Rentabilizar o Tempo
Sempre que damos algo como adquirido deixamos de sentir a plenitude, abdicamos da essência e acabamos por nos esquecer do «Agora», o único momento de ação que temos e que é verdadeiramente real. O que pretendo afirmar com estas linhas é tão simples como isto: o facto de sabermos do fim aproxima-nos de tudo o que realmente vale a pena e nada é mais imponente que a natureza, as pessoas e os afetos. Nada é mais importante que a forma como escolhemos rentabilizar o tempo finito que temos. Damos mais valor à vida quando temos a certeza absoluta que vamos morrer e quanto mais cedo adquirirmos essa consciência, mais sentimos, mais nos damos, mais sabemos receber, mais arriscamos, mais desfrutamos, mais celebramos, mais inspiramos e, por conseguinte, mais felizes somos também.
Passagens sobre Linhas
221 resultadosO Homem que Lê
Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde… em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
A Necessidade da Filosofia
A filosofia não brota por ser útil, mas tão-pouco pela acção irracional de um desejo veemente. É constitutivamente necessária ao intelectual. Porquê? A sua nota radical era buscar o todo como um tal todo, capturar o Universo, caçar o Unicórnio. Mas porquê esse profundo anseio? Por que não nos contentamos com o que, sem filosofar, achamos no mundo, com o que já é e aí está patente diante de nós? Por esta simples razão: tudo o que é e está aí, quanto nos é dado, presente, patente, é por sua essência um mero bocado, pedaço, fragmento, coto. E não podemos vê-lo sem prever e verificar que está a menos a porção que falta. Em todo o ser que é dado, em todo o dado do mundo encontramos a sua essencial linha de fractura, o seu carácter de parte e só parte – vemos a ferida da sua mutilação ontológica, grita-nos a sua dor de amputado, a sua nostalgia do bocado que lhe falta para ser completo, o seu divino descontentamento. Há doze anos, quando eu falava em Buenos Aires, definia o descontentamento «como um amar sem amado e uma como dor que sentimos em membros que não temos». É o achar de menos o que não somos,
A linha recta é o melhor caminho entre dois pontos.
Vivi cada linha que escrevi, mas não as escrevi tal como foram vividas
O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e, no entanto, não me sinto com o poder de livremente inventar. Sigo uma oculta linha fatal. Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa.
A Idade da Derrota Aceite
Tenho sessenta anos. Não te iludas: não estou ainda bastante fraco para ceder às imaginações do medo, quase tão absurdas como as da esperança e seguramente muito mais penosas. Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo, preferia que fosse no sentido da confiança; não perderia mais com isso e sofreria menos. Este fim tão próximo não é necessariamente imediato; deito-me ainda, todas as noites, com a esperança de chegar à manhã seguinte. Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco, posso defender a minha posição passo a passo e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido. Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós. Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo, que nos impede de distinguir bem o fim para o qual avançamos sem cessar, diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride. Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro, mas o doente sabe que passados dez anos já não será vivo.
A minha margem de hesitação já não se alonga em anos,
A graça é para a formosura o que a minhoca é para a linha do pescador; sem o isco não cai peixe, sem a graça não se conquista.
Carta a um «Amor»
Recordo, Margarida, as tardes quando
Cata no Marão o Sol de Julho!
Meu ranchinho de rolas rorolando,
Vós éreis meu orgulho.O ar como um veludo, os ares tão macios,
Ó tardes do jardim! à fonte da água, aos fios,
íamos todos nós era tão alegre bando
Que desde que eu o não sinto
Sou como um corpo extinto,
Não sinto ora nem quando.E estar de vós tão longe
Cá neste meu terreno onde pareço um monge,
Sem uma linha, um verso
Desse Corgo sem par, a boa e madre
Terra como outra assim não haverá,
Montanhas que no Céu têm aquase o berço!
Escreve, Margarida, ao teu compadre,
Vá!Quero que diga
Florinda como vai, e vai assim Loreto,
Lindo pajem, que linda em seu veludo preto!
E os mais amorzinhos, rapariga,
Os que tua amizade aí me deu!Na alma dum poeta, vê-se nela o céu:
E assim
A tudo, Margarida, o que o prendeu
Arrecada-o na vida, e para a morte.
Escreve mal, e daí,
Falar à Humanidade é Demagogia
Esquece-se demasiadamente que todo o autêntico dizer não só diz algo, como diz alguém a alguém. Em todo o dizer há um emissor e um receptor, os quais não são indiferentes ao significado das palavras. Este varia quando aquelas variam. Duo si idem dicunt non est idem. Todo o vocábulo é ocasional. A linguagem é por essência diálogo, e todas as outras formas do falar destituem a sua eficácia. Por isso eu creio que um livro só é bom na medida em que nos traz um diálogo latente, em que sentimos que o autor sabe imaginar concretamente o seu leitor e este percebe como se de entre as linhas saísse uma mão ectoplástica que tacteia a sua pessoa, que quer acariciá-la – ou bem, mui cortesmente, dar-lhe um murro.
Abusou-se da palavra e por isso ela caiu em desgraça. Como em tantas outras coisas, o abuso aqui consistiu no uso sem preocupação, sem consciência da limitação do instrumento. Há quase dois séculos que se acredita que falar era falar urbi et orbi, isto é, a todos e a ninguém. Eu detesto essa maneira de falar e sofro quando não sei concretamente a quem falo.
Contam, sem insistir demasiado sobre a realidade do facto,
Saudade
Ter saudade
é vaga disforme de um corpo.
Ter saudade
é pássaro que aparece e se apaga
erguido de confusão
na angústia, teste dado à natureza
bruxuleante dentro de mim.
Ter saudade
é fingir qualquer coisa que inquieta,
levantada, desenterrada do crivo da memória.
Por vezes quando o tempo por ela passa
não passa o tempo da saudade,
estátua rígida dum destino anoitecido,
passa um nada meio acontecido.
Saudade,
é filha da alma do mundo
que de tanto ser outro
sou eu já.
Saudade,
porque viajas cansada
em horas dentro de mim?
Saudade
que vieste até à última força desta linha,
brumosa da eterna caminhada.
Sempre que vieres
sem avisares
leva-me contigo
para que a paz volte
à memória de meu corpo
como o rio que passa
no tempo final da minha natureza.
Atingir a Felicidade
Embora seja possível atingir a felicidade, a felicidade não é uma coisa simples. Existem muitos níveis. O Budismo, por exemplo, refere-se a quatro factores de contentamento ou felicidade: os bens materiais, a satisfação mundana, a espiritualidade e a iluminação. O conjunto destes factores abarca a totalidade da busca pessoal de felicidade. Deixemos de lado, por ora, as aspirações últimas a nível religioso ou espiritual, como a perfeição e a iluminação, e concentremo-nos unicamente sobre a alegria e a felicidade, tal como as concebemos a nível mundano. A este nível, existem certos elementos-chave que nós reconhecemos convencionalmente como contribuindo para o bem-estar e a felicidade. A saúde, por exemplo, é considerada como um factor necessário para o bem-estar. Um outro factor são as condições materiais ou os bens que possuímos. Ter amigos e companheiros, é outro. Todos nós concordamos que para termos uma vida feliz precisamos de um círculo de amigos com quem nos possamos relacionar emocionalmente e em quem possamos confiar.
Portanto, todos estes factores são causas de felicidade. Mas para que um indivíduo possa utilizá-los plenamente e gozar de uma vida feliz e preenchida, a chave é o estado de espírito. É crucial. Se utilizarmos as condições favoráveis que possuímos,
Se em Nós a Solidão Viver Sozinha
Se em nós a solidão viver sozinha,
sem que nada em nós próprios a perturbe,
cada figura passará rainha
na antiguidade súbita da urbe.Um acento de pena irá na linha
vincar a eternidade de figura
a um rosto que quase só caminha
para dentro de o vermos pela purasubstância em si que vive a solidão
dentro de nós. E sendo nós só margem
do seu reino de ver por onde vãoas figuras passando na paisagem
de um antigo fulgor de coração
aonde passam desde sempre. E agem.
A má vizinha dá agulha sem linha.
Se tu viesses ver-me…
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos… a tua mão na minha…Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e riE é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…
Saberei Conquistá-la Através de Todos os Sacrifícios
Perdoe-me se me apaixonei a este ponto de si. Mas não passarei daqui, nem ninguém me verá! Fechado num quarto da pousada, espero a sua resposta. Esperarei seis horas por umas linhas suas e depois volto para Paris. Já nem sei viver, vagueio por aí, ferido de morte. Prefiro cansar-me em longos passeios a cavalo, a consumir-me na solidão, ou no meio de pessoas que deixaram de me entender… Ordene-me que parta e não tornará a ser atormentada por um homem a quem um mês bastou para perder a razão.
Muito gostaria de surpreender o seu primeiro pensamento ao acordar; não posso descrever-lhe o reconhecimento que me enche o coração, este coração que reclama apenas a sua amizade, que saberá conquistá-la através de todos os sacrifícios, que é completamente vosso até ao seu último alento.
Não me conformo com a ideia de ser abandonado. O seu interesse é-me mil vezes mais preciso do que a própria vida, mas saberei moderar a expressão dos meus sentimentos e não terei outras aspirações do que as que me forem permitidas; também saberei esconder-lhe os meus temores; respeitarei o seu repouso – mas vê-la-ei, e nunca mais haverá felicidade na minha vida se não puder consagrar-lha inteiramente.
No conto tudo precisa ser apontado num risco leve e sóbrio: das figuras deve-se ver apenas a linha flagrante e definidora que revela e fixa uma personalidade; dos sentimentos apenas o que caiba num olhar, ou numa dessas palavras que escapa dos lábios e traz todo o ser; da paisagem somente os longes, numa cor unida.
A Inutilidade da Crítica
Que a obra de boa qualidade sempre se destaca é uma afirmação sem valor, se aplicada a uma obra de qualidade realmente boa e se por “destaca” quer-se fazer referência à aceitação na sua própria época. Que a obra de boa qualidade sempre se destaca, no curso de sua futuridade, é verdadeiro; que a obra de boa qualidade, mas de segunda ordem sempre se destaca na sua própria época, é também verdadeiro.
Pois como há-de um crítico julgar? Quais as qualidades que formam, não o incidental, mas o crítico competente? Um conhecimento da arte e da literatura do passado, um gosto refinado por esse conhecimento, e um espírito judicioso e imparcial. Qualquer coisa menos do que isto é fatal ao verdadeiro jogo das faculdades críticas. Qualquer coisa mais do que isto é já espírito criativo e, portanto, individualidade; e individualidade significa egocentrismo e certa impermeabilidade ao trabalho alheio.
Quão competente é, porém, o crítico competente? Suponhamos que uma obra de arte profundamente original surja diante dos seus olhos. Como a julga ele? Comparando-a com as obras de arte do passado. Se for original, porém afastar-se-á em alguma coisa — e quanto mais original mais se afastará — das obras de arte do passado.
Toda a Ideia Geral é Puramente Intelectual
As ideias gerais só se podem introduzir na espécie com o auxílio das palavras, e o entendimento não as apreende senão por meio das proposições. É uma das razões por que os animais não poderiam formar tais ideias, nem jamais adquirir a perfectibilidade que delas depende. Quando um macaco vai, sem hesitar, de uma noz a outra, julga-se que tenha a ideia geral dessa espécie de fruta e que compare o seu arquétipo a esses dois indivíduos? Não, sem dúvida; mas, a vista de uma dessas nozes lembra à sua memória as sensações que recebeu da outra, e os seus olhos, modificados de certa maneira, anunciam ao seu gosto a modificação que vai receber. Toda a ideia geral é puramente intelectual; por pouco que a imaginação tome parte nela, a ideia torna-se, logo, particular.
Procurai traçar a imagem de uma árvore em geral, e jamais o conseguireis; contra a vossa vontade, é preciso vê-la grande ou pequena, desgalhada ou em copa, clara ou escura; e, se dependesse de vós não ver senão o que se acha em toda a árvore, essa imagem não se pareceria mais com uma árvore. Os seres puramente abstractos vêem-se do mesmo modo, ou não se concebem senão por meio do discurso.
A Gloriola do Jornal
O jornal estende sobre o mundo as suas duas folhas, salpicadas de preto, como aquelas duas asas com que os iconografistas do século XV representavam a Luxúria ou a Gula: e o Mundo todo se arremessa para o jornal, se quer agachar sob as duas asas que o levem à gloriola, lhe espalhem o nome pelo ar sonoro. E é por essa gloriola que os homens se perdem, e as mulheres se aviltam, e os Políticos desmancham a ordem do Estado, e os Artistas rebolam na extravagância estética, e os Sábios alardeiam teorias mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os géneros, surge a horda ululante dos charlatães… (Como me vim tornando altiloquente e roncante!…) Mas e a verdade, meu Bento! Vê quantos preferem ser injuriados a serem ignorados! (Homenzinhos de letras, poetisas, dentistas, etc.). O próprio mal apetece sofregamente as sete linhas que o maldizem. Para aparecerem no jornal, há assassinos que assassinam. Até o velho instinto da conservação cede ao novo instinto da notoriedade – e existe tal maganão, que ante um funeral convertido em apoteose pela abundância das coroas, dos coches e dos prantos oratórios, lambe os beiços, pensativo, e deseja ser o morto.