Lembrar-me ainda e saber que vou esquecer. Essa é a justificação que dou a mim próprio para escrever estas palavras. Um dia, irei precisar delas para voltar a lembrar-me.
Passagens de JosĂ© LuĂs Peixoto
226 resultadosO luto Ă©-nos pesado nos ombros, amigo, mas quem foge dele será a sua maior vĂtima.
Todos temos um lugar onde a vida se acerta. Cada mundo tem um centro. O meu lugar nĂŁo Ă© melhor do que o teu, nĂŁo Ă© mais importante. Os nossos lugares nĂŁo podem ser comparados porque sĂŁo demasiado Ăntimos. Onde existem, sĂł nĂłs os podemos ver. Há muitas camadas de invisĂvel sobre as formas que todos distinguem. NĂŁo vale a pena explicarmos o nosso lugar, ninguĂ©m vai entendĂŞ-lo. As palavras nĂŁo aguentam o peso dessa verdade, terra fĂ©rtil que vem do passado mais remoto, nascente que se estende atĂ© ao futuro sem morte.
Os meus olhos são testemunhas da manhã através da sua cor. É tão importante que cada pessoa saiba o nome da cor dos seus próprios olhos. Não é preciso enredar-se em definições, nomes inventados por decoradores ou por fabricantes de tintas, basta um bom espelho, limpo.
A minha mĂŁe Ă© uma espĂ©cie de sol, ou de morte, Ă© o horizonte, esse Ă© o tamanho da sua realidade. (…) A minha mĂŁe existe em tudo, Ă© infinita.
Luta de Classes
Não contem comigo para defender o elitismo cultural. Pelo contrário, contem comigo para rebentar cada detalhe do seu preconceito.
A cultura Ă© usada como sĂmbolo de status por alguns, alfinete de lapela, botĂŁo de punho. A raridade Ă© condição indispensável desse exibicionismo. SĂł pertencendo a poucos se pode ostentar como diferenciadora. Essa colecção de sĂmbolos Ă© descrita com pronĂşncia mais ou menos afectada e tem o objectivo de definir socialmente quem a enumera.
Para esses indivĂduos raros, a cultura Ă© caracterizada por aqueles que a consomem. Assim, convĂ©m nĂŁo haver misturas. Conheço melhor o mundo da leitura, por isso, tomo-o como exemplo: se, no inĂcio da madrugada, uma dessas mulheres que acorda cedo e faz limpeza em escritĂłrios for vista a ler um determinado livro nos transportes pĂşblicos, os snobs que assistam a essa imagem sĂŁo capazes de enjeitá-lo na hora. ComeçarĂŁo a definir essa obra como “leitura de empregadas de limpeza” (com muita probabilidade utilizarĂŁo um sinĂłnimo mais depreciativo para descrevĂŞ-las).
Este exemplo aplica-se em qualquer outra área cultural que possa chegar a muita gente: mĂşsica, cinema, televisĂŁo, etc. Aquilo que mais surpreende Ă© que estes “argumentos”, esta forma de falar e de pensar seja utilizada em meios supostamente culturais por indivĂduos supostamente cultos,
É antigo o desejo de dizer “estive aqui”, a necessidade de dizer “existo”, esse gesto que se pode fazer de tantas formas.
Fomos crianças e, depois, transformámo-nos em nĂłs. Com essa experiĂŞncia, quando olhamos para elas, acreditamos que tambĂ©m elas se transformarĂŁo em nĂłs. VĂŞ-las, sabendo isso e sabendo que elas ignoram essa certeza, faz com que sejamos portadores de um segredo que preferĂamos nĂŁo conhecer, que nos afasta das crianças quando tudo o que querĂamos era ser crianças, voltar a merecer um pouco dessa pureza, desse descanso.
Somos ruĂnas. Somos o que foi uma casa com gente viva e crianças a crescer, fumo na chaminĂ©, janelas abertas nas noites de verĂŁo, e hoje Ă© tijolos espalhados na terra e arredondados pela chuva, telhas partidas na terra, caliça e terra espalhados no soalho podre de madeira, e ervas a crescer entre as tábuas do soalho. Alguma vez teremos sido uma coisa sĂłlida, uma casa viva?
Penso: talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima de outros.
Quando começo a anotar as minhas preocupações, tão importantes apenas para mim, já me esqueci de tudo: os segredos esconderam-se por trás de um muro.
A juventude é uma das condições mais arrogantes que se pode experimentar. Isto porque, actualmente, faz parte da própria noção de juventude não perceber a sua extrema transitoriedade. Todos nos dirgimos para a velhice.
Nunca Me Tinha Apaixonado Verdadeiramente
Escrevi atĂ© o princĂpio da manhĂŁ aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pĂŞlo dos gatos. O sol a chegar Ă escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silĂŞncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercĂcio, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhĂŁ apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.
Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois,
Na Leitura e na Escrita Encontramo-nos Todos naquilo que Temos de Mais Humano
A escrita, ou a arte, para ser mais abrangente, cumpre funções que mais nenhuma área consegue cumprir. (…) Sinto que há poucas experiĂŞncias tĂŁo interessantes como quando se lĂŞ um livro e se percebe “já senti isto, mas nunca o tinha visto escrito”, procurar isso, ou procurar escrever textos que façam sentir isso, Ă© uma das minhas buscas permanentes. Trata-se de ordenar, de esquematizar, nĂŁo sĂł sentimentos como ideias que temos de uma forma vaga mas que entendemos melhor quando os vemos em palavras. Trata-se tambĂ©m de construir empatia: atravĂ©s da leitura temos oportunidade de estar na pele de outras pessoas e de sentir coisas que nĂŁo fazem parte da nossa vida, mas que no momento em que lemos conseguimos perceber como Ă©. E isso faz-nos ser mais humanos. Na leitura e na escrita encontramo-nos todos naquilo que temos de mais humano.
Há muitas coisas que percebo que nĂŁo sou, mas dizer exactamente o que sou nĂŁo consigo. Tento, dia a dia, ganhar o tĂtulo de ser uma pessoa. E já nĂŁo Ă© pouco.
Aquilo que vivi é um presente embrulhado em palavras, nitidez de um lado e de outro, caminho até ao centro de alguma coisa ou de alguém, eu. Aquilo que vivi é a oferta única de um sorriso que não precisa de explicação.
O Amor Ă© Muito DifĂcil
Penso que o amor Ă© muito difĂcil. Existem muitos obstáculos a que possa ser o absoluto que Ă©. A palavra amor Ă© uma palavra muito gasta, muito usada, e muitas vezes mal usada, e eu quando falo de amor faço-o no sentido absoluto… há uma sĂ©rie de outros sentimentos aos quais tambĂ©m se chama amor e que nĂŁo o sĂŁo. No amor Ă© preciso que duas pessoas sejam uma e isso nĂŁo Ă© fácil de encontrar. E, uma vez encontrado, nĂŁo Ă© fácil de fazer permanecer.
Tudo Ă© possĂvel, nada Ă© impossĂvel. NĂŁo deixes que te armadilhem de cálculos e labirintos. SĂŁo demasiado fáceis de construir. Quando mal entendidos, sĂŁo máquinas de guerra.
Podemos ter muitas palavras para dizer uma coisa que aparentemente é a mesma, mas a verdade é que cada um a diz de uma forma diferente. É por isso que as possibilidades de reprodução do mundo pelas palavras são tantas.
Num mundo imperfeito, não há ninguém que esteja sempre certo. Da mesma maneira, ninguém está sempre errado.