Missa de Aniversário
Há um ano que os teus gestos andam
ausentes da nossa freguesia
Tu que eras destes campos
onde de novo a seara amadurece
donde Ă©s hoje?
Que nome novo tens?
Haverá mais singular fim de semana
do que um sábado assim que nunca mais tem fim?
Que ocupação é agora a tua
que tens todo o tempo livre Ă tua frente?
Que passos te levarão atrás
do arrulhar da pomba em nossos céus?
Que te acontece que nĂŁo mais fizeste anos
embora a mesa posta continue Ă tua espera
e lá fora na estrada as amoreiras tenham outra vez
florido?Era esta a voz dele assim Ă© que falava
dizem agora as giestas desta sua terra
que o viram passar nos caminhos da infância
junto ao primeiro voo das perdizesJá só na gravata te levamos morto àqueles caminhos
onde deixaste a marca dos teus pés
Apenas na gravata. A tua morte
deixou de nos vestir completamente
No verĂŁo em que partiste bem me lembro
pensei coisas profundas
É de novo verão.
Passagens sobre Infância
233 resultadosUma pessoa pode ter uma infância triste e mesmo assim chegar a ser muito feliz na maturidade. Da mesma forma, pode nascer num berço de ouro e sentir-se enjaulada pelo resto da vida.
PaixĂŁo Ăšnica
Quem me dera poder ver-te!
Ai! quem me dera dizer-te,
Que pude amar-te, e perder-te,
Mas olvidar-te… isso nĂŁo!
Que no ardor de outros amores,
Através de mil dissabores,
Senti vivas sempre as dores
Duma remota paixĂŁo.Com que dorida saudade
Penso nessa mocidade,
Nessa vaga ansiedade,
Que soubeste compreender!
E tu sĂł, sĂł tu soubeste,
Que, num mundo, como este,
Qual florinha em penha agreste,
Pode a flor da alma morrer.Orvalhaste-a quando ainda,
Ao nascer, singela e linda,
Respirava a esperança infinda,
Que consigo a infância tem.
Amparaste-a, quando o norte
Das paixões, soprando forte,
Lhe quiz dar rápida morte
Como à cândida cecem!E, depois, nuvem escura
Lá no céu desta ventura
Enlutou-me a aurora pura
Dos meus anos infantis.
Houve nesta vida um espaço,
Onde nunca dei um passo,
Em que não deixasse um traço
De paixões torpes e vis !E não tenho outra memória
Que me inspire altiva gloria,
Nem outro nome na historia
De meus delĂrios fatais.
Eu Ela e a Escrita
Eu ela e a escrita existimos desde o princĂpio. A escrita forma-se em mim, passa por ela e volta Ă minha pele num jogo sensual e Ăntimo. É um ser maleável aos gestos que executamos, vive e morre com os nossos impulsos. Quando se ausenta deixa sinais. Faz-nos confidĂŞncias da sua vida errante, elabora sentimentos que nĂŁo esperávamos que tivesse quando junta ao nosso, o seu instinto criativo. Assim, utilizo agora palavras que nunca pensei vir a escrever. Aceito-as porque as sei da espĂ©cie da personagem que habita connosco, conivente com os erros que cometemos.
Quando adolescente, passava o tempo a ler o dicionário, apercebendo-me da corrosĂŁo de algumas palavras, do seu poder destrutivo. Noutras havia sombra e um peso monstruoso. E as que ao tempo foram luminosas, irradiavam um brilho que se colou aos meus dedos. Eu gastava os dias a limpar-me dessa luz atĂ© nĂŁo haver em mim resĂduos de leitura. Descobria o esquecimento, onde o poema veio a ser abismo, outra vida onde o sorriso da morte teve muita importância. Amei a imperfeição do ser humano. Revisitei a infância e aquilo que em nĂłs Ă© real. NĂŁo soube prescindir da beleza.
Os Significados
Não sei como tudo começou: suponho
que havia uma figura que depois
se estilhaçou para formar um puzzle.
Mas se juntarem todas as peças
talvez nĂŁo haja nenhuma figura, e entĂŁo
de que origem intacta partiu tudo
o que depois se quebrou? É impossĂvel
fazer estilhaços de estilhaços sem uma
coerĂŞncia primeira, agora ausente.
Quando todas as peças se juntam
estaremos reduzidos ainda a uma peça
de uma figura maior, ou essa figura
é uma utopia pragmática, instrumental,
que permite algum sentido ?
Ó significados, para vós, na infância,
tinha um caderno.
Na infância, a vida apresenta-se como uma decoração teatral vista de longe; na velhice, como a mesma decoração, porém vista bem de perto.
Não me lembro de nenhuma necessidade da infância tão grande quanto a necessidade da proteção de um PAI.
A Vida e o Jogo
Quando a criança cresceu e abandonou os seus jogos, quando durante anos se esforçou psiquicamente por agarrar as realidades da vida com a seriedade desejada, pode acontecer que um dia se encontre de novo numa disposição psĂquica que volta a apagar esta oposição entre o jogo e a realidade. O homem adulto lembra-se da grande seriedade com que se entregava aos jogos infantis e acaba por comparar as suas ocupações por assim dizer graves com esses jogos dos tempos da infância: liberta-se entĂŁo da opressĂŁo demasiado pesada da vida e conquista a fruição superior do humor.
A humanidade que deveria ter seis mil anos de experiência, recai na infância a cada geração.
Se não nascermos de novo, se não tornaremos a olhar a vida com inocência e o entusiasmo da infância, então viver não terá mais sentido.
Carta Ă Minha Filha
Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausĂŞncia
de razĂŁo nessa cadeia em sonho de novelo.Hoje, nesta noite tĂŁo quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo
e que o teu tempo ao meu se seguirá.Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda Ă s vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas – Ă© sempre
olhar-te amor. Mas Ă© tambĂ©m desordenar-te Ă
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontĂnua
de mentiras, em carinho de verso.E o que queria dizer-te Ă© dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.
As MĂŁes?
Fossem estes dias uma fonte que
brotasse.
Manchas de azul, um rasto de neve em pleno céu,
colmeias,
mel, uma exaltação de asas.Mas é assim:
metais que revestem a pele e as armaduras,
bronze, ferro, formas que perduram, malhas, ameaçados
tecidos que nos moldam —
quem borda ainda,
quem se atreve Ă minĂşcia das rendas?As mĂŁes?
elas vinham cedo, eram como um rumor de levadas,
atravessando as terras.
Eram as mesmas mĂŁos trabalhando sedas, afagos e
uma conspiração de cores e agulhas frias,
mĂŁes de silĂŞncio bordando a treva e o sono, a longa
noite dos filhos.Herdei uma beleza amarga,
o temor das sombras, dos relâmpagos que embatiam
na infância,
no dorso das colinas,
no coração mais triste.Um estrondo de muralhas, diques, batalhas que
deflagram,
uma ciĂŞncia aterradora:
não quero outra véspera de espadas, a coroação do
sangue,
patĂbulos onde a cabeça se expande,
rolando como a poeira e os astros,
repercutindo como um sino no choro das mĂŁes.NĂŁo quero um bordado de horas antigas,
Pensamentos nĂŁo Acabados
Tal como nĂŁo sĂł a idade viril, mas tambĂ©m a juventude e a infância tĂŞm um valor em si e nĂŁo devem de modo algum ser consideradas somentes como passagens e pontes, assim tambĂ©m os pensamentos nĂŁo acabados tĂŞm o seu valor. NĂŁo se deve por isso, atormentar um poeta com uma subtil interpretação e divertir-se com a incerteza do seu horizonte, como se o caminho para vários pensamentos ainda estivesse aberto. Está-se no limiar; espera-se como no desenterramento de um tesouro: Ă© como se devesse estar iminente um feliz achado de pensamento profundo. O poeta antecipa qualquer coisa do prazer que o pensador tem, ao encontrar uma ideia fundamental, e, com isso, torna-nos cobiçosos, de modo que nĂłs tentamos apanhá-la; esta, porĂ©m, passa, esvoaçando, sobre a nossa cabeça e mostra as mais belas asas de borboleta… e, contudo, escapa-nos.
Talvez a geografia pessoal seja apenas a lembrança da infância, ou um desejo de voltar no tempo.
Onde o Homem nĂŁo Chega
Onde o Homem nĂŁo chega tudo Ă© puro,
dessa pureza da primeira infância.
Tudo é medida, ritmo, concordância,
tudo é claro e auroral: a noite, o escuro.E nem o vendaval é dissonância
mas promessa de sol e de futuro.
Quem levantou esse primeiro Muro
que do perto fez longe, ergueu distância?Foi o Homem, com suas mãos de barro,
com suas mĂŁos perjuras, fel e sarro
de inútil sofrimento e vil prazer.Não é tarde, porém: sacode a lama,
ergue o facho, levanta a Deus a chama
e recomeça: acabas de nascer.
A vida humana não tem só um nascimento, só uma infância, é feita de vários renascimentos, de várias infâncias.
Feliz, feliz Natal, que nos traz de volta as ilusões da infância, recorda ao idoso os prazeres da juventude e transporta o viajante de volta à própria lareira e à tranqüilidade do seu lar.
O Saber Oral
O novo saber que o género humano vai adquirindo não compensa o saber que se propaga apenas pela transmissão oral directa, o qual, uma vez perdido, nunca mais se pode readquirir e retransmitir: nenhum livro pode ensinar aquilo que apenas se pode aprender na infância, se se entrega o ouvido e o olho atentos ao canto e ao voo dos pássaros e se se encontra então alguém que pontualmente lhes saiba dar um nome.
Nunca esqueci os dias da minha infância em que costumávamos juntar-nos à roda dos mais velhos da comunidade para escutar o tesouro da sua sabedoria e experiência.
Pobre Velha MĂşsica!
Pobre velha mĂşsica!
NĂŁo sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.Recordo outro ouvir-te,
NĂŁo sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? NĂŁo sei:
Fui-o outrora agora.