Palavras para a Minha MĂŁe
mĂŁe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mĂŁe, e esperar nĂŁo Ă© suficiente.pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mĂŁe, e sei que pedir desculpa nĂŁo Ă© suficiente.Ă s vezes, quero dizer-te tantas coisas que nĂŁo consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo Ă© a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.lê isto: mãe, amo-te.
eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que nĂŁo
escrevi estas palavras, sim, mĂŁe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mĂŁe, mas eu sei e tu sabes.
Passagens de JosĂ© LuĂs Peixoto
226 resultadosAcreditei que Podia Dar-te um CĂ©u para Brincares
Filho. Gostava que houvesse uma aragem qualquer que me explicasse esse teu sorriso e outra que te explicasse, sem te magoar, o meu silêncio. Gostava de aprender o trejeito dos teus lábios, a maneira dos teus olhos, e to lembrar quando tivesses a minha idade. Fui um dia a tua inocência. E dela ficou-me a grande inocência de acreditar.
Acreditei que podia dar-te um cĂ©u para brincares e que a vida seria o que nĂłs quisĂ©ssemos. Assim. Bastaria querermos, esforçarmo-nos muito, trabalharmos, e terĂamos entĂŁo o que desejássemos. NĂŁo digo coisas majestosas, roupas bonitas ou charretes, mas comida, comida gostosa e bem temperada, e um cavalo de cartĂŁo novo, se por acaso esquecesses o teu no quintal numa noite de chuva. Acreditei que a felicidade dos teus olhos a sorrir podia voltar aos olhos da tua mĂŁe, aos meus e perdurar intocada nos teus. Acreditei em tantas coisas. Sabes, aproximo-me da vila e o que me espera Ă© morrer um pouco mais. Preferia que nĂŁo o soubesses, mas infelizmente nem isso posso esconder-te, porque um dia, quando te contarem a histĂłria da tua vida, dir-te-ĂŁo que numa noite de estrelas, o teu pai foi Ă vila e levou uma sova;
Para mim, a literatura Ă© cartografia invisĂvel. AtravĂ©s dela, tentamos encontrar sentido, referĂŞncias para nĂŁo nos perdermos no essencial. A meu ver, a literatura dá proporção, equilibra a memĂłria, limpa o pensamento.
Tem de se Ser Verdadeiro na Escrita
Tem de se ser verdadeiro na escrita, porque os leitores sentem. A mentira Ă© impossĂvel na boa literatura. E o que procuro, mais do que a beleza ou qualquer outra coisa, Ă© a verdade, livro apĂłs livro, tentando desvendar um pouco mais de mim e esperando que essa possa ser uma forma de desvendar alguma coisa dos outros e que eles tambĂ©m se vejam reflectidos nessa procura que faço.
Penso: talvez haja uma luz dentro dos homens, talvez uma claridade, talvez os homens nĂŁo sejam feitos de escuridĂŁo, talvez as certezas sejam uma aragem dentro dos homens e talvez os homens sejam as certezas que possuem.
As Pernas Pesadas
Hoje, temos as pernas pesadas com o nosso peso. Andamos a ver onde pomos os pĂ©s, a acautelarmo-nos para nĂŁo cair, porque se partĂssemos uma perna era a nossa morte. Sentimos uma tremura invisĂvel nas pernas, e hoje avançou essa tremura para o dobro, e já se nota ao olhar. Os ossos nĂŁo se dobram da mesma maneira. AtĂ© o respirar Ă© muito diferente do que já foi. Dantes, era corrido, era uma coisa em que nĂŁo reparávamos. Hoje, Ă© precisa mais força para sorver o ar e, quando o sopramos, soltamos um ruĂdo de asma, como se tivĂ©ssemos o pescoço meio entupido ou tivĂ©ssemos engolido uma gaita enferrujada.
na hora de pĂ´r a mesa, Ă©ramos cinco
na hora de pĂ´r a mesa, Ă©ramos cinco:
o meu pai, a minha mĂŁe, as minhas irmĂŁs
e eu. depois, a minha irmĂŁ mais velha
casou-se. depois, a minha irmĂŁ mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pĂ´r a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmĂŁ mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mĂŁe viĂşva. cada um
deles Ă© um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irĂŁo estar sempre aqui.
na hora de pĂ´r a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nĂłs estiver vivo, seremos
sempre cinco.
Ao longo de uma vida, todas as pessoas tomam decisões erradas. Algumas dessas decisões magoam outros, causam-lhes sofrimento verdadeiro. No entanto, a grande maioria desses erros nĂŁo sĂŁo citados pelo cĂłdigo penal. Na verdade, sĂł estĂŁo citados aqueles que sĂŁo concebĂveis pelos espĂritos práticos: os que sĂŁo quantificáveis, claramente observáveis, indiscutivelmente concretos. SĂł Ă© pena que a vida nĂŁo seja assim: indiscutivelmente concreta.
Aquilo que te digo, transforma-se em cinza ainda antes de te tocar. Quando chega à página, quando sai dos meus lábios, quando termina de se formar dentro de mim, já é cinza. Ou ainda menos do que cinza. Ainda menos do que fumo. Nem sequer a sensação de fumo, o calor do fumo, o cheiro do fumo. Aquilo que tens é o pouco, o quase nada que sou capaz de te dar. Eu gostava. Desejava com todas as forças ser capaz de dar-te tudo, mas existe um muro de significados que não o permite.
Momentos que o fim torna ridĂculos. Momentos que fazem viver, esperando por um dia, depois de todas as desilusões, depois de todos os arrependimentos e fracassos, em que se possam viver de novo, para de novo chegar o fim e de novo a esperança e de novo o fim.
A outra pessoa não é apenas uma imagem. É um silêncio morno, monstro, a explodir significados que não somos capazes de entender, mas que distinguimos até ao centro do nevoeiro mais sólido e que, se for preciso, defendemos até a nossa pele se gastar, até gastarmos a pele e, claro, morrermos.
A lógica, o absurdo da lógica e a lógica precisa, milimétrica, do absurdo são para mim assuntos que me absorvem, como se fossem, de facto, a primeira regra da minha vida.
Repara em tantas vidas que prosperaram sem uma letra, repara também em quantos sabem ler e nunca chegam a passar de imbecis.
A minha vida real. Sinto dores concretas pelas horas em que nĂŁo vi os meus filhos crescer. Sou previsĂvel, embora humano. E reĂşno os momentos de ternura que tivemos, como peças de um puzzle incompleto. Olho-os ao longe, aqueço-me neles como numa lareira.
No mundo inteiro, por todos os cantos da terra, há tantas maneiras, tantos feitios e, mesmo assim, não há quem exista isento de dor. Procurando, todos encontram ao menos uma queixa.
Quando Chegar esse Momento
Meu querido, que Ă©s o meu querido. Tanto que eu esperei por isto, meu amor bendito. Tantas noites acordada a olhar para o tecto do quarto, a noite inteira a passar tĂŁo devagarinho e eu sempre a pensar: quando chegar esse momento, quando chegar esse momento. E agora, finalmente, finalmente. Em certos dias, eu atĂ© me parecia que… (passa a mĂŁo pelo rosto) Mas o que Ă© que Ă© preciso fazer, pensava eu. Se houvesse alguma coisa para fazer, eu tinha feito. Nem que fosse… Eu sei lá. Eu fiz tanta coisa, meu doce. E eu sempre a pensar: quando chegar esse momento, quando chegar esse momento. Eu atĂ© me parecia que… (passa a mĂŁo pelo rosto) Mas passou-se tudo. E agora, finalmente, finalmente. Dá cá um bocanço, meu santo amor. Dá cá o nosso primeiro bocanço de casados. Agora, podemos descansar, temos a vida toda Ă nossa frente.
(O tempo permanece suspenso e infinito.)
A inconstância é uma forma de diferença, mas mesmo a diferença pode ser diferente de dia para dia, de hora para hora, de cada instante inconstante para cada instante inconstante.
Uma máquina: aquilo que entra determina aquilo que sai. Se passámos o dia a receber notĂcias de crimes, assassĂnios Ă facada, corpos esquartejados, teremos medo Ă noite, caminharemos receosos pelos cantos. AtĂ© o espelho será olhado com desconfiança.
Não há forma de explicar tudo o que se diz quando se diz sofrer.
Ninguém aprende a tocar guitarra sem aleijar as pontas dos dedos. Se eu me tivesse convencido de que não aguentava mais, tinhas ficado por nascer. Às vezes, o cansaço é uma forma de medo.