Primavera
O sol vae esmolando os campos com bôdos de oiro.
A pastorinha aquecida vae de corrida a mendigar a sombra do chorão corcunda, poeta romantico que tem paixão p’la fonte.
Espreita os campos, e os campos despovoados dão-lhe licença para ficar núa. Que leves arrepios ao refrescar-se nas aguas! Depois foi de vez, meteu-se no tanque e foi espojar-se na relva, a seccar-se ao sol. Mas o vento que vinha de lá das Azenhas-do-Mar, trazia peccados
comsigo. Sentiu desejos de dar um beijo no filho do Senhor Morgado. E lembrou-se logo do beijo da horta no dia da feira. Fechou os olhos a cegar-se do mau pensamento, mas foi lembrar-se do
proprio Senhor Morgado á meia noite ao entrar na adega. Abanou a fronte para lhe fugir o peccado, mas foi dar comsigo na sachristia a deixar o Senhor Prior beijar-lhe a mão, e depois a testa… porque Deus é bom e perdôa tudo… e depois as faces e depois a bocca e depois… fugiu… Não devia ter fugido… E agora o moleiro, lá no arraial, bailando com ella e sem querer, coitado, foi ter ao moinho ainda a bailar com ella. E lembra-se ainda –
Interrogativos
2230 resultadosPor Cima Destas Águas, Forte E Firme
Por cima destas águas, forte e firme,
irei por onde as sortes ordenaram,
pois, por cima de quantas me choraram
aqueles claros olhos, pude vir me.Já chegado era o fim de despedir me,
já mil impedimentos se acabaram,
quando rios de amor se atravessaram
a me impedir o passo de partir me.Passei os eu com ânimo obstinado,
com que a morte forçada e gloriosa
faz o vencido já desesperado.Em que figura, ou gesto desusado,
pode já fazer medo a morte irosa,
a quem tem a seus pés rendido e atado?
Somos Nós a Verdade do que Existe
Somos nós a verdade do que existe,
somos nós, meu amor.
A nossa vida breve ampara a vida
das coisas, que persiste.De que valem os vértices dourados
dos montes, se os não virmos?
Águas, campos e verdes sossegados
que a fina brisa alisa?
É Isto o Amor
Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim,
A Caridade como Dever
Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo porém que neste caso uma tal acção, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras inclinações, por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que efectivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequentemente honroso e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais acções se pratiquem, não por inclinação, mas por dever.
Admitindo pois que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo desgosto pessoal que apaga toda a compaixão pela sorte alheia, e que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos desgraçados, mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava bastante ocupado com a sua própria; se agora, que nenhuma inclinação o estimula já, ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e praticasse a acção sem qualquer inclinação,
Ciúme
Vão decorrendo as horas, vão-se os dias,
Mas como outrora ela não vem. Ciúme?
Olho em redor de mim, meu pobre lume,
São tudo cinzas mortas, cinzas frias.Bateu o relógio as horas do costume,
E tu não vens, já não te vejo mais…
Dos nossos dias, vivos, triunfais,
Só restam coisas mortas e sombrias.Não sei que mágoa e dor meus olhos cobre.
Sinto que alguém morreu dentro de mim.
Bate o relógio as horas, como um dobre,
A dizer, a dizer: tudo tem fim.Vai a tarde a morrer, e um frio imenso
Cai sobre mim como um Pólo de gelo.
Junto de ti, quem estará, eu penso,
A beijar, em silêncio, o teu cabelo?Nessas tardes, assim, vagas, sensuais,
Eu não quero pensar um só momento.
Se foram minhas, hoje são dos mais…
Deixo-as morrer no frio esquecimento.
A um Nariz Grande
Hoje espero, nariz, de te assoar,
Se para te chegar a mão me dás,
Ainda que impossível se me faz
Chegar a tanto eu como assoar-te,
Porque é chegar às nuvens o chegar-te.
Das musas a que for mais nariguda
Manda-lhe que me acuda,
Que se a fonte
De Pégaso é verdade está no monte,
O mais alto de todos em ti está
Porque monte tão alto não no há.Falta o saber, nariz, para o louvor
De que és merecedor.
Que hei-de dizer?
Para espantares tu hão-te de ver,
Porque nunca se pode dizer tanto
Que faça como tu tão grande espanto.
És tão grande, nariz, que há opiniões,
E prova-o com razões
Certo moderno,
Que em comprimento és, nariz, eterno,
Porque ainda que princípio te soubemos,
Notícia de teu fim nunca tivemos.Cuido que sem narizes, por mostrar
Seu poder em acabar,
Sua grandeza,
Deixou gente sem conto a natureza,
Que assoas, Gabriel, quando te assoas,
Os narizes de mais de mil pessoas.Aos mais narizes dás o ser que tem,
X
Eu ponho esta sanfona, tu, Palemo,
Porás a ovelha branca, e o cajado;
E ambos ao som da flauta magoado
Podemos competir de extremo a extremo.Principia, pastor; que eu te não temo;
Inda que sejas tão avantajado
No cântico amebeu: para louvado
Escolhamos embora o velho Alcemo.Que esperas? Toma a flauta, principia;
Eu quero acompanhar te; os horizontes
Já se enchem de prazer, e de alegria:Parece, que estes prados, e estas fontes
Já sabem, que é o assunto da porfia
Nise, a melhor pastora destes montes.
Menina Dos Olhos Verdes
Ó! menina dos olhos verdes, que à tardinha
estás sempre à janela à hora de minha volta…
Que cousas pensarás? Que fazes aí sozinha?
Por que regiões de sonho a tua alma se solta?Sempre que dobro a esquina encontro o teu olhar
e o teu claro sorriso adolescente ainda…
Habituei-me a te ver – e és tão criança e tão linda
que sem querer, também sorrio ao te encontrar…Menina dos olhos verdes… A quem esperas
com teus olhos gritando a cor das primaveras?
Queres versos? Pois bem, estes são teus, recolhe-os!Escrevi-os pensando em ti, tímida e bela,
– a menina dos olhos verdes da janela
debruçada à janela verde dos meus olhos!
Não se Ama Alguém Senão pelas Qualidades Aparentes
Um homem que se põe à janela para ver quem passa, se eu passar, poderei dizer que ele se pôs lá para me ver? Não, pois ele não pensa em mim em particular. Mas aquele que ama alguém por causa da sua beleza, ama-o? Não; porque a varíola, que matará a beleza sem matar a pessoa, fará com que ele deixe de a amar.
E se me adiam pelo meu juízo, pela minha memória, amam-me, a mim? Não; porque eu posso perder estas qualidades sem me perder a mim mesmo. Onde está pois este eu, se não está nem no corpo nem na alma? E como amar o corpo ou a alma, senão por essas qualidades que não são o que faz o eu, visto que podem perecer? Pois, amar-se-á a substância da alma de uma pessoa abstractamente e as qualidades que lá estiverem? Isso não pode ser e seria injusto. Logo não se ama nunca a pessoa, mas somente as qualidades. Portanto, que não se riam mais daqueles que se fazem honrar pelos cargos e ofícios, pois não se ama ninguém senão pelas qualidades aparentes.
Descalça Vai para a Fonte
Descalça vai para a fonte,
Leanor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição,
Saia de cor de limão,
Beatilha soqueixada;
Cantando de madrugada,
Pisa as flores na verdura:
Vai fermosa, e não segura.Leva na mão a rodilha,
Feita da sua toalha;
Com uma sustenta a talha,
Ergue com outra a fraldilha;
Mostra os pés por maravilha,
Que a neve deixam escura:
Vai fermosa, e não segura.As flores, por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem cor,
E de vergonha com graça;
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura:
Vai formosa, e não segura.Não na ver o Sol lhe val,
Por não ter novo inimigo;
Mas ela corre perigo,
Se na fonte se vê tal;
Descuidada deste mal,
Se vai ver na fonte pura:
Vai fermosa, e não segura.Também nós imos já perto da Fonte;
E, Em quanto no cantar nos entretemos,
Temo que a vinda cá pouco nos monte.
Alma que Foste Minha
Alma que foste minha,
desprendida de meu corpo e de meu espírito,
leque de palma sem raízes, sem tormentas,
que género esta noite te distingue,
que metro te organiza, por que dogmas,
que signos te orientam — rumo a quê?— Mestre, qual é o sexo das almas?
Desmarcada e sem cordas
alma que foste minha
sem cravos e sem espinhos
que trigo milenar te mata a fome
divina
que pirâmide encerra tua essência
nudíssima
que corpo te defende de ti mesma
do espaço
que idade, quantas eras, contra o tempo
alma anárquica
desmarcada e sem cravos
sem precisão de estar
ou de ficar
— Que te vale Bizâncio?
ou de mudar
ou de fazer, ou de ostentar
— Que te vale este verso?
apoética, absurda
como chamar-te alma, de quê, quando,
para quê, alma de morto, para onde?
Controlar a Timidez
Nunca consegui controlar a timidez. Quando tive que enfrentar em carne viva a incumbência que nos deixou o pai errante, aprendi que a timidez é um fantasma invencível. De cada vez que tinha que solicitar um crédito, mesmo dos combinados de antemão em lojas de amigos, demorava horas em redor da casa, reprimindo a vontade de chorar e as contracções da barriga, até que me atrevia por fim, com as mandíbulas tão apertadas que não me saía a voz. Havia sempre algum comerciante sem coração para me atrapalhar ainda mais: «Miúdo parvo, não se pode falar com a boca fechada.» Mais de uma vez regressei a casa com as mãos vazias e uma desculpa inventada por mim. Mas nunca mais tornei a ser tão desgraçado como da primeira vez que quis falar pelo telefone na loja da esquina. O dono ajudou-me com a operadora, pois ainda não existia o serviço automático. Senti o sopro da morte quando me deu o auscultador. Esperava uma voz serviçal e o que ouvi foi o latido de alguém que falava no escuro ao mesmo tempo que eu. Pensei que o meu interlocutor também não me ouvia e levantei a voz tanto quanto pude. O outro,
A Actualidade em Poesia
Uma coisa é poesia actual, outra coisa é actualidade em poesia. A actualidade em poesia compreende um tempo específico, que não só não é o tempo subordinado ao espaço no qual o poeta se move, como até entra em conflito com este.
Fazer poesia actual não é escrever versos destinados a terem êxito na actualidade representada pelo público e pela critica, porque esta é o atraso de um tempo de que o poeta é o avanço. Suspeito é o poeta sempre que agradavelmente afeiçoa os seus versos a uma comum sensibilidade literária. Não estou fazendo o elogio da poesia obscura ou ambiciosamente original. O gosto literário de uma época pode ser precisamente a obscuridade e a originalidade. É o que acontece com a nossa. E neste caso originalidade como recurso é poeticamente estéril, porque não fascina mas apenas satisfaz. Nada menos original do que a acomodatícia originalidade da poesia dos nossos dias e também nada menos actual por isso mesmo. Quer um exemplo? A última poesia feita com excrescências do Surrealismo execrado pelos seus parasitas. Nalguns casos é uma sufocada montagem de imagens achadas no cesto dos papéis do Surrealismo. Proclama-se uma renovação morfológica investindo de maior poder a palavra,
Dois Rumos
Mentir, eis o problema:
minto de vez em quando
ou sempre, por sistema?Se mentir todo dia,
erguerei um castelo
em alta serraniacontra toda escalada,
e mais ninguém no mundo
me atira seta ervada?Livre estarei, e dentro
de mim outra verdade
rebrilhará no centro?Ou mentirei apenas
no varejo da vida,
sem alívio de penas,sem suporte e armadura
ante o império dos grandes,
frágil, frágil criatura?Pensarei ainda nisto.
Por enquanto não sei
se me exponho ou resisto,se componho um casulo
e nele me agasalho,
tornando o resto nulo,ou adiro à suposta
verdade contingente
que, de verdade, mente.
África
Na partilha das sáfaras conquistas
Desta Líbia de mouros rancorosos,
O Deserto foi dado aos Poderosos
E o Oásis, florido e mínimo, aos Artistas.E os felizes, quais são? Os mil sofistas
Da Ventura, a pedir, de olhos gulosos,
Terra e mais terra? Ou o que limita os gozos
E em sete palmos acomoda as vistas?Certo, não sereis vós, ó Donatários
Do alvo Deserto, que velais, em guerra,
A áurea carga dos vossos dromedários.Mas, tu, ó Poeta, que, por onde fores,
Teus sete palmos hás de achar na terra
Abrindo em trigo, rebentado em flores!
Carpe diem
Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? “Não”, dizes, “nada me obrigará
à renúncia de mim próprio – nem esse olhar
que me oforece o leito profundo da sua imagem!”
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.
Amor e Justiça
Porque é que se sobrestima o amor em detrimento da justiça e se diz dele as coisas mais lindas, como se ele fosse uma entidade muito superior àquela? Pois não é ele visivelmente mais estúpido que aquela? Por certo, mas, precisamente por isso, tanto mais agradável para todos. Ele é estúpido e possui uma rica cornucópia; tira desta os seus presentes e distribui-os a qualquer pessoa, mesmo que esta não os mereça e até nem sequer lhe agradeça por isso. É imparcial como a chuva, a qual, segundo a Bíblia e a experiência, não só encharca o injusto até aos ossos, mas também, em determinadas circunstâncias, o justo.
Último Sonho De “soror Saudade
Àquele que se perdera no caminho…
Soror Saudade abriu a sua cela…
E, num encanto que ninguém traduz,
Despiu o manto negro que era dela,
Seu vestido de noiva de Jesus.E a noite escura, extasiada, ao vê-la,
As brancas mãos no peito quase em cruz,
Teve um brilhar feérico de estrela
Que se esfolhasse em pétalas de luz!Soror Saudade olhou…Que olhar profundo
Que sonha e espera?…Ah! como é feio o mundo,
E os homens vãos! — Então, devagarinho,Soror Saudade entrou no seu convento…
E, até morrer, rezou, sem um lamento,
Por Um que se perdera no caminho!…
Quando aumentam os bens, aumentam aqueles que os comem
Quando aumentam os bens, aumentam aqueles que os comem. Que aproveitam ao seu dono senão para os ver com os seus olhos?