Como qualquer ferramenta, também a tristeza tem um uso próprio. Há campos que só conhecem a abundância depois dessa lavoura.
Passagens de JosĂ© LuĂs Peixoto
226 resultadosAs crianças, atentas ao presente, agora-agora, conseguem transformar tempo comum em férias. Eu, ao deixar de saber como fazê-lo, ganhei a capacidade de observá-lo.
O futuro é o grande enigma. É a luz que cega, o sol. Mas, como com o sol, é necessário e saudável que se abram as janelas, que se respire, que se fechem os olhos e se sinta na pele.
O corpo do rio agita-se lentamente. Todo o seu corpo é de água. O rio é sempre jovem. Podem passar séculos. Pode passar toda a eternidade. O rio é sempre jovem.
Era nesse momento tão grande que ambos se entregavam para a vida, sem olhar para trás ou pensar um pouco, ambos se entregavam um ao outro para a vida, porque, a partir desse momento grande, toda a vida seria assim natural, inexplicável e grandiosa.
Os segredos passam por qualquer fresta, sĂŁo mais fluĂdos do que a água, mais informes do que o ar. Podemos fazer tudo para guardar um segredo, mas ele acaba por encontrar caminho para se esvair.
Faço perguntas às minhas próprias dúvidas e lembro-me de um filme antigo quando percebo que não respondem: silêncio a preto e branco.
Há tantos mundos quantas as maneiras de o olhar e, por consequência, de o entender. Isto é muito evidente quando regresso ao meu quarto de infância e adolescência, aquele onde, com catorze anos, me deitava a pensar, a imaginar. Hoje, se me deito nessa cama, não tenho o mesmo tempo. Se me aproximo da janela e olho a paisagem, aquilo que vejo mudou, mudei eu.
O meu trabalho integra-se na literatura portuguesa contemporânea, tenho consciência dela. Mas acho que quem escreve tem de manter distanciamento desse meio, envolver-se é criar uma teia de relações que não ajuda a algo fundamental: a independência e isenção. O grande compromisso tem que ser com a literatura. Não com o meio literário.
Não tentas preservar o que tens porque sabes que não tens nada e podes sempre ter mais ainda. Quando deixas de fazer sentido, é porque foste capaz de encontrar um novo sentido e há muito boas possibilidades que esse sentido esteja enfeitado por canteiros de plantas necessariamente selvagens, onde a seiva corre desgovernada, feita de sol liquefeito, claridade liquefeita, incandescência tão limpa que cega.
A disciplina está enterrada naquilo que não é medo, é força, e que nos protege, que nos protegemos a nós próprios.
Ao fixar o reflexo dos meus olhos no espelho, já me pareceu muitas vezes que está outra pessoa dentro deles. Observa-me, julga-me, mas não tem voz para se exprimir. Será talvez eu com outra idade, criança ou velho: inocente, magoado por me ver a destruir todos os seus sonhos; ou amargo, a culpar-me pela construção lenta dos seus ressentimentos. Seria melhor se tivesse palavras para dizer-me, mas não. Só aquele olhar lhe pertence. É lá que está prisioneiro.
MĂŁe, choves o significado do teu nome sobre a terra, choves amor.
Palavras para a Minha MĂŁe
mĂŁe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mĂŁe, e esperar nĂŁo Ă© suficiente.pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mĂŁe, e sei que pedir desculpa nĂŁo Ă© suficiente.Ă s vezes, quero dizer-te tantas coisas que nĂŁo consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo Ă© a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.lê isto: mãe, amo-te.
eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que nĂŁo
escrevi estas palavras, sim, mĂŁe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mĂŁe, mas eu sei e tu sabes.
Acreditei que Podia Dar-te um CĂ©u para Brincares
Filho. Gostava que houvesse uma aragem qualquer que me explicasse esse teu sorriso e outra que te explicasse, sem te magoar, o meu silêncio. Gostava de aprender o trejeito dos teus lábios, a maneira dos teus olhos, e to lembrar quando tivesses a minha idade. Fui um dia a tua inocência. E dela ficou-me a grande inocência de acreditar.
Acreditei que podia dar-te um cĂ©u para brincares e que a vida seria o que nĂłs quisĂ©ssemos. Assim. Bastaria querermos, esforçarmo-nos muito, trabalharmos, e terĂamos entĂŁo o que desejássemos. NĂŁo digo coisas majestosas, roupas bonitas ou charretes, mas comida, comida gostosa e bem temperada, e um cavalo de cartĂŁo novo, se por acaso esquecesses o teu no quintal numa noite de chuva. Acreditei que a felicidade dos teus olhos a sorrir podia voltar aos olhos da tua mĂŁe, aos meus e perdurar intocada nos teus. Acreditei em tantas coisas. Sabes, aproximo-me da vila e o que me espera Ă© morrer um pouco mais. Preferia que nĂŁo o soubesses, mas infelizmente nem isso posso esconder-te, porque um dia, quando te contarem a histĂłria da tua vida, dir-te-ĂŁo que numa noite de estrelas, o teu pai foi Ă vila e levou uma sova;
Para mim, a literatura Ă© cartografia invisĂvel. AtravĂ©s dela, tentamos encontrar sentido, referĂŞncias para nĂŁo nos perdermos no essencial. A meu ver, a literatura dá proporção, equilibra a memĂłria, limpa o pensamento.
Tem de se Ser Verdadeiro na Escrita
Tem de se ser verdadeiro na escrita, porque os leitores sentem. A mentira Ă© impossĂvel na boa literatura. E o que procuro, mais do que a beleza ou qualquer outra coisa, Ă© a verdade, livro apĂłs livro, tentando desvendar um pouco mais de mim e esperando que essa possa ser uma forma de desvendar alguma coisa dos outros e que eles tambĂ©m se vejam reflectidos nessa procura que faço.
Penso: talvez haja uma luz dentro dos homens, talvez uma claridade, talvez os homens nĂŁo sejam feitos de escuridĂŁo, talvez as certezas sejam uma aragem dentro dos homens e talvez os homens sejam as certezas que possuem.
As Pernas Pesadas
Hoje, temos as pernas pesadas com o nosso peso. Andamos a ver onde pomos os pĂ©s, a acautelarmo-nos para nĂŁo cair, porque se partĂssemos uma perna era a nossa morte. Sentimos uma tremura invisĂvel nas pernas, e hoje avançou essa tremura para o dobro, e já se nota ao olhar. Os ossos nĂŁo se dobram da mesma maneira. AtĂ© o respirar Ă© muito diferente do que já foi. Dantes, era corrido, era uma coisa em que nĂŁo reparávamos. Hoje, Ă© precisa mais força para sorver o ar e, quando o sopramos, soltamos um ruĂdo de asma, como se tivĂ©ssemos o pescoço meio entupido ou tivĂ©ssemos engolido uma gaita enferrujada.
na hora de pĂ´r a mesa, Ă©ramos cinco
na hora de pĂ´r a mesa, Ă©ramos cinco:
o meu pai, a minha mĂŁe, as minhas irmĂŁs
e eu. depois, a minha irmĂŁ mais velha
casou-se. depois, a minha irmĂŁ mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pĂ´r a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmĂŁ mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mĂŁe viĂşva. cada um
deles Ă© um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irĂŁo estar sempre aqui.
na hora de pĂ´r a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nĂłs estiver vivo, seremos
sempre cinco.