Passagens de José Luís Peixoto

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Vivemos num individualismo muito cru. As pessoas são levadas a acreditar que a promoção do conforto físico e das aparências é o que mais conta. Existe uma desvalorização do conforto afectivo e moral. Existe a ideia errada de que podemos ser felizes sozinhos ou, pior ainda, contra os outros.

A planície é velha de muito ter visto. Sabe a vida dos pássaros, que larga como mensageiros ao céu; sabe a das cigarras, que acolhe na sua pele para que cantem depois do calor; sabe a vida dos homens, que permite e sepulta piedosamente.

O caminho da justiça é uma linha fina, desacerta-se ao milímetro. Já o caminho da infâmia é tudo o resto, pode avançar-se durante anos nesse terreno sem lhe achar o fim.

Durante uma vida completa, as espigas também são farinha e pão. Assim se compreendem os meandros dos rios mais irregulares: as contrariedades são tão indispensáveis como as grandes vitórias.

Como as palavras, os nossos nomes também estão sujeitos a ser moldados pela intenção e pelo tom. A intenção é o lugar onde nascem. O tom é a forma como se desenvolvem. Dependendo da intenção e do tom, muitas vezes somos os nossos nomes, noutras vezes não.

O tempo faz com que deixe de haver diferenças entre a verdade e a mentira. Aquilo que aconteceu mistura-se com aquilo que eu quero que tenha acontecido e com aquilo que me contaram que aconteceu. A minha memória não é minha. A minha memória sou eu distorcido pelo tempo e misturado comigo próprio: com o meu medo, com a minha culpa, com o meu arrependimento.

Viajar é interpretar. Duas pessoas vão ao mesmo país e, quando regressam, contam histórias diferentes, descrevem os naturais desse país de maneiras diferentes. Uma diz que são simpáticos, a outra diz que são antipáticos. Uma diz que são tímidos, a outra diz que não se calam durante um minuto.

o tempo subitamente solto

o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

As Mães não Descansam

Todas as pessoas têm direito a descanso, menos as mães. Para cada tarefa, profissão ou encargo há direito a uma folga, menos para as mães. Se alguma mãe demonstrar a mínima fadiga de ser mãe, haverá logo uma besta, ignorante de limpar baba e de parir, que se oferecerá para a pôr em causa. Não é mãe, não sabe ser mãe, não foi feita para ser mãe, dirá. Mas, se todas as pessoas têm direito a descanso, será que as mães não são pessoas? A culpa é nossa. Sim, a culpa é das mães. Deixámos que fossem os filhos a definir-nos.

Os Olhos não Permitem a Mentira

Será através dos olhos que passarás aos teus filhos tudo o que souberes.
Pouco valimento será dado às lições que, em vã convicção, te atrevas a dedicar-lhes.
Não poderás ensinar mais do que sabes;
aquilo que souberes será aquilo em que acreditares;
aquilo em que acreditares existirá dentro de ti,
terá a forma de um mistério que nunca entenderás completamente
e, no entanto, os teus filhos irão recebê-lo, de modo puro e inalterado, através dos teus olhos.
Queiras ou não, assim será.
Os olhos não permitem a mentira.

Amo-te

Talvez não seja próprio vir aqui, para as páginas deste livro, dizer que te amo. Não creio que os leitores deste livro procurem informações como esta. No mundo, há mais uma pessoa que ama. Qual a relevância dessa notícia? À sombra do guarda-sol ou de um pinheiro de piqueniques, os leitores não deverão impressionar-se demasiado com isso. Depois de lerem estas palavras, os seus pensamentos instantâneos poderão diluir-se com um olhar em volta. Para eles, este texto será como iniciais escritas por adolescentes na areia, a onda que chega para cobri-las e apagá-las. E possível que, perante esta longa afirmação, alguns desses leitores se indignem e que escrevam cartas de protesto, que reclamem junto da editora. Dou-lhes, desde já, toda a razão.
Eu sei. Talvez não seja próprio vir aqui dizer aquilo que, de modo mais ecológico, te posso afirmar ao vivo, por email, por comentário do facebook ou mensagem de telemóvel, mas é tão bom acreditar, transporta tanta paz. Tu sabes. Extasio-me perante este agora e deixo que a sua imensidão me transcenda, não a tento contrariar ou reduzir a qualquer coisa explicável, que tenha cabimento nas palavras, nestas pobres palavras. Em vez disso, desfruto-a, sorrio-lhe. Não estou aqui com a expectativa de ser entendido.

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O Primeiro Beijo

Durante todas as noites desse verão, as estrelas foram líquidas no céu. Quando eu as olhava, eram pontos líquidos de brilho no céu. Na primeira vez, encontrámo-nos durante o dia: eu sorri-lhe, ela sorriu-me. Dissemos duas ou três palavras e contivemo-nos dentro dos nossos corpos. Os olhos dela, por um instante, foram um abismo onde fiquei envolto por leveza luminosa, onde caía como se flutuasse: cair através do céu dentro de um sonho.

Naquela noite, fiquei a esperá-la, encostado ao muro, alguns metros depois da entrada da pensão. As pessoas que passavam eram alegres. Eu pensava em qualquer coisa que me fazia sentir maior por dentro, como a noite. As folhas de hera que cobriam o cimo do muro, e que se suspendiam sobre o passeio, eram uma única forma nocturna, feita apenas de sombras. Primeiro, senti as folhas de hera a serem remexidas; depois, vi os braços dela a agarrarem-se ao muro; depois, o rosto dela parado de encontro ao céu claro da noite. E faltou uma batida ao coração.

O mundo parou. Sombras pousavam-lhe, transparentes, na pele do rosto. O ar fresco, arrefecido, moldava-lhe a pele do rosto. E o mundo continuou. Ajudei-a a descer.

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Uma Casa Cheia de Livros

Os livros, esses animais sem pernas, mas com olhar, observam-nos mansos desde as prateleiras. Nós esquecemo-nos deles, habituamo-nos ao seu silêncio, mas eles não se esquecem de nós, não fazem uma pausa mínima na sua vigia, sentinelas até daquilo que não se vê. Desde as estantes ou pousados sem ordem sobre a mesa, os livros conseguem distinguir o que somos sem qualquer expressão porque eles sabem, eles existem sobretudo nesse nível transparente, nessa dimensão sussurrada. Os livros sabem mais do que nós mas, sem defesa, estão à nossa mercê. Podemos atirá-los à parede, podemos atirá-los ao ar, folhas a restolhar, ar, ar, e vê-los cair, duros e sérios, no chão.

(…) Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do céu, fazem grandes linhas rectas e, ao atingir o chão, explodem em silêncio. Tudo neles é absoluto, até as contradições em que tropeçam. E estão lá, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, até a loucura, até os pesadelos, até a esperança em todas as suas formas.

A forma e o conteúdo são indissociáveis e a qualquer livro que não tome isso em consideração falta uma noção fundamental da literatura. Se a forma não servir o conteúdo não me interessa, se por outro lado a forma for uma sucessão de malabarismos literários sem nenhum outro propósito também não me interessa.

Confundimos os nossos segredos com a nossa identidade, confundimos as nossas fraquezas connosco próprios e, sem que ninguém saiba, sem que ninguém possa saber ou ajudar-nos, transformamo-nos efectivamente nos nossos segredos e nas nossas fraquezas. A verdade existe no oposto desse medo. Quanto mais damos, mais nos permitimos ser. Quanto mais damos, mais somos.

A Mulher de Negro

Os sons da floresta, as árvores, a bicicleta e, ao longe, o silêncio imóvel de um vulto negro. Aproximei-me e era uma mulher vestida de negro. Um xaile negro sobre os ombros. Um lenço negro sobre a cabeça. O som dos pneus da bicicleta a pararem, o som de amassarem folhas húmidas e de fazerem estalar ramos. Os meus pés a pousarem no chão. Os olhos da mulher entre o negro. Os olhos pequenos da mulher. O seu rosto branco. Vimo-nos como se nos encontrássemos, como se nos tivéssemos perdido havia muito tempo e nos encontrássemos. O tempo deixou de existir. O silêncio deixou de existir. Pousei a bicicleta no chão para caminhar na direcção da mulher. Era atraído por segredos. Durante os meus passos, a mulher estendeu-me a mão. A sua mão era muito velha. A palma da sua mão tinha linhas que eram o mapa de uma vida inteira, uma vida com todos os seus enganos, com todos os seus erros, com todas as suas tentativas. Os seus olhos de pedra. Senti os ossos da sua mão a envolverem os meus dedos. Não me puxou, mas eu aproximei o meu corpo do seu. Senti a sua respiração no meu pescoço.

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O Significado do Amor

Eu pensava que conhecia o significado do amor. O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Levantam-se tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. O amor é a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda.

O amor é o sentido de todas as palavras impossíveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo. O amor é a paz fresca e a combustão de um incêndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhã, o céu a deslizar como um rio. A tarde, o sol como uma certeza. O amor é feito de claridade e da seiva das rochas. O amor é feito de mar, de ondas na distância do oceano e de areia eterna. O amor é feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etéreos, a salvação é uma brisa que cai sobre o rosto suavemente.

Eu acreditava mesmo que o amor é o sangue do sol dentro do sol.

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