A Morte que Trazemos no Coração
É no coração que morremos. É aí que a morte habita.
Nem sempre nos damos conta que a carregamos connosco, mas, desde que somos vida, ela segue-nos de perto. Enquanto não somos tomados pela nossa, vamos assistindo e sentindo, em ritmo crescente ao longo da vida, às mortes de quem nos é querido. A morte de um amigo é como uma amputação: perdemos uma parte de nós; uma fonte de amor; alguém que dava sentido à nossa existência… porque despertava o amor em nós.
Mas não há sabedoria alguma, cultura ou religião, que não parta do princípio de que a realidade é composta por dois mundos: um, a que temos acesso direto e, outro, que não passa pelos sentidos, a ele se chega através do coração. Contudo, o visível e o invisível misturam-se de forma misteriosa, ao ponto de se confundirem e, como alguns chegam a compreender, não serem já dois mundos, mas um só.
Só as pessoas que amamos morrem. Só a sua morte é absoluta separação. Os estranhos, com vidas com as quais não nos cruzamos, não morrem, porque, para nós, de facto, não chegam sequer a ser.Só as pessoas que amamos não morrem.
Longos
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(digo dos que se ditam:
a minha defesa
são os vossos punhais)Quando me disseram «não se vem à vida para sonhar» passei a odiar-vos. Para vos matar escolhi materiais inacessíveis ao meu ódio. Em mim fizestes despertar a irreparável urgência de ferir.
Descobri a vossa intenção: decepar as minhas raízes mais profundas, obrigar-me à cerimónia das palavras mortas. Preferi reiniciar-me: na solidão me apaguei. Estava só para me encher de gente, para me povoar de ternura. Eu queria simplesmente olhar de frente a verdade das pequenas coisas: esta água vem de onde, quem teceu este linho, que mãos fizeram este pão?
Desloquei-me para tudo ver de um outro lado: levei o meu olhar, o desejo de um princípio infinitamente retomado. Ganhei sonoridade nas vozes que me habitavam silenciosamente. Entre mar e terra eu preferia ser espuma, ter raiz e poente entre oceano e continente.
O tempo, por vezes, morria de o não semear. Terras que golpeava com ternura eram feridas que em mim se abriam para me curar. Eram terras suspeitas, acusadas de futuro. Outras vezes eram mãos de um corpo que ainda me não nascera. Surgiam da obscuridade para afastar a água e nela me deixar tombar.
De Que Vale a Sabedoria ?
Os homens que se entregam à sabedoria são de longe os mais infelizes. Duplamente loucos, esquecem que nasceram homens e querem imitar os deuses poderosos, e a exemplo dos Titãs, armados com as ciências e as artes, declaram guerra à Natureza. Ora, os menos infelizes são aqueles que mais se aproximam da animalidade e da estupidez.
Tentarei fazer-vos entender isto, usando, em vez dos argumentos dos estóicos, um exemplo crasso. Haverá, pelos deuses imortais, espécie mais feliz que os homens a quem o vulgo chama loucos, parvos, imbecis, cognomes belíssimos, na minha opinião? Esta afirmação poderá a princípio parecer insensata e absurda e, no entanto, nada há de mais verdadeiro. Tais homens não receiam a morte, e, por Júpiter! isso já não representa pequena vantagem! A sua consciência não os incomoda. As histórias de fantasmas não os aterrorizam, nem os afecta o medo das aparições e espectros, nem os males que os ameaçam ou a esperança dos bens que poderão vir a receber. Nada, em resumo, os atormenta, isentos dos mil cuidadeos de que a vida é feita. Ignoram a vergonha, o medo, a ambição, a inveja e chegam mesmo, se são suficientemente estúpidos, a gozar o privilégio, segundo os teólogos,
A Imagem é Sempre Fruto da Vaidade
O aplauso é o ídolo da vaidade, por isso as acções heróicas não se fazem em segredo, e por meio delas procuramos que os homens formem de nós o mesmo conceito, que nós temos de nós mesmos. Raras vezes somos generosos, só pela generosidade, nem valerosos só pelo valor. A vaidade nos propõe, que o mundo todo se aplica em registar os nossos passos; para este mundo é que obramos; por isso há muita diferença de um homem, a ele mesmo: posto no retiro é um homem comum, e muitas vezes ainda com menos talento que o comum dos homens; porém posto em parte donde o vejam, todo é acção, movimento, esforço.
Nunca mostramos o que somos, senão quando entendemos que ninguém nos vê, e isto porque não exercitamos as virtudes pela excelência delas, mas pela honra do exercício, nem deixamos de ser maus por aversão ao mal, mas pelo que se segue de o ser. O vício pratica-se ocultamente, porque cremos que a ignomínia só consiste em se saber; de sorte que se somos bons, é por causa dos mais homens, e não por nossa causa; haja quem nos assegure, que não há-de saber-se um desacerto, e logo nos tem certo,
Mãezinha
A terra de meu pai era pequena
e os transportes difíceis.
Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões, nem mísseis.
Corria branda a noite e a vida era serena.Segundo informação, concreta e exacta,
dos boletins oficiais,
viviam lá na terra, a essa data,
3023 mulheres, das quais
43 por cento eram de tenra idade,
chamando tenra idade
à que vai desde o berço até à puberdade.
28 por cento das restantes
eram senhoras, daquelas senhoras que só havia dantes.
Umas, viúvas, que nunca mais (Oh nunca mais!) tinham sequer sorrido
desde o dia da morte do extremoso marido;
outras, senhoras casadas, mães de filhos…
(De resto, as senhoras casadas,
pelas suas próprias condições,
não têm que ser consideradas
nestas considerações.)Das outras, 10 por cento,
eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,
mas que, por temperamento,
ou por outras razões mais ou menos secretas,
não se inclinavam para o casamento.Além destas meninas
havia, salvo erro, 32,
que à meiga luz das horas vespertinas
se punham a bordar por detrás das cortinas
espreitando,
Liberdade e Eternidade
A liberdade que às vezes sentia não vinha de reflexões nítidas, mas de um estado como feito de percepções por demais orgânicas para serem formuladas em pensamentos. Às vezes no fundo da sensação tremulava uma ideia que lhe dava leve consciência de sua espécie e de sua cor.
O estado para onde deslizava quando murmurava: eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem propriamente um conteúdo e uma forma, mas sem dimensões também. A impressão de que se conseguisse manter-se na sensação por mais uns instantes teria uma revelação — facilmente, como enxergar o resto do mundo apenas inclinando-se da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizadamente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte; a impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e também era eterno um sentimento em pureza absoluta, quase abstracto. Sobretudo dava ideia de eternidade a impossibilidade de saber quantos seres humanos se sucederiam após seu corpo, que um dia estaria distante do presente com a velocidade de um bólido.
Definia eternidade e as explicações nasciam fatais como as pancadas do coração. Delas não mudaria um termo sequer,
Fado Português
O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.Ai, que lindeza tamanha,
meu chão , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro velero
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
Somos aquilo que Pensamos
Os nossos pensamentos determinam aquilo que somos. A nossa atitude mental é o factor X que determina o nosso destino. Emerson disse: «Um homem é aquilo em que pensa o dia inteiro». Como poderia ser outra coisa qualquer? Estou convencido, sem qualquer sombra de dúvida, que o maior problema que temos de enfrentar – na realidade, trata-se praticamente do único problema que temos de enfrentar – é a escolha dos pensamentos certos. Se conseguirmos, estaremos no caminho certo para resolver todos os nossos problemas. Marco Aurélio, o grande filósofo que governou o Império Romano, resumiu esta questão em onze palavras — onze palavras que podem determinar o seu destino: «A nossa vida é aquilo que os nossos pensamentos fazem dela».
É verdade, se pensarmos em coisas felizes, seremos felizes. Se pensarmos em desgraças, seremos uns desgraçados. Se pensarmos em coisas assustadoras, viveremos com medo. Se pensarmos em doenças, ficaremos provavelmente doentes. Se pensarmos em falhar, é certo que falhamos. Se ficarmos mergulhados em autocomiseração, vão todos afastar-se de nós e evitar-nos. Norman Vincent Peale afirmou: «Tu não és o que pensas que és; tu és o que tu pensas».
Estarei eu a defender uma típica atitude de Pollyanna (clássico de Eleane H.
A Vantagem da Frivolidade
O respeito que a tragédia inspira é muito mais perigoso do que a despreocupação de um chilrear de criança. Qual é a eterna condição das tragédias? A existência de ideias, cujo valor é considerado mais alto do que o da vida humana. E qual é a condição das guerras? A mesma coisa. Obrigam-te a morreres porque existe, dizem, alguma coisa que é superior à tua vida. A guerra só pode existir no mundo da tragédia; desde o começo da sua história, o homem apenas conheceu o mundo trágico e não é capaz de sair dele. A idade da tragédia só pode ser encerrada por uma revolta da frivolidade. As pessoas já só conhecem da Nona de Beethoven os quatro compassos do hino à alegria que acompanham a publicidade dos perfumes Bella. Isso não me escandaliza. A tragédia será banida do mundo como uma velha cabotina que, com a mão no peito, declama em voz áspera. A frivolidade é uma cura de emagrecimento radical. As coisas perderão noventa por cento do seu sentido e tornar-se-ão leves. Nessa atmosfera rarefeita, desaparecerá o fanatismo. A guerra passará a ser impossível.
Perdoar e Esquecer
Perdoar e esquecer equivale a jogar pela janela experiências adquiridas com muito custo. Se uma pessoa com quem temos ligação ou convívio nos faz algo de desagradável ou irritante, temos apenas de nos perguntar se ela nos é ou não valiosa o suficiente para aceitarmos que repita segunda vez e com frequência semelhante tratamento, e até de maneira mais grave. Em caso afirmativo, não há muito a dizer, porque falar ajuda pouco. Temos, portanto, de deixar passar essa ofensa, com ou sem reprimenda; todavia, devemos saber que agindo assim estaremos a expor-nos à sua repetição. Em caso negativo, temos de romper de modo imediato e definitivo com o valioso amigo ou, se for um servente, dispensá-lo. Pois, quando a situação se repetir, será inevitável que ele faça exactamente a mesma coisa, ou algo inteiramente análogo, apesar de, nesse momento, nos assegurar o contrário de modo profundo e sincero. Pode-se esquecer tudo, tudo, menos a si mesmo, menos o próprio ser, pois o carácter é absolutamente incorrigível e todas as acções humanas brotam de um princípio íntimo, em virtude do qual, o homem, em circunstâncias iguais, tem sempre de fazer o mesmo, e não o que é diferente. (…) Por conseguinte,
A Convicção é Sempre Cega
O intelecto humano, quando assente numa convicção (ou por já bem aceite e acreditada porque o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em maior número, não observa a força das instâncias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e pernicioso prejuízo. Graças a isso, a autoridade daquelas primeiras afirmações permanece inviolada. E bem se houve aquele que, ante um quadro pendurado no templo, como ex-voto dos que se salvaram dos perigos de um naufrágio, instado a dizer se ainda se recusava a aí reconhecer a providência dos deuses, indagou por sua vez:«E onde estão pintados aqueles que, a despeito do seu voto, pereceram?» Essa é a base de praticamente toda a superstição, trate-se de astrologia, interpretação de sonhos, augúrios e que tais: encantados, os homens, com tal sorte de quimeras, marcam os eventos em que a predição se cumpre; quando falha – o que é bem mais frequente – negligenciam-nos e passam adiante.
Esse mal insinua-se de maneira muito mais subtil na filosofia e nas ciências. Nestas, o de início aceite tudo impregna e reduz o que se segue, até quando parece mais firme e aceitável. Mais ainda: mesmo não estando presentes essa complacência e falta de fundamento a que nos referimos,
Porque o Melhor, Enfim
Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver…
Passarem sobre mim
E nada me doer!_ Sorrindo interiormente,
Co’as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. _Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano…
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a ervaQue Abril copioso ensope…
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifícioDas vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas…Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos,
Em Portugal, Ter Amor às Nossas Coisas Implica Dizer Mal Delas
Em Portugal, ter amor às nossas coisas implica dizer mal delas, já que a maior parte delas não anda bem. Nem uma coisa nem outra constitui novidade. Nem dizer mal delas, nem o facto de elas não andarem bem. Será que se diz mal na esperança de que elas se ponham boas? Também não. As nossas causas são quase sempre perdidas. Porquê então?
Porque o nosso maior bem, como António Vieira contradizia, é nunca estarmos satisfeitos. Nas nossas cabeças perversas e almas amarguradas, onde se acham todas as coisas portuguesas tal e qual achamos que deviam ser, Portugal é o país mais perfeito do mundo. Já isso é uma espécie de país, melhor do que os países reais onde as pessoas estão realmente convencidas que as coisas correm muito bem. Aprendemos a viver com esse país. E alguns conseguiram mesmo viver nele.
Desdenhar o que se tem e elogiar o que têm os outros, mas sem querer trocar, é a principal característica do aristocrático feitio do povo português. Às vezes penso que dizemos tanto mal de Portugal e dos portugueses para que não sejam os estrangeiros a fazê-lo. Monopolizamos a maledicência para nos defendermos; para evitar a concorrência.
A Razão
A razão é a suprema união da consciência e da consciência de si, ou seja, do conhecimento de um objecto e do conhecimento de si. É a certeza de que as suas determinações não são menos objectais, não são menos determinações da essência das coisas do que são os nossos próprios pensamentos. É, num único e mesmo pensamento, ao mesmo tempo e ao mesmo título, certeza de si, isto é, subjectividade, e ser, isto é, objectividade.
(…) A razão é tão poderosa quanto ardilosa. O seu ardil consiste em geral nessa actividade mediadora que, deixando os objectos agirem uns sobre os outros conforme à sua própria natureza, sem se imiscuir directamente na sua acção recíproca, consegue, contudo, atingir unicamente o objectivo a que se propõe.
(…) A Razão governa o mundo e, consequentemente, governa e governou a história universal. Em relação a essa razão universal e substancial, todo o resto é subordinado e serve-lhe de instrumento e de meio. Ademais, essa Razão é imanente na realidade histórica, realiza-se nela e por ela. É a união do Universal existente em si e por si e do individual e do subjecitvo que constitui a única verdade.
A Alegria Pura só Existe sem a Vaidade
A mais pura alegria é aquela que gozamos no tempo da inocência; estado venturoso, em que nada distinguimos pela razão, mas pelo instinto; e em que nada considera a razão, mas sim a natureza. Então circula veloz o nosso sangue, e os humores que num mundo novo, e resumido, apenas têm tomado os seus primeiros movimentos. Os humores são os que produzem as nossas alegrias; e com efeito não há alegria sem grande movimento; por isso vemos, que a tristeza nos abate, e a alegria nos move; o sossego ainda que indique contentamento, contudo mais é representação da morte que da vida; e a tranquilidade pode dar descanso, porém alegria não a dá sempre.
Mas como pode deixar de ser pura a alegria dos primeiros anos, se ainda então a vaidade não domina em nós? Então só sentimos o bem, e o mal, que resulta da dor, ou do prazer; depois também sentimos o mal, e o bem da opinião, isto é, da vaidade; por isso muitas cousas nos alegram, que tomadas em si mesmas, não têm mais bem, que aquele com que a vaidade as considera; e outras também nos entristecem, que tomadas só por si, não têm outro mal,
Alma Humana, Formada de Coisa Nenhuma
Anjo:
Alma humana, formada
de nenhüa cousa, feita
mui preciosa,
de corrupção separada,
e esmaltada
naquela frágoa perfeita,
gloriosa;
planta neste vale posta
pera dar celestes flores
olorosas,
e pera serdes tresposta
em a alta costa
onde se criam primores
mais que rosas;planta sois e caminheira,
que ainda que estais, vos is
donde viestes.
Vossa pátria verdadeira
é ser herdeira
da glória que conseguis:
andai prestes.
Alma bem-aventurada,
dos anjos tanto querida,
não durmais;
um ponto não esteis parada,
que a jornada
muito em breve é fenecida,
se atentais.(…)
Adianta-se o Anjo, e vem o Diabo a ela [Alma], e diz o Diabo:
Tão depressa, ó delicada,
alva pomba, pera onde is?
Quem vos engana,
e vos leva tão cansada
por estrada,
que somente não sentis
se sois humana?
Não cureis de vos matar,
que ainda estais em idade
de crecer.
Tempo há i pera folgar
e caminhar…
Vivei à vossa vontade,
A Mentira é a Base da Civilização Moderna
É na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc… A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.
Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.
A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc. …
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António,
A Idade da Derrota Aceite
Tenho sessenta anos. Não te iludas: não estou ainda bastante fraco para ceder às imaginações do medo, quase tão absurdas como as da esperança e seguramente muito mais penosas. Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo, preferia que fosse no sentido da confiança; não perderia mais com isso e sofreria menos. Este fim tão próximo não é necessariamente imediato; deito-me ainda, todas as noites, com a esperança de chegar à manhã seguinte. Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco, posso defender a minha posição passo a passo e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido. Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós. Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo, que nos impede de distinguir bem o fim para o qual avançamos sem cessar, diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride. Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro, mas o doente sabe que passados dez anos já não será vivo.
A minha margem de hesitação já não se alonga em anos,
O Perigo nas Relações Humanas
Nas relações humanas o perigo é coisa de todos os dias. Deves precaver-te bem contra este perigo, deves estar sempre de olhos bem abertos: não há nenhum outro tão frequente, tão constante, tão enganador! A tempestade ameaça antes de rebentar, os edifícios estalam antes de cair por terra, o fumo anuncia o incêndio próximo: o mal causado pelo homem é súbito e disfarça-se com tanto mais cuidado quanto mais próximo está. Fazes mal em confiar na aparência das pessoas que se te dirigem: têm rosto humano, mas instintos de feras. Só que nestas apenas o ataque directo é perigoso; se nos passam adiante não voltam atrás à nossa procura. Aliás, somente a necessidade as instiga a fazer mal; a fome ou o medo é que as forçam a lutar. O homem, esse, destrói o seu semelhante por prazer. Tu, contudo, pensando embora nos perigos que te podem vir do homem, pensa também nos teus deveres enquanto homem. Evita, por um lado, que te façam mal, evita, por outro, que faças tu mal a alguém. Alegra-te com a satisfação dos outros, comove-te com os seus dissabores, nunca te esqueças dos serviços que deves prestar, nem dos perigos a evitar. Que ganharás tu vivendo segundo esta norma?
O Engraxanço e o Culambismo Português
Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele.
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores,os jornalistas engraxavam os ministros, as donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc… Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso.