Dificuldade de Prever o Comportamento de qualquer Pessoa, o Nosso Inclusivamente
Sendo variável o nosso “eu”, que é dependente das circunstâncias, um homem jamais deve supor que conhece outro. Pode somente afirmar que, não variando as circunstâncias, o procedimento do indivíduo observado não mudará. O chefe de escritório que já redige há vinte anos relatórios honestos, continuará sem dúvida a redigi-los com a mesma honestidade, mas cumpre não o afirmar em demasia. Se surgirem novas circunstâncias, se uma paixão forte lhe invadir a mente, se um perigo lhe ameaçar o lar, o insignificante burocrata poderá tornar-se um celerado ou um herói.
As grandes oscilações da personalidade observam-se quase exclusivamente na esfera dos sentimentos. Na da inteligência, elas são muito fracas. Um imbecil permanecerá sempre imbecil.
As possíveis variações da personalidade, que impedem de conhecermos a fundo os nossos semelhantes, também obstam a que cada qual se conheça a si próprio. O adágio “Nosce te ipsum” dos antigos filósofos constitui um conselho irrealizável. O “eu” exteriorizado representa habitualmente uma personalidade de empréstimo, mentirosa. Assim é, não só porque atribuímos a nós mesmos muitas qualidades e não reconhecemos absolutamente os nossos defeitos, como também porque o nosso “eu” contém uma pequena porção de elementos conscientes, conhecíveis em rigor, e, em grande parte,
Passagens sobre Intelectuais
221 resultadosNão há pensamento onde não há liberdade. Os nossos oito séculos de opressão e de intolerância deram isto: um povo cujos intelectuais raciocinam sempre a fazer figas.
Os Herdeiros da Humanidade
As gerações passadas puderam acreditar que o progresso intelectual e o da civilização não eram senão frutos do trabalho dos seus antepassados, frutos esses que herdavam e lhes permitiam uma vida mais fácil e mais bela. Mas as experiências mais duras dos nossos tempos mostram que isso era uma ilusão nefasta.
Vemos que é preciso fazer os maiores esforços para que essa herança não se transforme em maldição, mas sim em bênção para a Humanidade. Se outrora um homem já tinha valor, do ponto de vista social, quando se libertava, em certa medida, do egoísmo pessoal, exige-se-lhe hoje que vença também o egoísmo nacional e de classe. Pois só então, quando se tiver elevado a esse ponto, poderá contribuir para a melhoria do destino da comunidade humana.
No que respeita a essa exigência primordial do nosso tempo, os habitantes dos Estados mais pequenos estão numa situação relativamente mais favorável do que os cidadãos dos grandes Estados, por se encontrarem estes últimos política e economicamente expostos às tentações de prepotência bruta. O acordo entre a Holanda e a Bélgica, único ponto luminoso na evolução europeia nos últimos tempos, faz esperar que caberá às nações pequenas um papel preponderante na libertação do jugo degradante do militarismo,
Escrever com Intuição e Instinto
Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que, agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade. Além do que leio pouco: só li muito, e li avidamente o que me caísse nas mãos, entre os treze e os quinze anos de idade. Depois passei a ler esporadicamente, sem ter a orientação de ninguém. Isto sem confessar que – dessa vez digo-o com alguma vergonha – durante anos eu só lia romance policial. Hoje em dia, apesar de ter muitas vezes preguiça de escrever, chego de vez em quando a ter mais preguiça de ler do que de escrever.
Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros uma profissão, nem uma carreira. Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis.
O Que Liga os Homens na Vida
O que mais estreitamente liga os homens na vida não são forças puras e generosas. Se assim fosse, não se teria queimado nem ofendido tanta gente superior que andou no mundo. O óptimo moral e intelectual da humanidade é um compromisso entre o bom e o mau, entre o limpo e o sujo, entre a Quaresma e o Carnaval. Por isso, quem traz uma chama limpa a alumiá-lo, e teima em segui-la, não pode ser entendido nem tolerado por aqueles que ou não precisam de luz, como as toupeiras, ou se remedeiam com um simples morrão de candeia.
É certo que os calendários civis e religiosos apenas perpetuam heróis e santos. Mas, olhando bem, vê-se que é sempre a mesma história. Queima-se ou crucifica-se primeiro o herói ou o santo, joga-se aos dados a sua túnica, e, quando dele não resta nem a sombra das cinzas, aparece um centurião qualquer a dizer: «Verdadeiramente este homem era filho de Deus».
O que, em última instância, importa para o nosso bem-estar é aquilo que preenche e ocupa a consciência. No geral, toda a ocupação puramente intelectual proporcionará, ao espírito capaz de executá-la, muito mais do que a vida real com as suas alternâncias constantes entre sucesso e fracasso, acompanhados de abalos e tormentos.
Em temas intelectuais, siga tua razão tanto quando possas, sem temer nennhum outro tipo de consideração. E negativamente: em temas intelectuais, não finjas que é certa nenhuma conclusão que não tenha sido demonstrada ou seja demonstrável.
O Crédulo
A fé pode ser definida em resumo como uma crença ilógica na ocorrência do improvável. Ela contém um saber patológico; extrapola o processo intelectual normal e atravessa o viscoso domínio da metafísica transcedental. O homem de fé é aquele que simplesmente perdeu (ou nunca teve) a capacidade para um pensamento claro e realista. Não que ele seja uma mula; é, na realidade, um doente. Pior ainda, é incurável, porque o desapontamento, sendo essencialmente um fenómeno objetivo, não consegue afectar a sua enfermidade subjectiva. A sua fé apodera-se da virulência de uma infecção crónica. O que ele diz, em suma, é: “Vamos confiar em Deus, Aquele que sempre nos enganou no passado”.
O Poema Pouco Original do Medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveisVai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidosO medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a delesVai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiadosAh o medo vai ter tudo
tudo(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)*
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratosSim
a ratos
O mundo intelectual deleita a poucos, o material agrada a todos.
Instinto de Sociabilidade
O instinto de sociabilidade de cada um está na proporção inversa da sua idade. A criancinha solta gritos de medo e de dor, lamentando ter sido deixada sozinha por alguns minutos. Para jovens rapazes, estar sozinho é uma grande penitência. Os adolescentes reunem-se com facilidade: só os mais nobres e mais dotados de espírito já procuram, às vezes, a solidão. Contudo, passar um dia inteiro sozinhos ainda lhes é penoso. Para o homem adulto, todavia, isso é fácil: ele consegue passar bastante tempo sozinho, e tanto mais quanto mais avança nos anos. O ancião, único sobrevivente de gerações desaparecidas, encontra na solidão o seu elemento próprio, em parte porque já ultrapassou a idade de sentir os prazeres da vida, em parte porque já está morto para eles. Entretanto, em cada indivíduo, o aumento da inclinação para o isolamento e a solidão ocorrerá em conformidade com o seu valor intelectual.
Pois tal tendência, como dito, não é puramente natural, produzida directamente pela necessidade, mas, antes, só um efeito da experiência vivida e da reflexão sobre ela, sobretudo da intelecção adquirida a respeito da miserável índole moral e intelectual da maioria dos homens. O que há de pior nesse caso é o facto de as imperfeições morais e intelectuais do indivíduo conspirarem entre si e trabalharem de mãos dadas,
Pretensos Graus de Verdade
Uma das frequentes conclusões falsas é esta: como alguém é verdadeiro e sincero para connosco, pois diz a verdade. Assim, a criança acredita nos juízos dos pais, o cristão nas afirmações do fundador da Igreja. Do mesmo modo, não se quer admitir que tudo aquilo, que os homens, com sacrifício da felicidade e da vida, defenderam em séculos anteriores, nada mais era do que erros: talvez se diga que tenham sido graus da verdade. Mas, no fundo, acha-se que se alguém acreditou honestamente em alguma coisa e combateu e morreu pela sua crença, seria, contudo, por de mais injusto se, efectivamente, apenas um erro o tivesse inspirado. Um caso assim parece contradizer a eterna justiça; por isso, o coração das pessoas sensíveis decreta constantemente contra a sua cabeça a seguinte norma: entre acções morais e juízos intelectuais tem de haver um nexo necessário. Infelizmente, não é assim, pois não há justiça eterna.
Não fazer absolutamente nada é a coisa mais difícil do mundo, a mais difícil e a mais intelectual.
O grande defeito dos intelectuais portugueses tem sido sempre o só lidarem com intelectuais. Vão para o povo. Vejam o povo. Vejam como eles reflectem, como ele entende a vida, como eles gostariam que a vida fosse para eles.
Na vida intelectual, o passado, assim como é centro poderoso de resistência, é débil princípio de atividade.
A Vulgaridade Intelectual
Hoje, (…) o homem médio tem as «ideias» mais taxativas sobre quanto acontece e deve acontecer no universo. Por isso perdeu o uso da audição. Para quê ouvir, se já tem dentro de si o que necessita? Já não é época de ouvir, mas, pelo contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir. Não há questão de vida pública em que não intervenha, cego e surdo como é, impondo as suas «opiniões».
Mas não é isto uma vantagem? Não representa um progresso enorme que as massas tenham «ideias», quer dizer, que sejam cultas? De maneira alguma. As «ideias» deste homem médio não são autenticamente ideias, nem a sua posse é cultura. A ideia é um xeque-mate à verdade. Quem queira ter ideias necessita antes de dispor-se a querer a verdade, e aceitar as regras do jogo que ela imponha. Não vale falar de ideias ou opiniões onde não se admite uma instância que as regula, uma série de normas às quais na discussão cabe apelar. Estas normas são os princípios da cultura. Não me importa quais são. O que digo é que não há cultura onde não há normas. A que os nossos próximos possam recorrer.
Não há cultura onde não há princípios de legalidade civil a que apelar.
A sociabilidade também pode ser considerada como um mútuo aquecimento intelectual dos homens, parecido ao produzido corporalmente quando, em ocasião de frio intenso, eles se juntam bem perto uns dos outros. Mas quem tem bastante calor intelectual em si não precisa de tal agrupamento.
Para que um homem possa ser absolutamente intelectual, tem que ser um pouco imoral.
Objectivo de Fim de Vida
Ainda sou útil, apesar da idade avançada. O meu cérebro não perdeu o vigor. Sinto que absorveu muito e que nunca esteve tão bem alimentado. É errado pensar que a velhice é um declive por onde vamos caindo: muito pelo contrário, subimos, e a passos largos, surpreendentes. O trabalho intelectual faz-se tão rapidamente como nas crianças o trabalho físico. Não é que não nos aproximemos do fim da vida, mas fazemo-lo como se fosse um objectivo, e não o derradeiro e fatal baixio onde encalharemos para sempre.
Sou optimista por natureza, e pessimista por convicção intelectual.