenciados. Sendo estes negligenciados, os suplícios e demais castigos não são proporcionais às faltas, o povo não sabe mais o que fazer. Um princípe sábio dá às coisas os nomes adequados e cada coisa deve ser tratada segundo o significado do seu nome. Na escolha dos nomes deve-se estar muito atento.
(…) Suponhamos que um homem aprenda as trezentas odes de Chen King e que, em seguida, se fosse encarregado de uma parte da administração, mostrasse pouca habilidade; se fosse enviado em missão a países estrangeiros, mostrasse incapacidade para resolver por si mesmo; de que lhe teria servido toda a sua literatura?
(…) Se o próprio príncipe é virtuoso, o povo cumprirá os seus deveres sem que lhe ordene; se o próprio príncipe não é virtuoso, pouco importa que dê ordens; o povo não as seguirá.
A competência é génio. A única, e verdadeira, forma de génio. Mais do que quem escreve um livro ou pinta um quadro: o competente que resolve problemas e facilita a vida de quem, sem ele, iria martirizar-se até à demência pela sua incapacidade é um génio. Um autêntico Da Vinci dos tempos modernos.
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação.
A prudência é uma rica rapariga que não casou, a quem a incapacidade faz a corte.
A Sabedoria do Romance
O homem deseja um mundo em que o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, porque nele há o desejo, inato e indomável, de julgar antes de compreender. Sobre esse desejo são fundadas as religiões e as ideologias. Estas não se podem conciliar com o romance a não ser que traduzam a linguagem de relatividade e de ambiguidade dele para o seu discurso apodítico e dogmático. Exigem que alguém tenha razão: ou Anna Karenina é vítima de um déspota limitado, ou Karenine é vítima de uma mulher imoral; ou então K., inocente, é esmagado por um tribunal injusto, ou então, por trás do tribunal, está escondida a justiça divina e K. é culpado.
Neste «ou então-ou então» está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de olhar de frente a ausência do Juiz supremo. Por causa desta incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.
Toda oportunidade de negócio tem seu ponto de partida na incapacidade de uma outra pessoa para resolver um problema simples e inevitável.
O Provincianismo Português (I)
Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.
O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos do “Orpheu”, disse a Mário de Sá-Carneiro: “V. é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira Paris,
Lógica: a arte de pensar de acordo com as limitações e as incapacidades da falta de compreensão humana.
A lauda em branco resume o infinito de textos que jamais serão escritos por incapacidade.
Os Nossos Erros e o Nosso Destino
Apercebo-me dos meus erros, mas não os corrijo. Isso só confirma que podemos ver o nosso destino, mas somos incapazes de o mudar. Apercebermo-nos dos erros é reconhecer o destino, e a nossa incapacidade para os corrigirmos é a força do destino. Apercebermo-nos dos erros é um castigo pesado. Seria muito mais fácil considerarmo-nos bons e culparmos os outros todos, encontrando consolação na ilusão da vitória sobre o destino. Mas mesmo essa felicidade não me é dada.
Todos Vivem apenas para a sua Abastança… (no século XIX)
Os tempos actuais são tempos de aurea mediocritas e de indiferença, de paixão pela ignorância, de preguiça, de incapacidade para o trabalho prático e da necessidade de receber tudo já pronto. Ninguém raciocina, será raro alguém elaborar uma ideia pessoal.
(…) Hoje em dia exterminam as florestas da Rússia, esgotam os solos da Rússia, transformam a Rússia numa estepe e preparam-na para os calmuques. Se aparecer um homem de esperança que plante uma árvore, todos se rirão: «Será que vives até ela crescer?» Por outro lado, os que aspiram ao bem falam de como será dentro de mil anos.
Desapareceu por completo uma ideia cimentadora. É como se toda a gente vivesse numa estalagem, preparando-se para fugir amanhã da Rússia. Todos vivem apenas para a sua abastança…
O que se qualifica em alguns homens como firmeza de carácter não é ordinariamente senão emperramento de opinião, incapacidade de progresso, ou imutabilidade da ignorância.
A paz do campo-santo é garantida pela incapacidade de os mortos a perturbarem.